quarta-feira, 28 de novembro de 2012

Notas sobre nação e nacionalismo


O artigo examina alguns pressupostos psicossociológicos do nacionalismo quanto à identidade coletiva e às suas relações com o problema geral da igualdade. O nacionalismo "oficial" brasileiro do século passado e a "Teoria da dependência" são objeto de breve avaliação crítica, sobretudo à luz da nova dinâmica econômica global, além de confrontar-se o ânimo nacionalista com os anseios relacionados a um ideal pluralista.

Fábio Wanderley Reis
EM ARTIGO que aparece no presente número de estudos avançados ("A religião da política em Israel"), David Bidussa recorre à distinção de Zeev Sternhell entre duas "matrizes culturais" da idéia de nação: a "romântico-política", inspirada em Herder e fundada no conceito de "Volk", e a "iluminista-jacobina", fundada no princípio da cidadania. A distinção pode ser aproximada de dois problemas que os autores ligados à literatura sobre desenvolvimento político, florescente décadas atrás, costumavam destacar como exigindo solução na implantação e expansão do Estado-nação moderno: o problema da identidade, em que a nacionalidade surge como condicionante decisivo da identidade pessoal e objeto de lealdade, e o da igualdade, que remete à cidadania e a seu enriquecimento e expansão - nos termos de T. H. Marshall (1965), a passagem dos direitos civis (as garantias que perfazem o "Estado de direito") e políticos (em especial o direito de votar e ser votado) aos direitos sociais (acesso à saúde, educação, seguridade social etc.). Essa literatura acrescentava, porém, o problema da autoridade, envolvendo a edificação apropriada da aparelhagem burocrática e simbólica do Estado (ver, por exemplo, Rustow, 1967).
Tais "problemas" ou dimensões se articulam fortemente. É evidente, como sugere a fusão indicada na expressão "Estado-nação", a contribuição trazida pelos elementos sociopsicológicos da identidade nacional ao simbolismo do Estado e seus desdobramentos propriamente burocráticos ou instrumentais, isto é, sua capacidade de operar com eficácia junto à coletividade como tal ou sobre ela. Mas o problema da igualdade ganha imediato relevo em razão da exortação à solidariedade contida na referência ao compartilhamento comum da condição nacional. A solidariedade aparece como virtude a definir deveres - no limite, o sacrifício da própria vida - que a coletividade pretende poder cobrar do cidadão, e uma concepção clássica e "republicana" faz desses deveres a pedra de toque da definição mesma de cidadania: a concepção contida na "liberdade dos antigos", de Benjamin Constant, ou na noção da cidadania como civismo. Não admira, porém, que já nas cidades-Estado da Antigüidade clássica tenhamos visto surgir experiências em que a exigência de civismo e solidariedade patriótica se faz acompanhar, como em Atenas e na Roma republicana, da demanda igualitária e democrática. Como destacado por Ellen Meiksins Wood (2003), o traço crucial de tais experiências, em particular da de Atenas, se resume na figura do cidadão-camponês, ou no fato de que o camponês se torna cidadão (em contraste com o que ocorre em geral nas sociedades tradicionais, onde o que é característico é o Estado apropriador que subjuga os camponeses). Aí se exprime a idéia mais geral de que os produtores (camponeses, sapateiros, ferreiros, ou seja, trabalhadores manuais) podem ser governantes, podem ser cidadãos e, como cidadãos, participar do governo da comunidade.
Mas a experiência republicana e democrática da cidade antiga (que, no caso de Atenas, foi objeto de resistência entre os grandes nomes da filosofia grega) acabou por revelar-se problemática e fugaz. E é certamente possível apontar no problema da igualdade, como o faziam os autores do "desenvolvimento político", o elemento mais especificamente "moderno" do trinômio "Estado-nação moderno". Isso tem um desdobramento de significado especial: à parte as disputas que se possam justificar sobre a existência ou não de um capitalismo antigo ("aquisitivo", "selvagem"), é com a afirmação do capitalismo no pós-Renascimento que o problema da igualdade e a "questão social" ganham importância decisiva, trazendo ao processo sociopolítico moderno um traço propriamente revolucionário.
