segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Salada mista


DEBATE ABERTO

Salada mista

Cinco pequenas anotações para encerrar o ano. Um filme, a história de Dorothy Counts, a relação de Nelson Rodrigues com a gastronomia e um fragmento do humor judaico. Esperança, liberdade, luta, prazer, bom humor, poesia. Vida. Que todos tenham um excelente 2013.
Com quase vinte anos de atraso, assisti um grande filme. Conhecido em português como Asas da liberdade, prefiro o original em inglês: The Shawshank redemption. Reflete melhor a história. Interpretações inesquecíveis de Morgan Freeman e Tim Robbins. Shawshank é uma prisão, dessas que assombram nosso ministro da Justiça, que prefere morrer a estar numa delas. Não vou entrar em detalhes, para não estragar o prazer de quem quiser assistir, o que recomendo fortemente. 

Cito apenas uma cena. Andy Dufresne (Tim Robbins) está preso por ter supostamente assassinado a esposa, flagrada na cama com o professor de golfe. Clama inocência e, mesmo com o passar dos anos, jamais abandona um estilo introspectivo e rebelde. Certa vez, num golpe de sorte, fica sozinho na sala de som da cadeia, que servia apenas para reverberar ordens aos internos. Tranca a porta de entrada, pega um LP velho, que acaricia como a um sonho perene, nostálgico e querido, coloca na vitrola e acopla com o alto-falante, que dava para o pátio interno. Os presos param, hipnotizados. Por aquele aparelho de som, normalmente porta-voz do arbítrio e da violência, saía o dueto Sull’aria ? Che soave zeffiretto, da ópera As bodas de Fígaro, de Mozart. 

“Não entendo patavina do que essas italianas estão cantando”, comenta o personagem de Morgan Freeman, “mas parece sublime, como um pássaro que sai da gaiola”. O encantamento é subitamente interrompido, quando os guardas invadem a sala de som e desligam a vitrola. Andy é punido com quinze dias de solitária. Ao sair, saudado como “maestro” por seus companheiros, diz que não ficou sozinho na cela-castigo. Ante a surpresa geral, garante que fechava os olhos e conseguia ouvir Mozart. “Quem está com música, não está sozinho. Está livre”. Transcrevo de memória, mas o sentido era esse mesmo. E que sentido !

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No dia 4 de setembro de 1957, a cidade de Charlotte, no sul dos Estados Unidos, foi sacudida. Dorothy Counts, uma adolescente de 15 anos, tornava-se a primeira negra a ser aceita num colégio até então exclusivo para brancos. Durante quatro dias, foi insultada, cuspida e agredida com pedradas. Quatro intermináveis dias. Quando o carro de seu irmão teve um vidro estilhaçado, Dorothy viu que ela não era mais o alvo único: sua família também corria risco. Polícia e direção da escola ignoraram as denúncias e o pai de Dorothy foi forçado a tirá-la do colégio. 

Acabou se formando em pedagogia e trabalhou, durante muitos anos, ajudando crianças vítimas de abusos. Seu gesto de resistência, mesmo abortado pela estupidez racista, integra, junto com Rosa Parks e tantos outros, o painel dos que demoliram, pedra por pedra, o segregacionismo nos Estados Unidos. O racismo, lá como cá, não acabou, mas Dorothy simboliza uma luta que se espalha por muitas frentes.

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Ruy Castro, um dos meus gurus, foi convidado a fazer palestra em São Paulo sobre a relação de Nelson Rodrigues com a gastronomia. Pesquisa daqui, assunta dali, descobriu uma crônica. Reproduzo: “Um mendigo imundo e morto de fome é recolhido por uma família, sentado a uma mesa na cozinha e servido de um prato capaz de alimentar uma tropa. Pouco depois, faz uma pausa, olha em torno e pergunta: Tem uma pimentinha ? Ou seja, matar a fome não é tudo – há que haver lugar para a fantasia”.

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Por falar em mendigo, aí vai um fragmento do inesgotável repertório do humor judaico, o tão peculiar humor que mistura auto-ironia, sarcasmo e, vá lá, uma pitadinha de melancolia. Um mendigo judeu chegou à casa do Barão de Rothschild, bateu na porta e exigiu que o barão o atendesse pessoalmente, porque tinha algo muito importante para lhe dizer. Primeiro, a empregada tentou mandá-lo embora, depois o secretário e, finalmente, o próprio barão apareceu. O mendigo lhe pediu, então, uma esmola. 

Rothschild ficou furioso. “Foi para isso que você me mandou vir pessoalmente ? Pode-se saber por que você não pediu para a empregada ou ao meu secretário ?”. “Querido barão”, disse o mendigo, “o senhor pode ser o maior financista do mundo, mas não venha me ensinar como pedir esmola”.

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Heaven and earth they’ll pass away pass away/Heaven and earth gonna pass away pass away/Heaven heavenWoody Guthrie heaven/and earth bound to pass away/But my words/They’ll never ever pass away./City and town they’ll pass away pass away/Town and city both pass away pass away/Dreams and stars they’ll pass away/Not a word of mine/Will ever pass away./Country and farm they’ll pass away pass away/Farm and country they’ll pass away pass away/Not a word of mine/Will ever pass away./ Heaven and earth they’ll pass away pass away/Heaven and earth gonna pass away pass away/Heaven heaven heaven/and earth bound to pass away/Not a word of mine/Will ever pass away
(Pass away, do poeta, cantor, homem engajado e grande figura Woody Guthrie, inspirador, entre muitos outros, de Bob Dylan, Joan Baez e dos Klezmatics).

Esperança, liberdade, luta, prazer, bom humor, poesia. Vida. Que todos tenham um excelente 2013.

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