O aproveitamento do conhecimento de comunidades tradicionais poderia gerar economia em gastos com saúde no Brasil. Mas a burocracia e os interesses econômicos falam mais alto
Eduardo Sá
Eduardo Sá
Em todas as regiões do Brasil vem crescendo a revalorização do conhecimento tradicional e o cultivo de plantas medicinais, sobretudo as nativas. No entanto, apesar de esses saberes estarem relacionados à identidade desses territórios e serem repassados culturalmente há décadas, as legislações que existem no país impedem a livre circulação de muitos desses produtos. São óleos, chás, raízes, cascas, resinas, argilas, dentre outros recursos naturais, manejados para a confecção da medicina popular por meio de conhecimentos tradicionais. Os produtos artesanais acabam não atendendo aos critérios estabelecidos pelos órgãos competentes, à exceção de alguns fitoterápicos, que são o produto final da planta medicinal.
As farmacinhas caseiras ou comunitárias e as pequenas hortas vendem seus produtos sem a indicação terapêutica das substâncias no rótulo de suas embalagens. Dessa maneira, os pequenos empreendimentos driblam a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), que fiscaliza os medicamentos registrados. É a estratégia de “desobediência civil”, segundo muitos deles, pois a inviabilidade financeira e jurídica dificulta a regularização das fórmulas medicinais para aqueles que não têm estrutura. Segundo a Anvisa, as solicitações de registro de medicamentos fitoterápicos passam por criteriosa análise técnica e geram o maior índice de indeferimentos, 43%.
O Brasil é signatário da Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB), da Organização das Nações Unidas (ONU), que conta com a adesão de 188 países e prevê a promoção e a conservação da biodiversidade e seus serviços ambientais. Mesmo com a oportunidade de estabelecermos um modelo de desenvolvimento próprio e autônomo nessa área, corremos o risco de sermos vencidos pelos interesses comerciais de fora. A Organização Mundial de Saúde (OMS) estima que entre 65% e 80% da população que vive nos países em desenvolvimento dependem essencialmente das plantas para seus cuidados primários de saúde.
A tese de mestrado defendida na Universidade de Campinas (Unicamp) por Andréia Mara Pereira mostra que 70% das drogas derivadas de plantas foram desenvolvidas graças ao conhecimento de comunidades tradicionais, que recebem por essas patentes em torno de 0,0001%. Por meio desse conhecimento tradicional, a indústria economiza tempo e muito dinheiro, uma economia que pode chegar a 70 milhões de dólares, aponta a pesquisa.
Existem várias políticas e programas de governo que, de alguma forma, contemplam as plantas medicinais, mas nenhuma dá respaldo suficiente para evitar a repressão. A normatização mais importante é a Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, instituída em junho de 2006. Com sua aprovação, regulamenta-se a produção, o manejo, o beneficiamento e a comercialização de plantas medicinais, bem como o uso popular de medicamentos fitoterápicos pelas indústrias.
Está em andamento também o Programa Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, que será elaborado por um Grupo de Trabalho Interministerial. O Comitê Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, composto também por representantes da sociedade civil, será responsável pelo seu monitoramento e avaliação. Dentre outras atribuições, está prevista a criação de regulamentações direcionadas a salvaguardar, preservar e apoiar conhecimentos, práticas, saberes e fazeres tradicionais e populares relacionados às plantas medicinais, aos remédios caseiros e demais produtos para a saúde que se estruturam em princípios ancestrais e imateriais.
Pressão popular
Uma mobilização que envolve movimentos sociais, acadêmicos e ONGs resultou na formação do Comitê Brasil em defesa das florestas e do desenvolvimento sustentável pelo uso popular e tradicional de plantas medicinais. As organizações têm realizado encontros regionais para elaborar propostas ao governo, que, segundo elas, não lhes está dando a devida atenção. Cada um dos cinco biomas brasileiros tem dois interlocutores, um titular e um suplente, para levar a demanda de suas regiões às autoridades.
