Razões da intervenção imperialista de França
A intervenção da França no Mali inscreve-se numa longa tradição de intervenções. Desde a independência das suas colónias africanas, a França interveio sessenta vezes. A estratégia da França é manter a sua influência política e económica através de um apoio inquebrantável a várias ditaduras que promovem os interesses franceses
Paul Martial
Paul Martial
Tropas francesas embarcam em avião dos EUA para o Mali. Foto de U.S. Air Force Staff Sgt. Nathanael Cal
Em geral, quando o governo francês se ocupa dos malianos é para os expulsar; por que, de repente, se transformou em defensor do povo do Mali? Para tentar responder a esta pergunta, é inevitável assinalar as responsabilidades da França na crise de Mali.
1. As responsabilidades de França na crise do Mali
1.1 As políticas de ajuste estrutural
A crise da dívida nos anos 80 teve um impacto dramático no continente africano. Para o Mali, em 1968, a dívida era de 55 mil milhões de francos franceses, mas em 2005 tinha atingido os 1.766 mil milhões. Os planos de ajuste estrutural e as políticas da Iniciativa dos Países Pobres Altamente Endividados (PPAE) tiveram consequências desastrosas no Mali, dando lugar à privatização em massa das empresas malianas em benefício de multinacionais, na frente das quais estão as francesas. A distribuição de energia elétrica passou para o controle da Bouygues, que está também presente na indústria de extração mineira, como é o caso da mina de ouro de Morila. A Companhia de Desenvolvimento Têxtil do Mali, que geria o sector do algodão, foi vendida parcialmente à Dagris. A Orange, através da sua filial Ikatel, tomou conta das telecomunicações. O Escritório do Niger, que gere a terra cultivável da bacia, converteu-se num promotor do açambarcamento de terras. A isto se soma a presença de multinacionais como a Delmas, a Bolloré com armazéns de 100.000 m2 para o armazenamento de algodão. A segunda consequência é o debilitamento de um Estado incapaz de cumprir os seus deveres sociais e de soberania. Os serviços de saúde e educação estão a desmoronar-se, o exército – como se viu – é totalmente incapaz. Esta tendência é mais pronunciada no norte do país, que é a região mais pobre.
1.2 Corrupção em massa
Ao mesmo tempo, a classe política no Mali é especialmente corrupta. Amadou Toumani Touré (ATT) e o seu clã têm armazenado milhões de dólares através da corrupção e do tráfico ilegal, especialmente no norte do país. O tráfico de todo o tipo financia não só os jihadistas, armados ou não, como também também a hierarquia militar e a classe política. A França sempre apoiou Amadou Toumani Touré que mesmo tendo devolvido o poder aos civis após o golpe de estado, se apresentou e ganhou as eleições presidenciais de 2002-2007 e depois 2007-2012, numas eleições cuja transparência e limpeza foram muito questionáveis. Como de costume, a diplomacia francesa tolerou e apoiou ATT, apesar de conduzir ao país ao abismo.
1.3 A intervenção na Líbia
A França esteve na vanguarda da intervenção militar na Líbia. Como no caso do Mali, Sarkozy alegou o urgente da situação para intervir – então tratava-se de colunas blindadas que estavam a ponto de entrar na cidade libertada de Bengazi. Sabemos o que aconteceu, a intervenção para bloquear a coluna converteu-se numa operação da Nato que sequestrou a revolução Líbia e evitou a golpe de conquistas territoriais que se pudessem construir e estabelecer estruturas de poder. A militarização total e a queda brutal de Khadafi criou um vazio favorável para todos os grupos jihadistas e de traficantes que tomaram conta dos arsenais khadafistas. O fulminante derrube do regime líbio, sem uma estrutura alternativa de governo credível, desestabilizou toda a região ao eliminar um instrumento de mediação de conflitos no Sahel.
