quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

Juventudes perdidas


  28 DE JANEIRO DE 2013

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“Lembro a cidade jovem, universitária, notívaga, roqueira, vibrante. Então, vem o soco no estômago, o pensamento nos que nada poderão contar”
Por Adriano Silva, no Manual de Ingenuidades
Domingo de manhã, 27 de janeiro. Ano começando. Daqui a dois dias completo 42 verões. Coração feliz e cabeça maquinando, um pouco ansiosa, com tanta coisa bacana por fazer: terminar meu livro, um negócio novo por começar, projetos entusiasmantes e demandantes a por no ar. É pouco mais de 10h e eu mastigo um punhado de granola com leite ao lado dos meus filhos, assistindo a um programa da escolha deles no Disney Channel.
Então minha mulher me chama para ver o boletim que passa na Globo. Um incêndio numa boate em Santa Maria. Reconheço, antes que tudo, o uniforme da Brigada Militar – a PM gaúcha. Então, bombeiros. Paramédicos. Gente chorando. Homens sem camisa, de picareta na mão, golpeando a parede de um estabelecimento pelo lado de fora. Não reconheço o lugar mostrado pelas imagens. Há 25 anos eu não moro mais lá.
Vivi 12 anos em Santa Maria, dos 5 aos 17. Passei lá a minha infância e a minha adolescência. Grande parte da minha formação, portanto, se deu lá. Antes dos 5 eu era um bebê, no colo tépido da minha avó. Depois dos 17, já era adulto, um universitário em Porto Alegre. Santa Maria da Boca do Monte é uma das minhas hometowns no mundo. Uma cidade jovem, baladeira, universitária, notívaga, boêmia, roqueira, vibrante, com 262 368 habitantes. Não existe xis no mundo como o de lá. Lanchonetes, bares e boates operam na órbita dessa indústria que viceja com o eterno ir e vir de estudantes. A grande indústria de Santa Maria, há muitos anos, é a educação. Desde, pelo menos, que José Mariano da Rocha Filho fundou a UFSM, em 1960, no distrito de Camobi. Toda uma rede de serviços floresce ao redor dessa vocação.
Pesquiso. Boate Kiss. A três ou quatro quadras do calçadão, o coração da cidade, onde em tantas tardes fui paquerar, encontrar gente. Entro no site do estabelecimento. Parece um lugar em voga. Shows dia sim, dia não. Então o número funesto, o soco inelutável: 232 pessoas mortas no incêndio – 120 homens e 112 mulheres. Outras 131 pessoas feridas, ocupando os quatro ou cinco hospitais da cidade. Pedidos de sangue, de profissionais da área médica, de alimentos e de água. Hospitais da região mobilizados para oferecer suporte. A empresa de ônibus intermunicipal Planalto oferecendo grátis a viagem de Porto Alegre, distante 286 quilômetros, a Santa Maria, para voluntários dispostos a ajudar. O governador do estado e a presidente do país se deslocando para lá, junto com ministros. Só para comparar: 232 mortos coloca a tragédia de Santa Maria no mesmo patamar de terremotos recentes no Irã e na Colômbia, das chuvas arrasadoras na Venezuela e de uma epidemia de meningite no Níger. Ou seja: Santa Maria virou um país. A boate Kiss virou um catástrofe nacional concentrada num único endereço: Rua dos Andradas, 1925. A maior tragédia da história da cidade e do Rio Grande Sul. Uma das maiores da história brasileira. Santa Maria sempre foi uma cidade maior do que si mesma, sempre aspirou alto e longe. Uma cidade de gente em formação, de gente sonhadora. É muito triste que tenha ficado mundialmente famosa por conta disso.
Aparentemente, a banda que fazia show na boate introduziu um sinalizador na sua performance por volta das 2h da madrugada. A pirotecnia ateou fogo às espumas de vedação acústica. Em segundos, o fogo se alastrou, uma fumaça preta cegou e intoxicou todo mundo – a lotação da casa é de 2 000 pessoas -, as saídas de emergência se mostraram tímidas e mal localizadas. E a tragédia se abateu. Com o ano letivo em curso, talvez a maioria daquelas pessoas fosse de fora da cidade – principalmente da região e do estado, mas também do resto do país e até de fora dele. Como o semestre ainda não começou, é possível que a maior parte dos jovens sejam de lá mesmo. A festa tinha sido organizada por estudantes de vários cursos da UFSM. Na lista de feridos há alguns sobrenomes típicos de Santa Maria – Cauduro, Saccol, Madalosso, Righi. Tive colegas, tive amigos com esses sobrenomes. Então eu os sinto muito próximos a mim. Como se fossem meus primos. Ou, talvez, sobrinhos.
