quinta-feira, 3 de janeiro de 2013

A Produção Capitalista do Espaço


Um desejo de considerar as conseqüências geopolíticas da existência sob o modo capitalista de produção. É dessa forma que David Harvey sintetiza o conjunto de objetivos que ambiciona concretizar no quinto capítulo da sua obra intitulada ‘A produção capitalista do espaço'. Para tanto, ele inicia discorrendo sobre as principais características do modo capitalista de produção, no qual elenca a relação social principal do desenvolvimento capitalista, representada pelo excedente de capital e força de trabalho; passa a focar a atenção na questão do investimento, organização espacial, e em seguida nas alianças regionais de classe; e culmina na conclusão acerca da geopolítica do capitalismo, propriamente dita.

David Harvey
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É fundamental, para Harvey, que os leitores da obra dominem o processo de circulação de capital, da maneira pela qual foi investigado e traduzido por Karl Marx, dado que justifica a sobrevivência e a vitalidade permanente do sistema capitalista. Enumera, então, dez aspectos de suma importância, os quais dizem respeito, em suma, às interações periódicas das quais fazem parte mercadorias, utilização e exploração do trabalho vivo, classes e as lutas decorrentes entre capital e trabalho, dinamismo tecnológico, capital, suas possibilidades de desvalorização e investimento e, enfim, as crises que, em sua opinião, são inevitáveis - independente das medidas adotadas para evitá-las - mas que, em função do conhecimento que se tem da sua natureza, podem ser transformadas em momentos catalisadores de criativas mudanças revolucionárias.
Para que seja possível o entendimento integral da inerência destas crises, Harvey se concentra na explicação da relação desempenhada por capital e força de trabalho. O fomento da crise seria, segundo o autor, a tensão constante entre a produção e a absorção não só de capital, mas também da própria força de trabalho. Mais especificamente, ainda que alguns fatores históricos tenham facilitado a concentração urbana dos excedentes, não há garantia de que possam ser reunidos no tempo e no espaço de forma correta, dado que ambos são passíveis de absorção, mas dependem de uma integração em proporções corretas. Há que se relevar, ainda, que a força de trabalho não é uma mercadoria como outra qualquer, e que sob vários aspectos não está a controle do capitalista - sendo que este é mais um fator que impulsiona a desvalorização que tanto interfere na dinâmica da acumulação.
Outra variável que deve ser inserida na análise é o que Harvey chama de tempo de rotação socialmente necessário, que seria o tempo médio preciso para girar certa quantidade de capital em relação à taxa média de lucro sob condições normais de produção e circulação. O capital se subdivide, então, em duas categorias, e aqui iremos nos concentrar no tipo de capital que circula em ritmo mais lento: como representação de um excedente de produção, este capital pode ser absorvido pela criação de infra-estruturas de longo prazo, as quais servem de apoio à criação de excedentes adicionais, o que denota certa sustentabilidade ao sistema capitalista. Contudo, como capital fictício que é, este investimento em longo prazo se resume a uma demanda sobre trabalho futuro, e não se prevê a probabilidade de desvalorização de excedentes que caracteriza o sistema capitalista, como o autor elencou no início do capítulo, o que deixaria de assegurar a sua remuneração pretendida. O equilíbrio dinâmico sucumbe, sendo assim, sob duas possibilidade de formação da crise: quando o capital é realizado por meio do crescimento produtivo, ou quando é desvalorizado.
Tal é a problemática que Harvey sustenta ser própria do fluxo de circulação de capital que caracteriza o sistema em questão. Ele mesmo passa a questionar, então, se entre expansão ou reestruturação geográfica, qual seria a alternativa mais viável para contradizer as constatações feitas anteriormente, que pressupõem apenas a globalização das crises, e o surgimento e permanência de conflitos geopolíticos de formação e solução das mesmas. Harvey vai de encontro à Karl Marx - para quem a transição socialista reservava resultados distintos de lugar para lugar - quando assegura que a manutenção do capitalismo se deve à transformação das relações espaciais e à ascensão de estruturas geográficas específicas. E contesta a internacionalização de interesses que Lenin propõe: na sua opinião, a expressão geográfica que Lenin dá ao capitalismo, por meio da teoria do Estado, apenas serve de comprovação do curso de desenvolvimento do capitalismo como sistema, e generaliza a expressão social e política particular da geografia histórica em cada localidade.
Para Harvey, é fato que Marx se concentrou na análise do tempo, e não do espaço, o que pode justificar algumas das lacunas que restaram na sua teoria em relação à própria geopolítica do capital, mas por outro lado é aceitável quando se dimensiona a importância do tempo na produção capitalista. O autor se dispõe a fazer, em seguida, o aprofundamento do debate em questão, e suscita o que chama de coerência estruturada, que seria a união do capital e da força de trabalho em uma unidade territorial distinta, criando, pelas mãos de capitalistas individuais, condições locacionais particulares. Esta coerência estruturada se caracteriza pela livre rotação do capital, e podendo ser formalmente aceita pelo Estado, além da sua disseminação informal - por meio do fomento de culturas regionais - passa a ser ponto de impulso para a definição de espaços regionais.
Há que se relevar, entretanto, que uma série de fatores pode questionar e desequilibrar estes espaços, como a livre mobilidade de capital, a mobilidade geográfica da força produtiva e a existência de infra-estruturas sociais que viabilizem tais fluxos geográficas. A produção capitalista perde a espécie de estabilidade regional gozada anteriormente. Mais do que isso, se chega a um ponto dicotômico no qual as forças de acumulação e superacumulação representam a alternativa de que se servem capitalistas e trabalhadores para se moverem, mas também a forma pela qual são constrangidos e estimulados a permanecer em localidades distintas. Enfim, Harvey conclui, de forma excepcionalmente coerente, que as novas contradições do capitalismo se revelam mediante a formação e reformação das paisagens geográficas.
E é um choque de consciência que Harvey pretende realizar no tópico final do capítulo aqui analisado. Em suma, o autor faz uso de vários exemplos históricos do século XX, como o boom pós-guerra, para revelar a inexistência, ou mesmo a queda, de várias das estruturas sócio-econômicas que apresentou e explicou ao leitor durante toda a obra. Aprofunda a lástima da situação discorrendo sobre as reações protecionistas - como os movimentos agressivos de exportação de desvalorização - que surgem e que ocasionam mudanças, seja de cunho regional ou internacional, as quais descaracterizam as políticas nacionais dos governos, as alianças regionais de classe e os conflitos entre elas.
Ainda que seja um autor de opiniões concretamente revolucionárias - mais especificamente no que diz respeito à constatação da necessidade da substituição integral e imediata do modo capitalista de produção, sua estrutura expansível e sua natureza tecnologicamente dinâmica de circulação - o arcabouço teórico pelo qual Harvey sustenta seus argumentos é sim, de certa forma, inquestionável. É na forma lúcida e magistral pela qual o autor discorre sobre a estrutura geopolítica relativamente estável, da própria estrutura que condiciona, viabiliza e condena a dinâmica capitalista, que reside a maior validade da leitura do excerto que nos foi apresentado.
*Acadêmica de Relações Internacionais

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