Do ponto de vista da cidadania, por sua vez, as condições do capitalismo em expansão e da emergência da questão da igualdade como problema efetivo se ligam à afirmação da ideologia liberal, em que o incipiente impulso igualitário das experiências republicanas clássicas se torna intenso e vocal. Daí que a ênfase "cívica" da cidadania antiga se veja substituída pela ênfase numa concepção "civil" de cidadania, na qual o cidadão por excelência, em vez de ser aquele carregado de deveres e responsabilidades perante a coletividade e o Estado, é antes de mais nada o titular de direitos, que ele afirma, com base em recursos que controla na esfera privada, não apenas contra os demais, mas também contra o Estado potencialmente tirânico e opressor.
Em contrapartia, a afirmação liberal de direitos e igualdade não podia senão universalizar-se e ganhar expressão diretamente social, que tendia a colocar em xeque o próprio capitalismo. Daí que capitalismo e democracia viessem a relacionar-se de maneira que parecia inevitavelmente tensa e instável. Com as massas dispondo do sufrágio, as coisas se encaminhariam forçosamente, na percepção de muitos, quer no rumo da expropriação dos capitalistas e da implantação do socialismo quer no da restauração conservadora e da supressão da democracia (Offe, 1984). O traço revolucionário do processo sociopolítico moderno resultava, assim, no desafio de acomodação "constitucional" dos conflitos, ou de construir a aparelhagem institucional-legal que viesse a enquadrá-los e processá-los de modo rotineiro e capaz de evitar os enfrentamentos violentos. Por meio de vicissitudes variadas, em que a questão social com freqüência assumiu justamente essa feição violenta (sem falar de longas experiências de autoritarismo socialista e fascista ou fascistizante), o processo acabou por realizar, no caso dos países de capitalismo avançado em que chegou a aprofundar-se mais, certa combinação das dimensões "civil" e "cívica" da cidadania.
Nos termos em que o caracteriza George A. Kelly (1979), seria possível falar de um "cívico II", em que o vigor psicológico do patriotismo moderno, da identificação com a nação e da solidariedade nacional representaria a retomada do "cívico I" da cidadania clássica, e também de um "civil II", em que o acesso aos benefícios "clientelistas" do Estado de bem-estar social representaria a expansão da inicial afirmação moderna dos direitos liberais (o "civil I"). Do lado "civil", essa é a lógica da expansão da cidadania exposta por Marshall (1965), culminando na social-democracia de um tipo ou de outro. Do lado "cívico", a ponderação crucial é a de que não se fará construção institucional (e portanto, acomodação "constitucional") efetiva sem o fator de convergência representado por algum grau de identificação com a coletividade abrangente, ou sem a "comunidade" dada pelo sentido de participação conjunta num todo mais amplo - que seria condição para a "cultura política" apropriada, com o consensus on fundamentals que ela exigiria.
Ora, se se trata de criar comunidade nesse sentido, a coletividade de base territorial, referida àqueles que mantêm relações de "co-presença" ou vizinhança (eventualmente de parentesco), provê um foco natural, dizendo respeito ao que Clifford Geertz (1973) designou como os "sentimentos primordiais". A proeza do Estado Nacional moderno foi ampliar a operação dos mecanismos relevantes do âmbito restrito correspondente à cidade-Estado para uma escala muito mais extensa, num processo de integração e centralização que antes não ocorrera senão em experiências imperiais baseadas na conquista que de maneira típica careciam, justamente, do sentimento comunitário.
A integração ou unificação envolveu, por uma parte, um processo de mobilização psicológica, em que a intensificação da comunicação (com freqüência, nos casos clássicos da Europa, favorecida pelo papel catalisador exercido pela hegemonia de uma "área nuclear", na expressão de Deutsch (1967)) permitiu que populações dispersas e "paroquiais" fossem "assimiladas" e passassem a ter como natural a referência ao que viria a ser o país como tal. Por esse aspecto, o processo envolveu a incorporação e a neutralização da relevância de diferenças étnico-culturais e lingüísticas, não obstante as resistências ocorridas em muitos casos e os "irredentismos étnicos" resultantes, que deram origem a nacionalismos de bases mais estreitas.
Esse lado de comunicação e assimilação, porém, se acaba por tornar "natural" para todos que se pense em termos de Estado Nacional (e até por dificultar, em nossos dias, que se escape mesmo analiticamente à perspectiva que assim se define), combina-se sempre de maneira complicada com a questão social e o problema da igualdade. Vejamos alguns matizes na articulação dos dois aspectos na reflexão de dois importantes autores brasileiros.
