segunda-feira, 1 de abril de 2013

Cruz credo!


Cruz credo!

Religião deveria ser assunto estritamente privado. Mas parece que as divindades insistem em desfilar pela mídia, ora pela voz de monarcas absolutos que ganham selo de infalibilidade, ora pela invasão indecente de espaços públicos por rituais e símbolos religiosos. Feliciano está aí para provar.
E eis que vos dou a informação: Deus acabou (Carlos Heitor Cony, em Informação ao Crucificado)

O que não se troca por alguns pinhões. Na vila, uma família costumava cozinhar essas sementes do pinheiro-do-paraná quando a temperatura caía um pouco. Certo dia, convidaram o Menino para experimentar. O sabor grudou na boca e na memória. Ainda está lá. Depois, o convite irrecusável: que tal um cineminha, matinê na praça Saens Peña ? Até aí, paraíso. Depois do filme, o espanto. O casal era religioso e levou o alarmado guri para a missa das seis. Jamais pisara numa igreja. Ouvira tantas histórias terríveis sobre a Inquisição, a expulsão de comunidades judaicas tradicionais da Península Ibérica por reis católicos, a cumplicidade recorrente do clero católico com perseguições antissemitas, os insultos contra os “deicidas”. Seus avós maternos, poloneses, vieram de um país onde a judeofobia tinha fortes ligações com as mensagens que se transmitiam nas igrejas. Quantos linchamentos aconteceram por conta da crendice de que os judeus fabricavam, com sangue de crianças cristãs, a matsá, o pão ázimo servido no Pessach ? 

Todas essas imagens percorreram a cabeça do Menino. Incômodas, assustadoras. E pensar que tudo começara com pinhões ... O ambiente era pesado. Sem saber o que fazer, copiou pateticamente os gestos que faziam ao seu lado: ajoelhou-se, juntou as mãozinhas, simulou concentração. Sentiu-se muito mal. Era como se estivesse traindo, involuntariamente, sua árvore familiar. Voltou para casa tão intimidado e sufocado pela culpa que não teve coragem de conversar com os pais. Tinha passado por uma violência dessas que não desaparecem. Mantida a dimensão histórica, foi muito parecida com a que sofreram os povos indígenas supliciados e catequisados por uma “crença superior”.

Gente grande não aprende. Religião deveria ser assunto estritamente privado, e sobre isso já falei bastante. No entanto, parece que as divindades insistem em desfilar pela mídia, ora pela voz de monarcas absolutos que ganham selo de infalibilidade, ora pela invasão indecente de espaços públicos por rituais e símbolos religiosos. Pesquisa recente do Ministério da Educação mostrou que, em 51% dos colégios públicos brasileiros, há o costume de fazer orações ou cantar músicas religiosas. Os diretores destes educandários, legalmente laicos, admitiram que as aulas de religião são obrigatórias. Pior: os alunos que se recusam a obedecer esta regra são discriminados e, às vezes, ofendidos. Atenção: estamos falando de crianças, precariamente aparelhadas para enfrentar adultos com poder de punição. Numa escola da Baixada Fluminense, uma professora (professora ?), sabendo que uma de suas alunas se identificava com o candomblé, exigiu que ela rezasse o seguinte: “Ó pai bondoso, livra-nos de todo espírito do mal, para quem é da macumba entrar na igreja”. Se você é goiano, tem duas chances em três de ver seu filho, matriculado em escola pública, sofrer este tipo de atentado contra a integridade psíquica. Quem não participa das aulas obrigatórias, raramente tem atividades alternativas e, claro, fica estigmatizado pelos colegas. “Isso é sofrimento, e sofrimento marca para sempre, diminui a autoestima, compromete o aprendizado, a subjetividade, a vida”, observou a professora Stela Guedes Caputo, da UERJ. Em Ilhéus, na Bahia, quase foi implantada uma esdrúxula Lei do Pai Nosso. Aprovada pela Câmara dos Vereadores local e sancionada pelo prefeito petista, obrigaria os alunos da rede pública a rezarem o Pai Nosso antes do início das aulas. A barbaridade foi, felizmente, vetada pelo Ministério Público estadual.