1.4 A França brinca com fogo
A França, tal como outras potências imperialistas, compreenderam que ATT era incapaz de lutar realmente contra a Al-Qaeda do Maghreb Islâmico (AQMI) no norte de Mali. Trata-se de um tema essencial para França e a Areva, que tem investido grandes somas de dinheiro para a extração de urânio no Níger, na zona fronteiriça com o norte do Mali. Achou que poderia utilizar os tuaregues do Movimento Nacional para a Libertação do Azawad (MNLA) como uma espécie de poder adicional para garantir a segurança das instalações mineiras e conter os ataques da AQMI. O MNLA é uma organização laica tuaregue que luta pela independência de Azawad, situado no norte de Mali. É o resultado de uma recomposição das organizações tuaregue. A maior parte das suas tropas combatentes vêm da Líbia, onde serviram no exército. Com a queda de Khadafi voltaram para o Mali com armas e veículos equipados com metralhadoras. Uma caravana pode percorrer milhares de quilómetros sem problemas. A diplomacia francesa da época, dirigida por Juppé, sempre fiel aos seus interesses, explicou que tinha chegado o momento de iniciar as negociações com o MNLA para lhe dar credibilidade e alento: "Paris é favorável a um diálogo político entre malienses”. Foi o que disse Alain Juppé na escadaria do palácio presidencial de ATT: "Trata-se de um diálogo político que ajuda a sair da situação de impasse e evita o confronto. Um diálogo inter-maliense é absolutamente necessário”. Nesta reunião, o ministro francês recordou que a França se tinha comprometido a respeitar a integridade territorial de Mali e que o inimigo número um tinha um nome: AQMI, a o-Qaeda no Magreb Islâmico.
A trama desenvolveu-se de maneira diferente do que esperavam os estrategas do Quai d'Orsay. O MNLA aliar-se-á com os jihadistas na luta contra o exército do Mali, e serão expulsos das principais cidades do norte pelos seus antigos aliados. Há quatro grupos jihadistas: Ansar Dine, organização tuaregue que se recusou a unir-se ao MNLA e cuja prioridade é a introdução dasharia; AQMI, que vem do GSPC argelino, o Grupo Salafista para a Prédica e o Combate; o MUJAO (Movimento pela unidade da Jihad no oeste de África) e a seita Boko Haram, que semeia o terror no norte da Nigéria atacando o Estado, bem como os nigerianos cristãos.
2. A política de França na crise de gestão do Mali
2.1 Lembrete
A intervenção da França no Mali inscreve-se numa longa tradição de intervenções. Desde a independência das suas colónias africanas, a França interveio sessenta vezes. A estratégia da França é manter a sua influência política e económica através de um apoio inquebrantável a várias ditaduras que promovem os interesses franceses. Desta maneira, as multinacionais francesas têm autênticos nichos de mercado na indústria alimentar, logística, transporte, telecomunicações, além do saque dos recursos naturais, incluído o petróleo e o urânio.
2.2 Peões da França
Quando pode, a diplomacia francesa evita intervir diretamente. Também na crise do Mali. Tem duas estruturas para isso. A primeira, a presidência da União Africana, que é detida pelo presidente do Benin, Boni Yayi. Durante a sua visita a França em 30 de maio, Hollande aconselhou-o que a UA fizesse uma solicitação de ajuda ao Conselho de Segurança da ONU para pedir uma intervenção militar em África: "Analisando as diferentes maneiras de resolver a crise, o presidente francês pediu à CEDEAO e à União Africana que utilizassem o Conselho de Segurança da ONU, de maneira a poder "desenhar um marco para o Mali e a zona mais ampla do Sahel e restabelecer a estabilidade.". Quando foi informado em Montreal da intervenção militar francesa, afirmou que estava muito contente (sic). O seu segundo ponto de apoio é a CEDEAO, que é a organização que agrupa os Estados de África Ocidental, presidida por Alassane Ouattara, que deve o seu posto como presidente de Costa do Marfim aos tanques franceses. A desculpa então foi fazer respeitar os resultados das eleições presidenciais. Umas eleições cuja legitimidade é cada vez mais discutível. Quanto ao mediador da CEDEAO, não é outro senão o burquinês Blaise Compaoré, bem conhecido no espaço da francofonia porque ajudou a derrubar Thomas Sankara e foi cúmplice de Charles Taylor, condenado por crimes contra a humanidade devido aos crimes na Libéria e Serra Leoa.