Tomemos, para começar, Helio Jaguaribe, nome destacado do antigo Instituto Superior de Estudo Brasileiros (Iseb). Trata-se, com Jaguaribe, da defesa explícita e elaborada de uma posição nacionalista, e a articulação dela com a visão da questão social se expressa em relação a uma suposta confluência entre o que o autor chama a "representatividade" e a "autenticidade" das ideologias de classe. A representatividade das ideologias de classe é entendida como o grau de sua adequação aos interesses situacionais que as suscitam, isto é, com os interesses das classes de que presumidamente são oriundas. Sua autenticidade, por sua vez, corresponderia na medida em que, independentemente dos interesses de classe que exprimem, as ideologias formulem "para a comunidade, como um todo, critérios e diretrizes que a encaminhem no sentido de seu processo faseológico, ou seja, que permitam o melhor aproveitamento das condições naturais da comunidade, em função dos valores predominantes na civilização a que pertence". Vista como critério da autenticidade das ideologias de classe sua relação com o desenvolvimento econômico, sustenta Jaguaribe (1958, p.48-50) que se verificaria, no Brasil de pós-1930, uma feliz convergência entre os dois atributos das ideologias, de sorte que lutar pelo desenvolvimento seria, para cada classe, a melhor forma de lutar pelos seus próprios interesses.
É fácil apontar o componente ilusório da aposta de Jaguaribe, que o leva a subestimar o peso autônomo e a dramaticidade do problema da igualdade em nosso país. De um intelectual nacionalista, contudo, caberia esperar essa aposta. Mais revelador é ver o nacionalismo entrar pela porta dos fundos, por assim dizer, nas análises de inspiração marxista da chamada "teoria da dependência", que contou com importante contribuição de Fernando Henrique Cardoso. Não obstante a crítica de esquerda ao nacionalismo que brota do internacionalismo marxista, a denúncia da "dependência" que a teoria envolve redunda fatalmente num nacionalismo e foi sempre lida como tal, sem embargo dos protestos do próprio Cardoso. Pois a denúncia aponta, naturalmente, a condição de autonomia nacional como desiderato contrastante com a condição de dependência - e supõe que os países, como focos de referência "natural" e proeminente da identidade coletiva de seus membros, devem ser sujeitos autônomos. Sem postular o valor da afirmação autônoma das identidades coletivas especificamente nacionais, a teoria não poderia escapar de um dilema que tornaria sem sentido a denúncia nela contida: ou estender a prescrição de autonomia a toda e qualquer coletividade de qualquer escala (que, como coletividade, teria também a sua identidade: caberá livrar o Nordeste brasileiro de sua "dependência" perante o Sudeste?), ou simplesmente abrir mão da denúncia (sem identidade não haverá por que - nem como - haver autonomia) em favor do reconhecimento factual de que as coletividades, como os indivíduos, tendem a relacionar-se sempre em termos que envolvem hierarquia e assimetrias de recursos e poder.
É possível sustentar que o que temos com a "dependência", como conseqüência torta da óptica marxista que a inspira, redunda numa curiosa inversão do que caberia esperar quanto às relações entre os aspectos analítico e normativo da reflexão sobre o nacionalismo. No plano analítico, seria necessário, naturalmente, dedicar a devida atenção aos problemas ligados à nação como foco de definição da identidade pessoal e coletiva e aos múltiplos desdobramentos sociopolíticos relevantes que daí surgem. Já no plano doutrinário ou normativo, foi sempre necessário apontar o irracionalismo ao menos potencial de qualquer nacionalismo, bem como o fato de que o nacionalismo constituiu um importante elemento dos mais negativos eventos da história moderna e de variadas formas de autoritarismo político: o nazi-fascismo, naturalmente, e mesmo o "Brasil Grande" de nossa própria ditadura recente, em que se exacerbava de modo sinistro e violento o apelo à convergência que a análise de Jaguaribe via ocorrer de forma espontânea. Com a globalização e as novas condições mundiais, ademais, as dificuldades se agravam. Se o nacionalismo do Iseb pretendeu substituir, na afirmação da identidade nacional, as ingenuidades do patriotismo tradicional (nossos bosques são mais verdes...) pela ênfase nas tarefas materiais e econômicas da promoção do desenvolvimento do país, as condições criadas pela globalização, em que se desdobram presentemente algumas das tendências salientadas pela própria teoria da dependência, colocam com força uma indagação complicada, embora não de todo nova: a da eventual necessidade de dissociar os problemas de identidade pessoal e coletiva, que em princípio se resolvem no plano da cultura, dos problemas relativos à inserção mais ou menos bem-sucedida dos países na dinâmica econômica planetária, com suas conseqüências quanto às oportunidades materiais de vida criadas para as populações - em nosso caso, para a generalidade dos brasileiros, sobretudo a massa popular mais pobre.
