IHU - Unisinos
Instituto Humanitas Unisinos
Adital
Quarta, 28 de novembro de 2012
"É incrível a postura de um governo, que foi eleito pelos pobres deste país, ao desprezar tanto as verdadeiras necessidades do povo e se tornar totalmente insensível diante das imensas carências deste mesmo povo”, lamenta o bispo de Barra, BA.
"O meu sentimento é de tristeza de ver, em primeiro lugar, o povo sendo maltratado. As comunidades sendo colocadas totalmente de escanteio. (...) Fico triste com essa postura ditatorial de um governo que se diz do povo”. O desabafo é Dom Luiz Flávio Cappio, bispo da Diocese da Barra, na Bahia, em entrevista à IHU On-Line por telefone. Cinco anos depois de fazer uma greve de fome em oposição à transposição do rio São Francisco, Dom Cappio continua decepcionado com a posição do governo de manter uma obra que não resolverá os problemas do semiárido.
Ele conta que a obra de transposição do rio São Francisco está "abandonada”, porque deixou de ser prioridade do governo. "A região virou um caos. Os moradores investiram em restaurantes, hotéis, etc. Mas os trabalhadores foram embora, porque a obra ficou praticamente parada. Hotéis, pousadas e restaurantes que foram construídos estão fechados, e o povo ficou no prejuízo”. Na avaliação do bispo, a "grande prioridade do governo” é preparar a "nação para a Copa do Mundo. Os recursos que antes estavam destinados a essas grandes obras do PAC estão sendo direcionadas para as grandes arenas e serviços de infraestrutura para a Copa do Mundo”.
Questionado sobre se mantém o diálogo com o governo, ele é enfático ao se referir à presidente Dilma: "Acredito que ela não tenha nenhum interesse de conversar comigo como também com qualquer membro desta luta. Mas assim como Lula, o governo do PT sempre foi cego, surdo e mudo às manifestações populares. E assim como todos os nossos diálogos com o governo Lula foram infrutíferos, o mesmo acontece com o governo atual. Mudam as pessoas, mas a sistemática é a mesma. Ditadura não dialoga”.
Dom Luiz Flávio Cappio vive na Bahia, onde está à frente da Diocese de Barra. Em 2005 e 2007 fez greve de fome em protesto contra o projeto do governo federal de transposição do rio São Francisco. Em 2008, a organização Pax Christi Internacional (Bélgica) deu a Dom Cappio o prêmio da Paz por sua luta em defesa da vida na região do São Francisco. Em 2009, recebeu o Prêmio Kant de Cidadão do Mundo, da Fundação Kant (Alemanha).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual a atual situação das obras de transposição do rio São Francisco? O senhor tem acompanhado a obra ao longo dos últimos cinco anos?
Dom Luiz Flávio Cappio – A obra está praticamente parada. Em alguns canteiros o exército está presente, mas boa parte da obra já está abandonada em decomposição, destruída. Enquanto isso o governo anuncia valores imensos para a continuação dos trabalhos e para consertar aquilo que foi danificado por irresponsabilidade do próprio governo. O que está acontecendo é trágico. A obra não obedece nenhum cronograma de construção.
IHU On-Line – Quais são as razões do atraso da obra? Que falhas aponta?
Dom Luiz Flávio Cappio – A transposição de águas do rio São Francisco é uma obra totalmente ilógica. Foi planejada para estar numa vitrine de propaganda, principalmente política, do governo que a concebeu. Os detalhes técnicos não são levados em consideração. No momento da execução os responsáveis se deparam com imensos problemas, próprios de uma obra dessa magnitude. A obra passa a ser protelada juntamente com os reajustes orçamentários.
Infelizmente o projeto de transposição não respeita as populações como merecem. A obra passa por uma região que é habitada por comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas, povos ribeirinhos que, evidentemente, reagem.
A obra já foi uma das prioridades do PAC. Hoje a grande prioridade do governo é a preparação da nação para a Copa do Mundo. Os recursos que antes estavam destinados a essas grandes obras do PAC estão sendo direcionadas para as grandes arenas e serviços de infraestrutura para a Copa do Mundo.
IHU On-Line – Há cinco anos o senhor mencionava os impactos que a transposição causaria aos moradores da região. Qual a situação deles hoje?
Dom Luiz Flávio Cappio – São dois os impactos. Primeiramente o impacto social com as comunidades que moram próximas à obra. Houve, por parte das nações indígenas, uma reação muito grande, mas o governo deu-lhes um "cala a boca” e elas não tiveram mais possibilidades de se manifestarem como nações indígenas. Por esse motivo a obra se torna anticonstitucional, visto que, segundo a Constituição Cidadã de 1988, qualquer projeto que envolva território indígena o Congresso deve ser consultado. E este jamais deu parecer algum sobre o assunto e nem sequer foi consultado.
