O próximo Afeganistão?
O Mali representa o mais claro caso de paralisia geopolítica. Todas as maiores e menores potências da região estão genuinamente preocupadas, mas nenhuma parece ter vontade ou capacidade de agir. (Artigo publicado em 1 de novembro de 2012).
Immanuel Wallerstein
Immanuel Wallerstein
Tropas francesas em Bamako. Foto de Voice of America, Wikimedia Commons
Até há pouco tempo, poucas, muito poucas pessoas, fora dos vizinhos e da anterior potência colonial (França), tinham sequer ouvido falar do Mali, e muito menos sabiam qualquer coisa sobre a sua história e política. Hoje, o Mali do norte foi tomado militarmente por grupos “salafistas” que partilham as posições da Al-Qaeda e praticam a mais dura versão da sharia– recorrendo à lapidação e à amputação como forma de punição.
Esta conquista foi condenada por uma votação unânime do Conselho de Segurança da ONU, que a considerou uma “ameaça à paz e à segurança internacionais”. A resolução citou “a situação humanitária em rápida deterioração” e o “crescente entrincheiramento de elementos terroristas” e as potenciais “consequências para os países do Sahel e além”. As Nações Unidas declararam estar dispostas a considerar a formação de uma “força militar internacional [para recuperar] as regiões ocupadas no norte do Mali”.
A resolução foi unânime mas sem força. De facto, o Mali representa o mais claro caso de paralisia geopolítica. Todas as maiores e menores potências da região e além estão genuinamente preocupadas, mas nenhuma parece ter vontade ou capacidade de agir, por medo de que a sua ação tenha como consequência o que se chama de “afeganistização” do Mali. Além disso, há pelo menos uma dúzia de diferentes atores envolvidos, e quase todos estão profundamente divididos entre eles.
Como começou isto tudo? O país chamado Mali (que se chamou Sudão francês durante o domínio colonial que começou em 1892) é um estado independente desde 1960. Inicialmente, tinha um governo laico de um só partido, que era socialista e nacionalista. Foi derrubado por um golpe militar em 1968. Os líderes do golpe, por seu lado, criaram outro regime de partido único, mas de orientação para o mercado. Foi por sua vez derrubado por outro golpe militar em 1991, que adotou uma constituição que permitia a existência de múltiplos partidos. Não obstante, um só partido continuava a dominar a situação política. Mas devido aos processos eleitorais multipartidários, o regime do Mali foi então saudado no ocidente como “democrático” e exemplar.
Durante estes tempos, os políticos e funcionários públicos civis em sucessivos governos vieram principalmente de grupos étnicos do sul, que representa 40% do país. O norte mais escassamente povoado, que representa 60%, era povoado pelos grupos tuaregues que era marginalizados e se ressentiam disso. Periodicamente revoltavam-se e falavam na vontade de ter um estado independente.
Muitos tuaregues fugiram para a Líbia (e para a Argélia) cujas regiões meridionais são também povoadas por tuaregues. A confusão que se seguiu à queda de Muammar Khadafi permitiu que os soldados tuaregues obtivessem armas e voltassem ao Mali para participar na luta pelo Azawad, o nome que deram a um estado independente tuaregue. Organizaram-se como o Movimento Nacional para a Libertação do Azawad (MNLA)
Em 22 de março, um grupo de jovens oficiais dirigidos por Amadou Haya Sanogo anunciou um terceiro golpe pós-independência. Alegaram especificamente que a principal razão do golpe era a ineficácia do exército maliano para lidar com as pretensões secessionistas do MNLA. A França, os Estados Unidos e a maioria dos estados da África ocidental declararam forte oposição ao golpe e exigiram a restauração do governo derrubado.
Foi concluído um difícil compromisso entre as forças Sanogo e o regime anterior, no qual assumiu um novo presidente ad interim. Este escolheu um primeiro-ministro com ligações familiares ao líder do golpe de 1968. Até hoje, não é claro quem controla o quê no Mali do sul. Mas o exército é mal treinado e incapaz de desencadear uma ação militar a sério no norte do país.