2.3 A França opõe-se a um processo de transição política
Quando a hierarquia militar quis enviar os soldados malianos à frente, assegurando-lhes que as armas e munições chegariam depois, estourou uma revolta no quartel de Kati, situado a quinze quilómetros da capital, Bamako. Os rebeldes dirigiram-se ao palácio presidencial, mal defendido por alguns membros da guarda presidencial. ATT teve de fugir. Os rebeldes tomaram o poder, anunciaram a criação de um conselho nacional. O golpe foi apoiado pelas organizações da esquerda radical, ativista da sociedade civil, e parte dos sindicatos que fundaram o Movimento Popular 22 de Março. Esta organização tem como objetivo ser o braço político dos militares. A diplomacia francesa está na mesma linha que as potências africanas da região. O grande temor é que o Mali se emancipe da ordem neocolonial estabelecida e farão qualquer coisa para repor à frente do país o vilipendiado ATT ou alguém de seu séquito. A CEDEAO decretou um bloqueio económico cuja eficácia logo se fez sentir devido ao isolamento do país. Sabotaram todos os esforços de reforma política que respondesse às necessidades das populações e conseguiram colocar à frente do Mali o Presidente da Assembleia Nacional, que não tem legitimidade popular nem constitucional. Pior ainda, enquanto os jihadistas fortaleciam a sua posição, a CEDEAO bloqueou nos portos de Dakar e Conacry os envios de armas que o Mali comprou legalmente. Só serão desbloqueados quando o governo do Mali firmar a solicitação de assistência militar exterior.
2.4 O lóbi belicista
A França fará um intenso esforço para que a comunidade internacional aceite o princípio de intervenção militar. Foram os seus diplomatas que escreveram a resolução da ONU e enfrentaram-se durante meses com o ceticismo da ONU, dos EUA e da própria Argélia, que acabaram por aceitar de má vontade a proposta de negociação com grupos como o MNLA e o Ansar Dine.
3. A intervenção militar de França
Analistas como Jacquemot, do semanário L'Express, têm explicado que esta intervenção foi preparada durante muito tempo: "O começo da intervenção francesa foi repentino, mas fora planeado por muito tempo. Como prova disso, a contraofensiva, que chegou bem mais longe das localidades ameaçadas, estava bem preparada". Lhe Drian, ministro de defesa, também falou em 2012 de uma intervenção inevitável.
Uma vez mais, a urgência alegada para justificar a intervenção militar procura evitar o debate e permite avançar para objetivos que mudam com o tempo. De facto, a intervenção justifica-se para deter o avanço dos jihadistas. Hoje em dia é evidente que, uma vez atingido esse objetivo, aparece outro novo: fala-se agora de "erradicar os islamistas, de devolver a segurança ao estado maliano", o que permite à diplomacia francesa total liberdade de ação.
Uma intervenção que se realiza fora do marco jurídico internacional. Recordemos que a resolução 2085 do Conselho das Nações Unidas só autoriza a intervenção de forças militares africanas. A França tem obteve um ditame favorável a posteriori do Conselho de Segurança da ONU, mas com fortes reservas.
Para não sair do marco legal, a França sustenta que atuou a pedido do presidente em funções do Mali que, como vimos, carece de legitimidade constitucional e popular.