A teoria da dependência, porém, faz o oposto do que surge dessas recomendações. Por um lado, silencia sobre o tema da nação, em razão de pudores ligados à baixa estima em que ele é tido na tradição marxista, e sobre as complicações analíticas produzidas por sua articulação com diferentes aspectos do problema geral. Com isso, ela acaba por vincular, por outro lado, tal como se dava no nacionalismo brasileiro dos anos 1950, a afirmação autêntica da nacionalidade (e, no limite, o próprio sentido da dignidade nacional) a certo ideal equívoco de autonomia econômica dos países.1 Expõe-se, ao mesmo tempo, a uma pergunta difícil, que não é senão a indagação do parágrafo anterior posta em forma mais aguda e que lhe pode ser feita tanto na perspectiva da velha crítica ao nacionalismo martelada por um Roberto Campos quanto, quem sabe, numa perspectiva radical de esquerda: do ponto de vista das oportunidades vitais que se abrem (ou fecham...) para o brasileiro pobre, qual a importância real de que o sobrenome do capitalista que se dispõe a empregá-lo seja Silva, Jones ou Schmidt?
Seja como for, cabe explorar as raízes analíticas e certas ramificações doutrinárias dos perigos autoritários do nacionalismo. Eles certamente têm a ver com a força peculiar dos "sentimentos primordiais" aqui invocados em referência a Clifford Geertz, os quais, por sua vez, se articulam com o caráter "adscritício", em já antigo jargão sociológico, da condição de "nacional" deste ou daquele país: trata-se da imersão, dada pelo próprio nascimento, numa coletividade de base territorial e características "multifuncionais" que envolvem de maneira complexa o indivíduo e por força o moldam e condicionam profundamente. Tais características facilitam o caráter "sufocante" que Ernest Gellner (1996) não se furta a apontar mesmo no "virtuoso" civismo republicano da cidade antiga, que, com sua demanda incondicional de lealdade, não se fazia acompanhar da idéia de direitos civis e tinha traços em comum com o modelo claramente negativo da "umma" islâmica e da pressão ao conformismo e à submissão à fé compartilhada.
Se nos valemos do desiderato de autonomia coletiva tacitamente afirmado pela teoria da dependência, a questão decisiva é a de como haverão de relacionar-se autonomia coletiva e autonomia individual - e a resposta óbvia é a de que, se a autonomia é um valor, sua afirmação no nível coletivo não pode redundar em sua negação no nível do indivíduo. O ânimo nacionalista peca com freqüência justamente por esquecer (ou dispor-se a sacrificar) a segunda em nome da primeira. A ilustração mais dramática e reveladora da contradição envolvida talvez seja o episódio da "regra de mordaça", em que a Câmara dos Deputados dos Estados Unidos se proibiu, em 1836, de considerar e adotar qualquer ação a respeito de petições ou propostas relacionadas com a questão da escravidão, deixando as decisões sobre o assunto à autonomia de cada Estado sob a alegação de que se trataria, na percepção dos Estados do Sul, de algo crucial para sua identidade e seu modo de vida (Holmes, 1993). Do ponto de vista da autonomia como valor, é patente o absurdo da regra, com a autonomia garantida aos Estados do Sul resultando em assegurar a continuidade da escravidão e a negação radical da autonomia individual para muitos.
Dois conjuntos de ponderações para concluir estas breves notas. Em primeiro lugar, na linha das relações que se acabam de mencionar entre autonomia coletiva e individual, destaque-se a cultura de individualismo e pluralismo democrático em que deverá necessariamente traduzir-se o anseio de autonomia. Em vez da fusão e da efusão psicológicas que o ânimo nacionalista e patriótico espera e estimula e do ethos autoritário de que costuma fazer-se acompanhar, o que cabe desejar é antes que os cidadãos cheguem a ter condições de "descentrar-se" com respeito à coletividade, fazendo dela um objeto de lealdade numa postura de civismo sóbrio e reflexivo marcado pela tolerância como virtude por excelência e pela identificação com grupos e categorias variadas que serão objeto de participação voluntária, antes que "adscrita" e imposta (em contraste sobretudo com um "multiculturalismo" que tende a valorizar a multiplicação de identidades fundadas em laços "primordiais" e absorventes e a reeditar, em escala "micro", as dificuldades do nacionalismo "macro"). Tal postura envolverá ainda o reconhecimento de que a autonomia de que se trata não tem como excluir, se pretende servir de base à democracia e ao pluralismo, o componente pragmático que vê como legítima, por parte de cada qual, a busca dos interesses, tomada a expressão como correspondendo genericamente a objetivos próprios de qualquer natureza e à "afirmação de si" que autores como Habermas (1975) e Pizzorno (1966) usam para a própria definição da idéia de interesse - naturalmente, regrada e mitigada a busca dos interesses por aquele civismo sóbrio e tolerante. Esse é o sentido reivindicado por Gellner (1996), por exemplo, para a expressão "sociedade civil", tratando de recuperar uma longa linhagem de reflexão pluralista contra as idealizações inconsistentes e doutrinariamente equívocas que se tornaram comuns na abundante literatura recente dedicada ao tema.
