Sexo e política na ditadura argentina
Em ‘O Olhar Invisível’ (2010), o diretor argentino Diego Lerman traça um paralelismo entre a sexualidade de uma mulher reprimida e o final do regime militar que ensanguentou a Argentina de 1976 a 1983.
Oscar Guisoni
Buenos Aires – Traçar um paralelismo entre a sexualidade de uma mulher reprimida e o final do regime militar que ensanguentou a Argentina de 1976 a 1983 pode parecer, numa primeira vista, uma aposta cinematográfica arriscada. E é. Mas nada disto pareceu importar ao diretor argentino Diego Lerman quando decidiu levar ao cinema a novela “Ciências Morais, de Martín Kohan (Buenos Aires, 1967). Nem sequer o tom minimalista e íntimo do relato o persuadiu na hora de empreender a adaptação de uma obra que se apresenta no lado mais obscuro da repressão: o que vai das censuras militares ao controle dos corpos e a impossibilidade da liberdade sexual quando nas ruas reinam as baionetas.
A história é simples: María Teresa (interpretada de forma magistral pela jovem atriz Julieta Zylberberg) ingressa como monitora no Colégio Nacional de Buenos Aires, uma das instituições mais prestigiadas da capital argentina, onde estudam os filhos da classe dominante e que foi o berço do pensamento de esquerda mais radical nos anos sessenta. Corre o ano 1982 e o colégio, que foi um dos que mais sofreu a repressão do regime, contando com inúmeros alunos e professores desaparecidos nos campos de concentração, se encontra sob um férreo controle.
A expressão máxima do autoritarismo dentro da instituição está encarnada no senhor Biasutto (um sóbrio e deslumbrante Osmar Núñez, ator com origem no teatro e pouco conhecido no cinema), o chefe dos monitores do colégio, que se encarrega de iniciar María Teresa na difícil tarefa de aplicar “a moralidade e os bons costumes” onde seja necessário, disciplinando seus alunos a força de castigos e obediência forçada. María Teresa toma tão a sério seu trabalho que decide propor a Biasutto começar a espiar no banheiro masculino com o objetivo de descobrir se algum dos jovens fuma no recinto. Biasutto aceita: “Fumar no colégio é o câncer da subversão” afirma muito entusiasmado, enquanto dá permissão à nova monitora para que se dedique a esse mundo proibido.
É desta maneira que María Teresa começa a passar horas e horas oculta no banheiro dos homens, sem suspeitar que sua sexualidade reprimida vá começar a aflorar e que logo encontrará nessas nebulosas tarefas de vigilância um prazer que não consegue ter em sua seca e triste vida fora do colégio. E, enquanto a monitora se excita aproximando-se das perigosas fronteiras do mórbido e das “ciências morais” às quais faz menção o título da novela, no lado de fora o país entra em guerra com a Grã Bretanha pelo controle das ilhas Malvinas e o regime militar começa a experimentar o sabor da derrota, até cair estrepitosamente depois do fracasso da aventura bélica. Mas tudo isto mal se vê no filme, já que o eixo da história está nos corpos mais que na história política. Ou melhor, o eixo está no modo em que a política atravessa os corpos e a repressão militar se transforma em insustentável repressão física.
“Interessava-me muito o lugar de microcélula que havia no colégio em relação com o que era o país” afirmou Lerman em uma entrevista concedida ao jornal Página/12 “Através da descrição dessa microcélula está a informação de todo o corpo do país fora do colégio e que não vemos em nenhum momento da obra”. Dessa forma, o filme transforma um colégio no “corpo da nação” e o corpo de sua monitora na prisão e o flagelo que se abate sobre o território. Uma maneira de aproximar-se da história política arriscada e inovadora que levou Lerman até o mesmíssimo festival de Cannes e que o colocou na reduzida lista dos diretores de cinema mais prometedores da Argentina contemporânea.
Tradução: Liborio Júnior
A história é simples: María Teresa (interpretada de forma magistral pela jovem atriz Julieta Zylberberg) ingressa como monitora no Colégio Nacional de Buenos Aires, uma das instituições mais prestigiadas da capital argentina, onde estudam os filhos da classe dominante e que foi o berço do pensamento de esquerda mais radical nos anos sessenta. Corre o ano 1982 e o colégio, que foi um dos que mais sofreu a repressão do regime, contando com inúmeros alunos e professores desaparecidos nos campos de concentração, se encontra sob um férreo controle.
A expressão máxima do autoritarismo dentro da instituição está encarnada no senhor Biasutto (um sóbrio e deslumbrante Osmar Núñez, ator com origem no teatro e pouco conhecido no cinema), o chefe dos monitores do colégio, que se encarrega de iniciar María Teresa na difícil tarefa de aplicar “a moralidade e os bons costumes” onde seja necessário, disciplinando seus alunos a força de castigos e obediência forçada. María Teresa toma tão a sério seu trabalho que decide propor a Biasutto começar a espiar no banheiro masculino com o objetivo de descobrir se algum dos jovens fuma no recinto. Biasutto aceita: “Fumar no colégio é o câncer da subversão” afirma muito entusiasmado, enquanto dá permissão à nova monitora para que se dedique a esse mundo proibido.
É desta maneira que María Teresa começa a passar horas e horas oculta no banheiro dos homens, sem suspeitar que sua sexualidade reprimida vá começar a aflorar e que logo encontrará nessas nebulosas tarefas de vigilância um prazer que não consegue ter em sua seca e triste vida fora do colégio. E, enquanto a monitora se excita aproximando-se das perigosas fronteiras do mórbido e das “ciências morais” às quais faz menção o título da novela, no lado de fora o país entra em guerra com a Grã Bretanha pelo controle das ilhas Malvinas e o regime militar começa a experimentar o sabor da derrota, até cair estrepitosamente depois do fracasso da aventura bélica. Mas tudo isto mal se vê no filme, já que o eixo da história está nos corpos mais que na história política. Ou melhor, o eixo está no modo em que a política atravessa os corpos e a repressão militar se transforma em insustentável repressão física.
“Interessava-me muito o lugar de microcélula que havia no colégio em relação com o que era o país” afirmou Lerman em uma entrevista concedida ao jornal Página/12 “Através da descrição dessa microcélula está a informação de todo o corpo do país fora do colégio e que não vemos em nenhum momento da obra”. Dessa forma, o filme transforma um colégio no “corpo da nação” e o corpo de sua monitora na prisão e o flagelo que se abate sobre o território. Uma maneira de aproximar-se da história política arriscada e inovadora que levou Lerman até o mesmíssimo festival de Cannes e que o colocou na reduzida lista dos diretores de cinema mais prometedores da Argentina contemporânea.
Tradução: Liborio Júnior
Nenhum comentário:
Postar um comentário