3.1 A intervenção vai durar
A intervenção terá uma longa duração devido à forte resistência dos jihadistas, bem treinados e equipados. Além disso, a tática destes grupos é separar-se e tentar capturar povoados ou pequenas aldeias. Os ataques aéreos serão pouco efetivos. De facto, utilizam-se principalmente para atacar posições fixas claramente estabelecidas, armazéns, campos de treino, etc. Em todos os casos terão que se levar a cabo operações terrestres. Os militares franceses já tiveram de lutar em Diabali. Teoricamente, estas operações devem ser responsabilidade dos exércitos africanos, mas estes, como o do Níger ou do Senegal, são muito pouco eficazes, e ainda que fossem relativamente eficientes, não conhecem o terreno. De modo que em todos os casos o exército francês terá que se mobilizar, e não se exclui que tenha de estar na primeira linha de fogo. Adivinha-se já o início de uma intervenção a longo prazo, porque o objetivo é o envio de 2.500 soldados franceses ao Mali.
Tenhamos em conta, já que é importante num momento de austeridade fiscal, que a avaliação da intervenção atual é estimada em 400.000 euros ao dia. Não custa muito imaginar o que se poderia fazer com tais somas para melhorar as estruturas sociais e de saúde na região do norte de Mali.
O reforço do plano Vigipirate, o desejo de dramatizar todo o possível o risco do terrorismo contribuem para criar um clima de unidade nacional, e ao mesmo tempo fortalece o racismo em França. Uma vez mais se fortalece a tese de que o Islão é um perigo potencial para a França.
3.2 O risco de crise humanitária
Após seis dias de conflito, a ONU registou mais de 150.000 refugiados que fogem das zonas de guerra e se refugiam nos países limítrofes, onde a população também é pobre, bem como 230.000 pessoas deslocadas no próprio Mali. A falta de apoio político, o vazio criado pela fuga dos jihadistas das cidades importantes da região poderia dar lugar a conflitos entre comunidades a partir de velhos ressentimentos. O elevadíssimo número de armas em circulação na região, as milícias organizadas, como o Ganda Iso (“filho da terra”, em idioma Songhai), uma das três que formam a Frente de Libertação do Norte de Mali, a recente decisão do MNLA de se opor à entrada do exército do Mali no norte do país, faz temer uma explosão de violência ou pelo menos uma série de conflitos violentos de grande mortalidade provocados pela criação de milícias de autodefesa das diferentes comunidades. Existe o risco mais que provável de cair numa situação idêntica à do leste do Congo Kinshasa (RDC) onde, apesar da presença de forças da ONU, não se pôde deter este impulso de violência. Sobretudo quando, como no caso da República Democrática do Congo, além dos conflitos intercomunitários pesam interesses económicos relacionados a diferentes tráficos ilegais, em especial de narcóticos. O caso mais chamativo é a aterragem de um Boeing 727 cheio de cocaína com destino à Europa com um valor de mercado de vários milhões de euros. Já somos testemunhas de atrocidades cometidas pelo exército maliano, como informa o Le Monde.
3.3 A necessidade do internacionalismo
A nossa posição é contrária a uma espécie de quase unidade nacional imposta. Há os que se viram arrastados por uma emoção perfeitamente legítima contra a barbárie jihadista e o sofrimento das pessoas, mas agora as coisas são cada vez mais evidentes, e dizem-nos que a guerra será longa, dura e cara.
A França, que é a fonte dos problemas, não pode ser a solução. A França, que desde a independência dos estados da África tem apoiado sempre as piores ditaduras, os piores massacres, as piores guerras, que está implicada no genocídio do Ruanda, não é a melhor situada para defender os direitos dos povos de África.
Não temos outro remédio senão denunciar a francofonia, o apoio aos ditadores, denunciar que Hollande receba os Bongo, Déby, Compaoré; que não tenha dito nem uma única palavra de protesto contra a violência das forças repressivas em Togo contra os manifestantes.
Devemos reafirmar a nossa solidariedade com as forças progressistas da África e do Mali que se opõem à intervenção francesa.
Tradução de Luis Leiria para o Esquerda.net
Nenhum comentário:
Postar um comentário