De acordo com lideranças dos biomas, o principal objetivo é colocar os “invisibilizados” na legalidade. Eles reconhecem que o Ministério da Saúde está trabalhando em algumas experiências-piloto no País, mas as dificuldades enfrentadas pelos pequenos empreendedores ainda é brutal. Aquele que for pego vendendo ou produzindo medicamento com indicação terapêutica sem ser registrado ou autorizado pelo órgão competente é enquadrado na Lei nº 6437, que sistematiza as sanções da legislação sanitária federal, estando sujeito a penalidades que vão desde advertências e multas até fechamentos de estabelecimentos e apreensão de mercadorias. A lei permite o uso tradicional, mas não a venda do medicamento, o que inviabiliza economicamente o produto.
Celerino Carriconde, coordenador do Centro Nordestino de Medicina Popular, representante do bioma caatinga, defende que o Comitê tenha um caráter mais político e propõe a convocação de movimentos como o MST para dar maior poder de barganha ao grupo. Para ele, é preciso pressão social para superar barreiras técnicas e a regulamentação da Anvisa, que estão defasadas. “Foram necessários 25 anos para surgir uma política pública, nós vamos ter mais 25 para que isso vire realmente uma prática no SUS. A máquina do Estado ainda está viciada, ligada à corrupção, porque não há o controle social. Se passássemos para uma democracia participativa, os conselhos municipais de Saúde fariam pressão para ver quanto foi comprado de medicamento e verificar no depósito. E por que usar o remédio da multinacional, se está fazendo mal, e não usar o das nossas plantas?”, questiona.
Integrante da ONG Fitovida, Leonel Generoso, que trabalha treinando as comunidades para o resgate do conhecimento tradicional, busca revalorizar as plantas nativas na vida dos moradores da caatinga. O objetivo é regularizar os pequenos empreendimentos, fazendo uma ponte entre as indústrias, as comunidades e a Anvisa. A aroeira, o marmeleiro, a quixabeira, a emburana de cheiro ou cumaru, além de outras plantas, são cultivadas na caatinga. O trabalho de Leonel é mostrar às comunidades, em sua maioria compostas por agricultores familiares assentados, a melhor forma de coletar as plantas e preparar extratos. “É imposta uma agricultura que não tem nada a ver com a caatinga, que é um solo frágil, e quando eles desmatam, acabam voltando para a cidade em três anos, porque não conseguem produzir. Porém, existe todo um conhecimento de uso sustentável que a gente se propõe a resgatar, como o das plantas medicinais e fitoterápicas”, observa.
Para a catarinense Noemi Krefta, do Movimento das Mulheres Camponesas (MMC), que representa o bioma pampa, as mulheres têm uma missão histórica de cuidar da vida provendo o alimento e protegendo a saúde. A vegetação dos pampas inclui desde espécies nativas do litoral até o cultivo de plantas estrangeiras no interior. São muito usados o ipê e a pitanga, por exemplo. A oralidade é a principal via de transmissão dos saberes, mas muitos relatos escritos vêm sendo registrados, para recuperá-los e conservá-los. Na região, algumas farmacinhas caseiras fazem chás e pomadas, por exemplo, sem indicação terapêutica. “Mesmo assim, alguns grupos já sofreram repressão e suas farmacinhas, ameaças de fechamento. Não é só saber para que serve essa erva; toda a história, a identidade, a cultura de um povo tem que vir junto. Nós pregamos muito para que isso seja valorizado e reconhecido”, afirma.
Outro bioma muito importante no Brasil é o Pantanal, onde existem muitas realidades locais e experiências com o uso de plantas medicinais. Povos indígenas, quilombolas, comunidades tradicionais que estão há mais de 80 anos no local, além dos migrantes, utilizam as plantas nativas. A maioria extrai diretamente da natureza na beira dos rios e das matas. Uma experiência vinda de fora, que talvez seja a mais forte, diz respeito à bioenergia.
Isidoro Salomão, da Rede Pantanal, conta que são mais de 400 tipos de plantas medicinais no bioma, 200 delas bem conhecidas e com muita qualidade. Isso ocorre por causa da preservação da região, principalmente nas áreas alagadas, tornando os medicamentos acessíveis à população. A vegetação está repleta de plantas grandes como aroeira, ipê, barbatimão, e plantas rasteiras como o aguapé, chapéu-de-couro e outras nativas. “O padre Renato é o mestre da bioenergia no Brasil. Ele difundiu o incentivo de uso da planta medicinal in natura para tinturas, pomadas, remédio de verme, comprimidos. Mas há dois anos ele foi criticado, sem fundamento, pelo incentivo ao uso do chá. Já houve repressão na região. Nós queremos que seja difundida a nossa cultura, porque é muito mais acessível ao nosso povo. E remédio e alimento natural, não é droga, muito pior é ir na farmácia”, alerta.
