quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Cartografia do underground


O biógrafo Barry Miles fala à CULT sobre a convivência com Allen Ginsberg e Paul McCarntney

Marília Kodic

A história de Barry Miles, 69, não é senão um mapeamento de Londres nos anos de ouro da contracultura e da boemia. O biógrafo teve Paul McCartney como primeiro cliente de sua livraria, a Indica Books and Gallery – reduto avant-garde dos anos 1960 e lugar em que John Lennon conheceu Yoko Ono –, morou numa fazenda com o beatnik Allen Ginsberg e costumava ter discussões sobre a sociedade capitalista com o músico Frank Zappa.
Nas palavras do escritor e lexicógrafo britânico Jonathon Green, em seu livro All Dressed Up: the Sixties and the Counter-Culture [“todo vestido: os anos 1960 e a contracultura”, em tradução livre], “todo mundo que iria ser alguém na vida passou, ou diz ter passado, por sua porta”.
Miles, que está no Brasil este mês para participar da Festa Literária Internacional de Pernambuco, é autor de obras sobre Jack Kerouac, Pink Floyd, Charles Bukowski, Bob Dylan e Ramones, entre outros.
Na entrevista a seguir, o escritor fala das declarações polêmicas que fez sobre Frank Zappa e a banda Rush, a possibilidade de um movimento contracultural em escala internacional, como o Wikileaks, e o papel das drogas na sociedade alternativa. Além disso, revela que Paul McCartney fez apenas uma censura durante o processo de escrita de sua biografia.
CULT – Você acredita que a cena underground londrina deixou de existir depois de seu auge nas décadas de 1960 e 70?
Barry Miles – Ainda há um movimento underground, mas, tal qual era nos anos 1960 e 70, não existe mais. Além disso, enquanto naquela época a força motriz da cena era sexo, drogas e rock’n’roll, agora se deslocou em direção a drogas e arte.
Desde 1985-90 tem havido uma crescente cena artística em Londres, originalmente centrada em torno dos chamados Young British Artists ou YBAs (Jovens Artistas Britânicos), como Sara Lucas, Tracy Emin e Damien Hirst, e que agora conta com uma geração mais nova.
O bairro de Fitzrovia, por exemplo, que é próximo ao Soho, no centro da cidade, viu a abertura de 40 novas galerias nos últimos dois anos. A arte não é necessariamente tão grandiosa, mas a energia e o entusiasmo estão ali.
E em relação às drogas, podemos afirmar que estão no cerne desse tipo de movimento?
Enquanto as drogas continuarem ilegais haverá uma comunidade underground composta de pessoas que as utilizam. Na Grã-Bretanha, por exemplo, as leis são ditadas mais pela imprensa direitista da classe média do que pelos relatórios policiais e autoridades da área da saúde que concordam que as drogas deveriam ser legalizadas.
Você diria que uma contracultura global é possível nos dias de hoje – como, por exemplo, o Wikileaks?
Acredito que a internet possibilitou uma contracultura global. Algo como o Wikileaks representa a versão do século 21 dos jornais underground dos anos 1960 e 70: tem a mesma crença anti-autoritária de que não deve haver segredos.
E, a julgar pelas reações por parte das autoridades – sempre um bom teste para saber se algo éunderground ou não –, o Wikileaks está cumprindo sua função (independente das várias personalidades envolvidas).
Você mantém contato com os artistas que conhece ao longo da vida?
Infelizmente grande parte dessas pessoas já está morta: todos os beats, [Allen] Ginsberg, [Peter] Orlovsky, [William] Burroughs, Ian Sommervile, Brion Gysin, Carl Solomon, etc. Da última vez que estive em Nova York vi Anne Waldman, John Giorno e Michael McClure, mas a maioria dessa geração já se foi. Toda semana ouço de mais gente que está morrendo ou morta. Tenho 69 anos, mas sempre andei com uma turma mais velha e muitos estão com 70 e poucos anos e não levaram uma vida particularmente saudável.
Pode contar uma anedota do tempo em que morou com Allen Ginsberg?
Allen era um dos meus melhores amigos. Ele quase sempre ficava na minha casa quando visitava Londres até que meu quarto de hóspedes foi ocupado pelo meu filho. Fiquei com ele nos anos 1960 e 70 em Nova York e passei um longo tempo vivendo em sua comuna hippie no norte do Estado, além de sermos vizinhos de quarto numa comuna hippie em Berkeley em 1971.