Entro no Facebook para contatar algumas amigas que moram em Santa Maria. Algumas delas tem filhos em idade de ir para a balada. Algumas delas ainda vão à balada. Felizmente estão todos sãos e salvos. No mesmo Facebook, vejo o post de ontem de uma amiga, com uma foto da minha galera, num Carnaval no Avenida Tênis Clube, por volta de 1987. Vi muitas boates Kiss surgirem e desaparecerem nos meus verdes anos em Santa Maria. Os empreendimentos duravam às vezes só um verão. Vagão, Paineira. Tantos outros. A gente zanzava de um lugar para o outro – do Tênis para o outro grande clube da cidade, as Dores. De lá para o Zoreka’s, para o Boca de Monte, para o Abrigo Nuclear, para o Pupané, para a Boate do DCE. Duvido que qualquer um desses lugares, nos anos 80, tivesse sistemas de segurança melhores do que a boate Kiss. Então podia ter acontecido conosco.
Há 25 anos, nós fazíamos o que aquela moçada estava fazendo nessa madrugada de domingo: buscávamos diversão, celebrávamos Eros e Dionísio. Queríamos viver, sair à noite, celebrar o tanto de vida que tínhamos pela frente, curtir. Então eu consigo ver a tragédia com os olhos de quem estava lá dentro. (A tragédia que marcou a nossa geração foi a do Bateau Mouche, no Rio, em dezembro de 1988, que ceifou a vida de 55 pessoas.) Por outro lado, também vejo o horror da Boate Kiss com os olhos dos pais – nós, da geração Footloose e Flashdance, que vimos ET e Goonies no cinema, já temos idade para ficar preocupados com a integridade dos filhos adolescentes que saem de casa à noite para se divertir. Nesse momento ainda há pais esperando que seus filhos voltem para casa. Ao longo do dia de hoje, os celulares tocaram incessantemente nos bolsos de corpos sem vida.
Minha turma de amigos ainda se encontra em Santa Maria para uma megabalada a cada 5 anos. Em nossa próxima festa, em 2016, celebraremos os 30 anos da nossa turma adolescente, os dias dourados em que cruzávamos a cidade, de festa em festa, subindo a Presidente e a Tuiuti, descendo a Bozano ou a Acampamento. A pé, em motos ou nos primeiros carros emprestados pelos pais. Meio bêbados de cerveja e de vento norte (um fenômeno climático maravilhoso que só acontece por lá), de azaro em azaro, meio chapados com os primeiros baseados e com os primeiros amores, cheirando a Styletto e a lança perfume Universitário, Indústria Argentina. Ao nos encontrarmos lá, para dançar ao som de Legião e de The Cure, celebramos a nostalgia da nossa adolescência feliz. Nos encontramos diante do altar da nossa juventude perdida – porque já a vivemos. Boa parte da turma que estava na boate Kiss ontem, em contrapartida, teve apenas a adolescência. Não terão a chance de sentir saudade dos seus melhores anos. A sua juventude está perdida – porque não a viverão.
Em nome da Turma de 86, em nome da Galera do Cilon (e do Santa Maria, do Centenário, do Riachuelo, do Bilac e do Maria Rocha – não conhecia ninguém do Maneco, mas coloco essa ala a bordo também), se meus pares me permitirem essa presunção, ofereço nossas condolências e nossa solidariedade aos que sofrem ou sofreram nessa tragédia, as outras turmas ceifadas ou mutiladas no auge da juvenília, às vítimas e as suas famílias.
Quando voltar à Santa Maria, na Páscoa de 2016, encontrarei amigos no Ponto de Cinema. Ou no Moto Garage. Ou no Zeppelin. Ou na Vira Cambota. Pegarei o meu carro alugado e, como sempre faço, dirigirei por Santa Maria, com as janelas abertas, pelas ruas da minha infância e pelos lugares da minha adolescência. E tratarei de passar em frente à Rua dos Andradas, 1925. Para oferecer o olhar desolado e inútil que ocupa meu rosto agora.

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