O poder das multinacionais
Um dos maiores gastos no Brasil em remédios é dedicado a analgésicos e anti-inflamatórios, apesar de várias plantas terem a mesma função, afirma o coordenador do Centro Nordestino de Medicina Popular. “Em vez da aspirina, é possível utilizar o alho, o alecrim, o sete-dores, a hortelã graúda, dentre outros elementos naturais que têm funções semelhantes. Mas não há vontade política, e continuamos dependentes das multinacionais”, aponta Celerino Carriconde.
De acordo com Carriconde, é importante trabalhar a planta medicinal agregando valores ao conhecimento popular para melhorar a produção fitoterápica. As universidades da sua região têm mais de 40 plantas pesquisadas, mas não se dá um salto qualitativo porque não é feito trabalho de campo por acadêmicos, não gerando tecnologia. Segundo o Ministério da Saúde, são gastos R$ 10 bilhões em medicamentos por ano no Brasil.
São mais de 15 farmacinhas só no grande Recife. Tem trabalhos que chegam a vender 700 remédios por mês, por preços simbólicos a quem mais necessita. O governo do estado de Pernambuco, por meio do Instituto de Tecnologia do Estado de Pernambuco (Itep), quer que o laboratório do estado produza o remédio com essas plantas. “Mas tem a máquina da burocracia das legislações impostas pela Anvisa, que está ligada às multinacionais que fazem lobby no Congresso. Todos sabem os malefícios da Coca-Cola e do McDonald’s, e o governo não faz nada, mas fala em segurança alimentar. É tudo pressão internacional”, critica. “O Brasil quer fazer uma legislação para acabar com a nossa planta, entregá-la à biopirataria. Pegaram o quebra-pedra e patentearam nos Estados Unidos, e a espinha santa no Japão. Por que o Brasil não adota uma política realmente de confronto?”
De acordo com o secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Ambiente, Roberto Cavalcante, a legislação que envolve a biopirataria está evoluindo e a Convenção de Biodiversidade é extremamente sólida, garantindo aos países o patrimônio de seus recursos. Segundo ele, no Brasil vem crescendo a preocupação devido à crescente pressão dos interesses das empresas estrangeiras em nosso país. “O melhor incentivo à bioprospecção é a parceria entre as comunidades, certidões científicas e eventualmente empresas, para quantificar e qualificar as plantas. Isso existe no Conselho de Gestão do Patrimônio Genético (Cegen), para licenciar e assegurar a propriedade intelectual e o direito da biodiversidade brasileira. Se você detecta em outro país o uso de um produto brasileiro, segundo a Convenção de Biodiversidade, o Brasil pode acionar a empresa. E, em caso de violação de direitos, tem de haver reparação”, afirmou Cavalcante. O Ministério do Meio Ambiente, até o fechamento desta matéria, não disponibilizou nenhuma estatística sobre o tema. O órgão, sequer informou quais questões envolvem a biopirataria e se existem mecanismos para combatê-la. Celerino afirma que a justificativa tecnocientífica da repressão às pequenas iniciativas nacionais com plantas nativas é um mito, pois o problema é político e econômico. Conforme ele, temos no Brasil um modelo ainda dependente das multinacionais e há um contrassenso entre proposta e prática nas políticas públicas do governo. Ele defende ainda que há medicamentos populares mais eficientes e baratos, que podem resultar em uma redução de até 30% nos gastos em alguns casos e, com o fomento dessa produção, seriam reduzidos também as internações hospitalares, desonerando o SUS.
“O Lula e a Dilma querem, mas a máquina montada não. Por isso, fazemos a desobediência civil. A Paraíba, inclusive, tem laboratório financiado pelo Banco do Brasil produzindo medicamento para nove municípios, a partir das plantas medicinais do Cariri. Porque havia vontade política. As pessoas só conseguem as coisas se são amigas da máquina, é uma coisa violenta”, conclui.