Em segundo lugar, um conjunto importante de qualificações articuladas. Foram mencionados antes o mundo novo da globalização e as dificuldades que ele faz agravar para uma postura nacionalista orientada "instrumentalmente" pela promoção do desenvolvimento econômico. Ocorre, porém, que a globalização e os processos correlatos afetam de maneira importante os problemas de identidade, autoridade e igualdade cuja articulação se destacou, criando peculiar disjunção entre eles. Assim, se a nacionalidade continua a prover o ponto de referência decisivo para o sentido da identidade pessoal (não havendo, na escala transnacional, nada que equivalha ao sentimento de participação numa comunidade que a nação favorece), as questões ligadas a "autoridade" e "igualdade" passam a apresentar-se com feições intensamente mudadas. Não só o Estado tende a ver questionado e debilitado seu papel de administrador dos problemas de integração "sistêmica" e social do capitalismo (sem falar da derrocada mundial do socialismo e de seu desaparecimento como aspiração ou meta relevante); isso redunda em que se veja ameaçada, em favor das asperezas do mercado, a cidadania enriquecida que coroava, na análise de Marshall, um longo processo de desenvolvimento.
Temos, porém, a resiliência do "Welfare State", mesmo nos países em que foi objeto de ataques mais duros, e o jogo político-partidário complexo e variado em torno dele. Além disso, as crises econômico-financeiras que se repetem tornam cada vez mais evidente a necessidade de que algum equivalente funcional do Estado venha a atuar de maneira efetiva no nível planetário em que passaram a operar os mecanismos de mercado. Naturalmente, não há razão para otimismos a respeito: tudo indica que estamos diante de um futuro de turbulências, dificuldades e penoso aprendizado. E as dificuldades são especialmente severas no plano social, em que a dinâmica econômica se tem combinado com desigualdade crescente e com grandes restrições, num mundo em que o capital circula agilmente, à circulação de trabalhadores entre as fronteiras que separam os países economicamente avançados, de um lado, e os demais, de outro.
De todo modo, não só nenhuma construção institucional na escala transnacional deverá contar com os Estados nacionais como atores importantes, mas também, na inviabilidade de algum tipo de keynesianismo e social-democracia transnacionais no futuro visível, não há como abrir mão da ação do Estado para a administração econômica e social no plano nacional - e da solidariedade que a ação do Estado requer. Num país como o Brasil, marcado por desigualdade intensa, isso é tanto mais verdadeiro. Abramos mão das ilusões e mistificações em torno da idéia de identidade: a questão nacional brasileira é, com mais razão do que em outros casos, a questão social, e trata-se de reconhecer que não se fará a sociedade genuinamente democrática e pluralista sem criar as condições materiais necessárias à superação da desigualdade (ainda que ao preço, talvez, da identidade colorida que costuma ser objeto de certa definição e exploração folclórica da imagem do país). Mas, calçando a ação do Estado, algum tipo de nacionalismo, mesmo se orientado pelo espírito crítico de um civismo reflexivo, será provavelmente necessário.
Nota
1 Na verdade, a acusação de "nacionalismo" foi dirigida à teoria da dependência por Francisco Weffort (1971), em velho debate com o próprio Fernando Henrique Cardoso (1971). Mas Weffort, que viria a ser o ministro da Cultura de FHC na Presidência da República, não pensava em cobrar dele maior atenção para a nação e seus correlatos culturais. Seu intuito era antes o de cobrar ortodoxia, apontando a contaminação da perspectiva analítica pela introdução do tema "espúrio" da nação.
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Fábio Wanderley Reis é cientista político, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e autor de Política e racionalidade (Editora UFMG, 2.ed., 2000) e Mercado e utopia (Edusp, 2000). @ - fabiowr@uai.com.br

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