Entretanto, no norte, os muçulmanos relativamente laicos do MNLA procuraram fazer alianças com grupos mais fundamentalistas. Quase imediatamente, estes últimos expulsaram o MNLA e assumiram o controlo de todas as principais cidades do norte do Mali. Contudo, estes elementos mais fundamentalistas eram de facto três grupos diferentes: o Ansar Eddine, composto por tuaregues locais; a Al-Qaeda do Maghreb (AQIM), composta principalmente de não-malianos; e o Movimento pelo Tawhid e a Jihad na África Ocidental (MUJAO), uma rutura do AQIM. O MUJAO tinha rompido com o AQIM, acusando-o de ter interesse exclusivo pelo Norte de África. Quereriam expandir a sua doutrina aos países da África ocidental. Estes grupos controlam diferentes áreas e não é claro quão unidos são, tanto taticamente quanto em termos de objetivos.
A próxima série de atores são os vizinhos, todos eles descontentes com o facto de os grupos “salafistas” terem assumido o controlo efetivo de uma região tão grande, grupos que não escondem o desejo de expandir as suas doutrinas aos vizinhos. Os vizinhos, porém, também estão divididos quanto ao que fazer. Um grupo é a Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (ECOWAS), que consiste em 15 estados – todas as ex-colónias da Grã-Bretanha, da França, de Portugal, mais a Libéria – com a única exceção da Mauritânia.
A ECOWAS tem querido ajudar a resolver as diferenças dentro do governo maliano. Deram a entender que poderiam enviar algumas tropas para reconquistar o controlo do norte do Mali. O problema era duplo. O grupo contestatário no sul do Mali teme uma intervenção semipermanente da ECOWAS, especialmente da fação Sanogo. E o único país que efetivamente tem tropas para oferecer é a Nigéria, que encara esta possibilidade com muita relutância porque precisa destas tropas para enfrentar o seu próprio problema “salafista” interno, o Boko Harem.
A Mauritânia, que foi mais bem sucedida que outros governos oeste-africanos na contenção dos grupos “salafistas”, teme que estas forças se expandam para a Mauritânia, principalmente se decidir participar militarmente na luta contra elas no Mali. A Líbia, para além do facto de enfrentar uma intensa agitação interna entre os seus muitos grupos armados, teme principalmente que as populações tuaregues no sul da Líbia se unam a um Azawad maior.
Tanto a França quanto os Estados Unidos sentem a urgência de expulsar os “salafistas” do norte do Mali. Mas os Estados Unidos, sobrecarregados militarmente como estão, não querem enviar quaisquer tropas. A França, ou melhor, o presidente Hollande, está a assumir uma postura mais de força. Parecem estar prontos a mandar tropas. Mas a França é a ex-potência colonial, e as tropas francesas no Mali podem suscitar uma forte resposta nacionalista.
Assim, o que França e Estados Unidos estão a tentar fazer é convencer a Argélia, que faz fronteira com o Mali pelo norte e tem um exército poderoso, a liderar a operação militar. Os argelinos estão hiper-dúbios em relação à ideia. Por um motivo, o sul da Argélia é uma região tuaregue. E também porque o governo argelino considera que conteve o perigo “salafista” até agora, e teme fortemente que uma intervenção militar no Mali desmanche essa contenção.
Assim, todos querem expulsar os grupos “salafistas”, desde que algum outro faça o trabalho sujo. E grupos importantes em todos estes países opõem-se a qualquer ação, alegando o perigo da “afeganistização” da situação. Quer dizer, temem que a ação militar contra os “salafistas” os fortaleça, em vez de os enfraquecer, atraindo a ida de indivíduos e grupos que seguem a orientação da Al-Qaeda para o norte do Mali. O Afeganistão tornou-se o símbolo do que não se deve fazer. Mas não fazer nada é outra forma de definir uma paralisia geopolítica.
A conclusão é que o Mali está a sofrer da cena geopolítica caótica. O que parece mais provável é que não haja intervenção militar. Resta ainda saber se as populações locais no norte do Mali, acostumadas a uma versão “sufi” muito tolerante do Islão e agora muito descontentes, se vão levantar contra os “salafistas”.
Tradução, revista pelo autor, de Luis Leiria para o Esquerda.net
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