Farmacopeia Popular
As farmacopeias (do grego farmaco [princípios ativos ou medicamento] e peia [fabricação]) são livros oficiais do governo para a identificação dos medicamentos e o controle de sua qualidade em fabricação, e nelas estão listadas as substâncias utilizadas na preparação dos medicamentos. No Brasil, foi aprovada em 1926 a primeira Farmacopeia Brasileira, de autoria do farmacêutico Rodolpho Dias da Silva. Posteriormente, mais duas foram elaboradas por comissões do Ministério da Saúde, em 1959 e 1976. A última edição foi finalizada em 2006, com a publicação de seis fascículos por uma comissão vinculada à Anvisa, na qual foram registradas 47 espécies medicinais. O decreto Nº 96.607, de 1988, tornou obrigatório o uso do exemplar da Farmacopeia Brasileira em diversos setores relacionados à medicina para a segurança do consumidor.
Inúmeras experiências de medicina tradicional estão ocorrendo Brasil afora. Uma das bem-sucedidas é a Farmacopeia Popular do Cerrado, criada pela Articulação Pacari, fruto de uma pesquisa popular realizada, entre 2001 e 2005, em quatro estados. Os temas de interesse da comunidade foram estudados para fins práticos, por meio do registro participativo das informações obtidas. O objetivo é, por meio da linguagem local, disponibilizar esse conhecimento para o uso legítimo desses medicamentos. Sua diferenciação é a ampla participação de 262 raizeiros e representantes comunitários em conjunto com o suporte técnico, de modo a unir o conhecimento tradicional ao científico. Visa também a tornar-se um instrumento político de proteção à apropriação indevida dos recursos naturais da região e conhecimentos tradicionais associados.
Os medicamentos caseiros utilizam os mesmos recursos de uma cozinha e técnicas semelhantes à de preparação de alimentos. Os conhecedores tradicionais, chamados de raizeiros(as), são especialistas em identificar as plantas medicinais no meio ambiente, coletá-las de modo adequado, armazená-las em determinadas condições, diagnosticar doenças, preparar e indicar remédios artesanais. Cada etapa é fundamental no processo, e conhecer todo o caminho é essencial para garantir a qualidade e eficácia do medicamento. A maioria dos atendimentos é realizada em casa, podendo se receitar um remédio pronto ou o preparo de outra substância. Geralmente buscam atender a população com preços viáveis, em busca da autossustentabilidade.
Um projeto modelo de Farmácia Viva em uma escola de Alagoas
Desde 2007, a Escola (municipal) de Ensino Fundamental Benjamin Felisberto da Silva, de Arapiraca (AL), se tornou referência de educação no campo para a região. Como a comunidade fica distante do posto de saúde, pela necessidade, foi desenvolvida uma Farmácia Viva, por iniciativa própria da direção, com os alunos. Há uma horta de mais de 40 espécies de plantas fitoterápicas para a produção de remédios caseiros.
Segundo a pioneira do projeto, Edinalva Pinheiro dos Santos Oliveira, atual diretora da escola, as professoras sugeriam a automedicação para os alunos – uma situação que não podia continuar, pois só médicos podem prescrever remédios. Diante disso, foi preciso resgatar o conhecimento tradicional da medicina popular local.
“Esse conhecimento estava quase extinto, fizemos pesquisas com os meninos e estudamos na sala de aula. Hoje está dentro do projeto político pedagógico da escola. Disseminamos o conhecimento em todo o estado e, depois da premiação da revista Fórum e da Fundação Banco do Brasil [concurso sobre difusão de tecnologias sociais nas escolas, realizado em 2008/2009], ganhamos muitos prêmios, como o Sesi de Qualidade de Educação. Além de prevenir muito as doenças, melhora o rendimento das crianças na escola”, afirmou.
Apesar do apoio das secretarias municipais de Saúde, Educação e Cultura, que aos poucos foram reconhecendo o trabalho da escola, o Farmácia Viva não tem o registro da Anvisa. Conforme a diretora, o órgão tem dado instruções e já existem recursos para a criação de um laboratório. O objetivo é registrar os medicamentos, para eles serem comercializados no Sistema Único de Saúde (SUS) de Arapiraca.
Atualmente, são doados remédios para as famílias dos alunos, e alguns produtos são vendidos em feiras e atividades de que a escola participa para expor seu trabalho. Há perspectivas de que o projeto seja multiplicado para outras regiões.
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