Num auditório da Assembleia Legislativa do Rio, celebram-se cultos evangélicos semanais há nove anos. A ofensiva dos neopentecostais ganhou um símbolo forte com o “caso” Marco Feliciano, mas está longe de se restringir a ele. Acho educativo assistir aos programas dos chamados telepastores. Assisti pedaços de alguns. É muito triste. Trata-se do uso comercial da fé, com toques surrealistas de curandeirismo (estivéssemos na Inquisição, haveria fila de fogueiras para alguns desses espertalhões). Ouvi a defesa da “Teologia da Prosperidade”, que justifica as desigualdades sócio-econômicas com base em interpretações bíblicas. Constrói-se o Mal sustentado em considerações arcaicas e preconceituosas. Até quando a sociedade vai acompanhar passivamente essa ofensiva das trevas ? Já há bancadas religiosas, penetração significativa em meios de comunicação de massa, conchavos com políticos e empresários de alto coturno. Aceitaremos inertes o bloqueio das viúvas do medievo para que não se avance nas pesquisas com células-tronco? 

Como bem disse o Veríssimo, o engraçado é que todo esse bafafá tem base apenas numa hipótese: a de que haja “um Deus que criou o mundo e ouve as nossas preces”. Sou, admito, um leitor oportunista da Bíblia. Ocorre que, se ela revela mesmo uma mensagem elevada, o texto não passa de tradução equivocada. Quem sabe já não está na hora de uma segunda edição ? Vou ficar numa parte que me é mais familiar: o Êxodo. É uma história tão brutal, tão perversa, tão mesquinha, que caberia num filme B de terror. Vejam-se as pragas que pressionaram o faraó a libertar os hebreus. A briga era contra a elite dominante, a corte egípcia. Deus, no entanto, castiga indiscriminadamente toda a população egípcia, escravos inclusive. Hoje, seria levado ao Tribunal Penal Internacional, sob a acusação de punição coletiva. O assassinato dos primogênitos, que chega ao requinte de incluir os animais, é sinal de barbárie. Moacyr Scliar, de saudosa memória, escreveu um belíssimo conto onde o narrador é um egípcio que vai sofrendo, sucessivamente, os castigos originados na disputa de Moisés com o tirano. Que não me venham, pois, falar de benignidade, de moral e ética. Carlos Heitor Cony foi seminarista. Perdeu a fé e descreve o processo num livrinho dolorido. Lá pelas tantas, diz que, no Seminário, costumava-se dizer: “Procura ter uma vida digna de Deus e não terás dúvidas sobre a sua existência”. Que vida seria essa?

Agora mesmo, o novo papa deveria estar se fazendo essa pergunta. Há uma hemorragia de fiéis no mundo inteiro. Depois do servicinho prestado por João Paulo II no crepúsculo da Guerra Fria, terá chegado a vez de um papa latino-americano ajudar a frear os processos reformistas de Nuestra América, jogando sua pesada artilharia ideológica contra movimentos populares ? Segregará ainda mais os seguidores da Teologia da Libertação, considerados “perigosos” para um sistema que oprime, degrada e mata ?

O Menino saiu pelo mundo. Substituiu pela música, não sem sacrifício, aquela tarde remota. Admira, sem sobressaltos, cantos gregorianos, ouve, encantado, a Missa de Réquiem, de Mozart, e a Cantata 141 (Jesus, alegria dos homens), de Bach. Os acordes são sábios, mesmo não oferecendo pinhões de entrada.

Demo: Acabo de ler a última do deputado/pastor. Marco Feliciano declarou num culto em Minas que que “pela primeira vez na história desse Brasil, um pastor cheio de espírito santo conquistou o espaço que até ontem era dominado por Satanás”. Para quem não acredita nessa divisão simplista e pueril do Universo, ser comparado ao Coisa Ruim não tem a menor importância. Acontece que, por trás desses discursos hidrofóbicos, o notório paladino da moral e dos bons costumes (?) nocauteia a democracia com dois golpes. No primeiro, liquidifica a linguagem parlamentar, colocando-a de castigo no púlpito. Para um povo desabituado a viver a política no cotidiano, a desqualificá-la como arte de marginais, essa é uma pancada potente. No segundo, alavanca uma multidão de fiéis para uma luta que eles, por absoluta desinformação, não estão habilitados a enfrentar. Por oportunismo eleitoral, os partidos mais esclarecidos, aninhados na miragem do poder, se omitem da função pedagógica essencial de promover um debate sério sobre essas questões. Preferem manter um perfil “sóbrio” a mexer com gente que, pela estridência e pelo obscurantismo, confirma a observação de Marx sobre a religião como “ópio do povo”.

(*) Engenheiro químico, é militante internacionalista da esquerda judaica no Rio de Janeiro.

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