Como se já não bastassem os impactos do petróleo, a previsão é de que venha agora – ou melhor, volte – o carvão. Em sua coluna de dezembro, Jean Remy Guimarães fala sobre as mazelas por trás desses dois combustíveis, poluentes e não renováveis, cujas demandas só fazem aumentar e acirrar disputas.
Jean Remy Davée Guimarães
Jean Remy Davée Guimarães
Pintura de Herman Heyenbrock, de uma fábrica do século 19, movida a carvão. Durante anos, este foi praticamente o único combustível em uso. Dentre os vários disponíveis hoje, é o mais sujo. Para colunista, sua ressurgência ilustra fracasso socioambiental.
Em um planeta muito, muito distante, e muito, muito habitado, a principal fonte de energia é tóxica, altera o clima do planeta com risco de torná-lo inabitável e tem prazo de algumas décadas para acabar. Seus habitantes, intoxicados pelos subprodutos desse combustível, não têm mais discernimento e organização para sair desse atoleiro e trocam tal combustível por outro, mais tóxico ainda.
Se este fosse um roteiro de filme de ficção científica, você dificilmente sairia de casa para assisti-lo. Mas nem precisa, já estamos vivendo essa história. O planeta em questão é o nosso, o primeiro combustível é o petróleo e o segundo é o carvão. Sim, segundo a Agência Internacional de Energia, até 2022 o carvão se tornará a principal fonte de energia no mundo. As fontes alternativas e os milagres tecnológicos que prometiam energia abundante, barata e limpa não chegaram a tempo ou não suprem à demanda.
As fontes alternativas e os milagres tecnológicos que prometiam energia abundante, barata e limpa não chegaram a tempo
A demanda só faz aumentar e, para atendê-la, vamos voltar no tempo (ou regredir na evolução?) e cair novamente nos braços (garras?) do combustível mais sujo de todos. Se hoje o carvão é um de vários combustíveis, durante muito tempo foi praticamente o único. Sem ele, não haveria a revolução industrial.
Mas a geração de 1 quilowatt (kW) a partir do carvão produz muito mais CO2 e fuligem do que o uso de qualquer outro combustível conhecido, e o mesmo vale para os efeitos climáticos e os impactos sobre a morbidade e mortalidade.
- Para gerar 1 kW, o carvão produz muito mais gás carbônico e fuligem do que o uso de qualquer outro combustível conhecido.
Vinte anos depois da Eco-92, a ressurgência do carvão é uma previsão sombria e muito, muito constrangedora, que confirma o fracasso ou a timidez – para ser diplomático – das muitas discussões, reuniões e negociações e das poucas medidas concretas para limitar as emissões de carbono e o aquecimento global. As emissões globais de gases de efeito estufa só fizeram crescer e já ultrapassaram o limite que manteria o aumento da temperatura média do planeta, em 2100, abaixo de 2 graus centígrados.
Mas os principais consumidores atuais e futuros de carvão, esse ouro negro e sólido, são a China, a Índia e os Estados Unidos, portanto isto não seria problema nosso, se a biosfera não fosse uma só. De fato, o consumo de carvão no Brasil é pequeno e, principalmente, de carvão vegetal, mas sua produção tem efeito ambiental devastador e é realizada em condições de trabalho comparáveis as da revolução industrial, isto é, altamente insalubres e próximas às da escravidão – diplomacia outra vez.
Benesse ou maldição?
Mas esses temas não frequentam muito o noticiário. Estamos mais preocupados com o ouro negro e líquido de nosso petróleo. Ele é tão finito quanto o petróleo dos outros, é mais sujo, mas ninguém parece preocupado com isso porque sua exploração geraroyalties que irrigam generosamente os orçamentos de estados e municípios produtores e não produtores.
Mesmo um olhar distraído sobre as cidades beneficiadas por essa ducha orçamentária percebe as distorções geradas por aparente benesse. Nelas, o PIB per capita é quase europeu, mas portais de mármore e calçadões de porcelanato convivem com indicadores socioambientais de países africanos, ocupação caótica, especulação, corrupção e violência. Mas não se empolgue, pois isto era antes da descoberta do pré-sal; éramos felizes e não sabíamos.
A quantidade de petróleo estimada nas jazidas do pré-sal é tentadora e os novosroyalties mais ainda, embora ambos sejam, por enquanto, apenas promessas. O desafio tecnológico de extrair petróleo perfurando quilômetros de sedimentos marinhos é imenso.
Não sabemos ao certo se vai dar certo e nem quanto vai custar, mas a partilha dessa herança maldita já semeou a discórdia e a desconfiança entre estados e poderes da nação, lembrando clássicos do cinema como O tesouro da Sierra Madre e outros menos clássicos como Os deuses estarão loucos? ou qualquer dos muitos filmes em que os bandidos se matam uns aos outros para ficar com fatias maiores de um botim.
- Plataforma da Petrobras, empenhada em extrair petróleo das camadas pré-sal, a milhares de metros de profundidade no subsolo. Apesar de a extração representar ainda um enorme desafio tecnológico, os 'royalties' a serem recolhidos do resultado de tal atividade já semeiam a discórdia no país.
Na ficção, tiros, facadas e traições a granel. No noticiário brasileiro atual, liminares, ações no Supremo Tribunal Federal, vetos presidenciais... tudo para promover ou impedir mudanças nas regras de partilha dos royalties do petróleo entre estados produtores e não produtores.
Além de ambição e olho gordo, a riqueza fácil dosroyalties traz o desestímulo à diversificação da matriz energética, aumenta a desigualdade e a inveja e faz crescer pelo na mão
Além de ambição e olho gordo, revelando as piores facetas morais dos atores sociais envolvidos nessa rinha, a riqueza fácil dosroyalties traz o desestímulo à diversificação da economia em geral e da matriz energética em particular, aumenta a desigualdade e a inveja e faz crescer pelo na mão. Cabe questionar: é benesse ou maldição? Perguntem aos nigerianos e venezuelanos.
A simples disposição de tentar uma extração tão complexa e arriscada é um sintoma dos tempos atuais. Os recursos que estavam mais à mão já foram extraídos. Isto vale para petróleo, carvão, outros minérios, lenha, água potável. Sobraram os pré-sais, o sujíssimo xisto, jazidas em áreas indígenas, parques e reservas. O lobby para a revisão dos limites dessas áreas está ativíssimo, no Brasil e no mundo.
Não sei se o mundo vai acabar no dia previsto para esta coluna sair, mas tudo isso me dá a desagradável sensação de que o fim já começou.
Jean Remy Davée GuimarãesInstituto de Biofísica Carlos Chagas Filho
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Universidade Federal do Rio de Janeiro
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