Quando estava visitando Londres em 1994, o levei até a casa de Paul McCartney, em Sussex, para um almoço de domingo. Paul havia escrito poesia e a mostrou para Allen. Allen, que estivera lecionando bastante, pegou sua caneta e começou a corrigir os poemas de Paul. A cara de Paul foi impagável, ele estava tão chocado. Ninguém mais no mundo teria ousado corrigir qualquer coisa escrita por um Beatle.
Eles tiveram uma boa conversa sobre poesia. Mas quando falei com Paul, alguns dias depois, ele disse: “As ideias de Allen eram muito interessantes, mas acho que vou deixar os meus poemas como eu os escrevi”.
Você notoriamente criticou algumas atitudes libertárias e pró-capitalistas de Frank Zappa, na biografia sobre o músico lançada em 2005, e a banda Rush, que você controversamente acusou de tendências nazistas em um artigo para a revista britânicaNew Musical Express em 1978. Se arrepende?
Nunca entendi o alarde em torno da entrevista com o Rush. Estava cobrindo jornalismo de rock para aNME para pagar o aluguel, então eu aceitava praticamente qualquer trabalho oferecido. Eu nunca tinha ouvido falar de Rush. A gravadora me mandou os discos deles, fui a um show e, no dia seguinte, ou depois do show, me esqueço de qual, entrevistei a banda. Era uma tarefa rotineira, feita e acabada em dois dias.
Achei que a total crença deles em forças de mercado era absurda. Eles acreditavam que as instituições de caridade iam pagar por assistência médica para os enfermos e doentes mentais, que de algum modo as forças de mercado iam providenciar educação, um sistema de esgoto, água potável, forças militares.
Ainda acho que esta abordagem Ayn Rand [filósofa que desenvolveu o Objetivismo] leva ao facismo, então não me orgulho de criticá-los, embora eu mal me lembre disso. Eles me pareceram muito ingênuos, jovens levemente fanáticos. O que mais me lembro é de como o vocalista tinha a capacidade de cantar em um tom tão alto.
Eu conhecia o Frank Zappa, fiquei com ele em Los Angeles, vi muito dele em Nova York e ele ia me visitar em casa, em Londres. Nossas discussões sobre a sociedade eram muito mais sofisticadas do que ser somente anti-capitalista. Eu concordava muito mais com suas ideias do que discordava e, em todo caso, não sou um comunista.
Eu achei que sua noção de concorrer à presidência foi ridícula, mas gostava muito dele.
Ao escrever, qual sua política em relação à censura – há alguma informação que você já preferiu deixar em off?
Quando fiz a biografia do Paul McCartney, concordamos que não haveria censura em nossas discussões e entrevistas para que ele pudesse falar abertamente, mas que Paul teria a decisão final sobre o texto. Tivemos oito encontros para rever o texto final. Eu havia naturalmente colocado diversas coisas para ele tirar, mas na verdade ele deixou praticamente tudo. Ele só removeu os detalhes de um caso com uma garota, mas nada de mais.
Eu sei de algumas coisas do John Lennon sobre as quais eu preferiria manter silêncio. Mas até aí eu nunca escrevi uma biografia sobre ele.
Você acredita que os artistas das décadas de 1960 e 70 eram movidos por causas mais relevantes do que os de hoje em dia?
Naquele tempo a maioria das causas sociais eram específicas, como agora. As pessoas não se juntavam a grupos e esquerda para mudar a sociedade – bem, alguns faziam isso, é claro, mas a cenaunderground que eu conhecia não.
Elas geralmente se organizavam em torno de causas particulares como a Guerra do Vietnã, questões ecológicas, legalização da maconha e da homossexualidade, causas pró-mulher, direito à escolha, libertação de diversos presos políticos e assim por diante.
As questões mudaram. Agora, estudantes estão protestando contra altas mensalidades e o fato de haver policiais à paisana entre eles. Há grupos de direitos aos animais e grupos de ecologia. Há ainda demonstrações antiguerra – por exemplo, a maior demonstração já feita no Reino Unido foi quando mais de um milhão de pessoas protestou sobre o envolvimento do país com o Iraque.
Quais são seus próximos planos profissionais?
Estou trabalhando numa enorme e inteiramente autorizada biografia de William S. Burroughs, a ser publicada no dia 5 de fevereiro de 2014, 100º aniversário de seu nascimento. Fiz um breve perfil de Burroughs há mais ou menos 25 anos, e ele, é claro, aparece nos meus livros sobre Kerouac e Ginsberg, além do meu livro sobre o Beat Hotel em Paris. Ele era um amigo meu e o vejo como o mais relevante escritor de toda a Geração Beat.

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