Prefeitura comparece a audiência em que movimentos denunciam massacres. Governo do Estado admite envolvimento da PM em chacina e prende seis soldados
Por Bruna Bernacchio
Dois fatos importantes, ambos nesta quinta-feira (24/1), marcaram a primeira vitória efetiva dos movimentos sociais de São Paulo contra a onda de violência policial que há meses amedronta a cidade. No Capão Redondo, periferia sul da metrópole, autoridades — dois secretários do novo governo municipal — compareceram pela primeira vez a uma audiência pública em que a população denunciou práticas sistemáticas de intimidação, brutalidade e mortes. Horas depois, a secretaria de Segurança do Estadoreconheceu que policiais participaram diretamente da execução de sete pessoas, em 5 de janeiro e comunicou a prisão de seis dos envolvidos.
Os secretários Rogério Sottili, dos Direitos Humanos e Netinho de Paula, da Igualdade Racial, além de outros integrantes de prefeitura, ouviram mais de trinta entidades no Capão. Realizada no Parque Santo Dias — cujo nome homenageia um metalúrgico negro morto em piquete de greve pela PM, em 1979 — a audiência chegou a reunir duzentas pessoas. O estopim para convocá-la foi precisamente a chacina do início do ano, ocorrida na mesma região. Vozes até então ignoradas ecoaram. Muitos dos participantes esperavam, por parte dos representantes da prefeitura, uma posição mais ativa contra a violência. Todo o evento foi transmitido ao vivo e gravado pela PósTV, canal livre na internet. O slogan convidativo #NãoMatarásNenhumBrasileiro virou tema destacado no twitter brasileiro. A mídia comercial repercutiu o acontecimento e aparentemente começa a dar a importância à pauta.
Por uma cultura de paz e uma nova relação sociedade-governo
Além de Sottili e Netinho, estavam entre as autoridades públicas Gabriel Medina, coordenador da juventude da Secretaria de Direitos Humanos, o vereador eleito da região, Paulo Batista dos Reis, entre outros assessores. Com mediação do jornalista Lino Bocchini, as falas foram expressivas. “O que eu tenho pra falar é sobre essa violência que está deixando toda família destruída”, abriu Seu Francisco, pai de Thiago Souza Magalhães, estudante de administração e funcionário no Instituto Tomie Ohtake, assassinado em 14 de outubro de 2012 com um tiro pelas costas, crime que até hoje não foi solucionado. O pedido era muito claro: que acabem as mortes; que parem de uma vez por todas essa violência gratuita por parte da Polícia Militar.
“A polícia só faz o papel dela – reprimir preto e pobre, e proteger a propriedade privada de quem tem”, afirmou Douglas Belchior, do Comitê Contra o Genocídio. Mas, desde o ano passado, a situação está mais do que alarmante. “Tem declaração de gente de dentro da polícia dizendo que tem milícia, tem documento oficial autorizando a discriminar negros, tem declaração da ouvidoria, corregedoria pública, ministério público, organizações internacionais… Então, o que está faltando pra fazer uma CPI pra acabar com as milícias da PM de São Paulo?”, indagou Douglas.
Além da CPI das milícias, surgiram muitas outras propostas concretas. Transparência nas investigações dos assassinatos já cometidos; indenização às famílias das vítimas, que muitas vezes ficam desamparadas; políticas de educação, cultura, lazer e esporte para o combate à violência; desmilitarização das Polícias, aprovação do Projeto de Lei 4471/2012 (sobre o controle da atividade policial); fim da ROTA, uma força da PM especialmente brutal; e até impeachment do governador Geraldo Alckmin, por crime de responsabilidade.
Diante de falas tão verdadeiramente cheias de revolta, os políticos ali presentes ficaram sem palavras. Talvez por choque de realidade, as falas que se seguiram, dos secretarios, vereadores e deputados, foram extremamente rápidas, apesar de uma vontade de resolver, demonstrada por algumas declarações que devem ser registradas. O secretário Netinho de Paula falou em envolver todas as secretarias, prefeito e governador para marcar nova audiência, e incentivou o povo a ir às ruas em reação. Gabriel Medina defendeu a necessidade de instaurar “um conjunto de políticas públicas emancipatórias articuladas” para o combate à violência. O vereador Reis colocou a necessidade de se trabalhar a cultura de paz à longo prazo. Por fim, o secretario de Rogério Sottili afirmou que a prefeitura vai sim dar prioridade aos pobres, que quer e vai fazer diferente — como foi prometido em campanha e lembrado nas falas dos movimentos presentes –, que o governo é de diálogo. Nesse sentido, a audiência foi realmente uma grande vitória dos movimentos sociais. Como disse Magrão, da ONG Capão Cidadão, há muito tempo a comunidade não era ouvida.
Um sinal de que os ouvidos não estavam tapados apareceu na mesma noite de quinta-feira: seis policiais suspeitos foram presos pela chacina dos sete jovens no Capão. Três semanas depois do crime, as investigações finalmente comprovaram o que os movimentos denunciavam desde o início. Há fartas evidências de que o massacre foi cometido por policiais, com armas da PM; e de que, no momento seguinte, outros policiais agiram para apagar as provas do crime. É o mesmo padrão verificado em dezenas de outros casos, desde o segundo semestre do ano passado.
É o momento para mudança, ideal para o governo consolidar sua imagem. O primeiro passo foi dado, mas há muitos outros, encaminhamentos a serem feitos, políticas pensadas conjuntamente com a sociedade, e a prefeitura precisa agir. Só assim algumas características essenciais vão mudar, como expressou Rafael Mesquita, da Agência Solano Trindade: “A gente precisa de uma outra relação. [...] Essa cultura [de violência] só vai ser mudada quando a gente mudar a cultura da política e dos políticos, e a cultura dessa burocracia, que faz com que o povo não seja escutado, que o povo não tenha espaço, que não haja contato direto entre o povo e os nossos representantes”.
Nenhum comentário:
Postar um comentário