Em relação às demais comunidades de moradores e pequenos proprietários locais, houve muitas promessas e propaganda enganosa na implantação do projeto. Mas, na medida em que o trabalho foi sendo implantado, o povo viu, às duras penas, que não era nada daquilo que se prometeu. Pelo contrário, eles estavam destruindo cercas, acabando com as roças, dizimando os rebanhos, as indenizações muito mal pagas, enquanto o povo estava sendo encurralado sem ter para onde ir.
A região virou um caos. Os moradores investiram em restaurantes, hotéis, etc. Mas os trabalhadores foram embora, porque a obra ficou praticamente parada. Hotéis, pousadas e restaurantes que foram construídos estão fechados, e o povo ficou no prejuízo. Sem falar nos filhos e filhas que foram gerados pela presença de uma multidão de homens ao longo do canteiro de obras, quer dizer, há problemas sociais terríveis.
O segundo impacto é ambiental. Toda a região foi devastada. Se sobrevoarmos o canteiro de obras dos canais da transposição, vamos observar uma enorme faixa de terra totalmente nua como se fosse um imenso deserto, quer dizer, sem o menor respeito pela biodiversidade da Caatinga. São danos irreparáveis de uma obra que começou, está parada e que não vai para lugar nenhum.
IHU On-Line – Como estão as manifestações populares contra a transposição?
Dom Luiz Flávio Cappio – No início aconteceram muitas manifestações na própria região como também em Brasília. Vários grupos representantes de comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas apoiadas por vários segmentos solidários acamparam no planalto. Houve manifestações homéricas. Eu mesmo participei destas manifestações, na região e em Brasília. Visitei as comunidades indígenas por várias vezes, encorajando as lideranças. Mas tudo foi em vão. Os governantes não nos ouviram nem nos receberam. Fizeram-se cegos, surdos e mudos diante do grito do povo. A mesma coisa está acontecendo em Belo Monte, no Pará. É incrível a postura de um governo, que foi eleito pelos pobres deste país, ao desprezar tanto as verdadeiras necessidades do povo e se tornar totalmente insensível diante das imensas carências deste mesmo povo.
IHU On-Line – O governo anunciou a construção de novas hidrelétricas para a Amazônia. Como avalia essas obras? De modo geral, como vê o plano energético do governo federal?
Dom Luiz Flávio Cappio – Estamos numa verdadeira ditadura em que os projetos são impostos, ninguém conversa com ninguém, não existe nenhum diálogo. Apenas os lobbies das grandes empreiteiras, das grandes empresas produtoras de energia elétrica, dos grandes grupos econômicos interessados são considerados. A sociedade civil fica totalmente à margem. Quando os especialistas das universidades expõem suas ideias, colocando sua posição com embasamento técnico e de conhecimento, eles são ignorados. A sociedade civil está marginalizada. É uma verdadeira ditadura dos interesses econômicos. Veja só o absurdo: enquanto todos os países civilizados reveem seu programa de energia nuclear, o Brasil leva adiante os projetos de usinas nucleares no São Francisco!
IHU On-Line – O senhor tem dialogado com a presidente Dilma sobre a transposição do rio São Francisco, como fez com Lula?
Dom Luiz Flávio Cappio – Conversei com o ex-presidente Lula. Com a presidente Dilma apenas participei de uma mesa num seminário sobre o São Francisco antes de ela ser presidente. Não conversamos sobre o projeto de transposição.
IHU On-Line – Por falta de oportunidade?
Dom Luiz Flávio Cappio – Sim, por falta de oportunidade. Acredito que ela não tenha nenhum interesse de conversar comigo como também com qualquer membro desta luta. Mas assim como Lula, o governo do PT sempre foi cego, surdo e mudo às manifestações populares. E assim como todos os nossos diálogos com o governo Lula foram infrutíferos, o mesmo acontece com o governo atual. Mudam as pessoas, mas a sistemática é a mesma. Ditadura não dialoga.
IHU On-Line – Como os bispos do Norte e Nordeste têm dialogado em função do projeto energético?
Dom Luiz Flávio Cappio – Meus irmãos, os bispos do Nordeste, foram ingênuos e se deixaram levar pela propaganda oficial do governo. Olhavam nossa postura com desconfiança. Mas, na medida em que a obra foi sendo implementada, trazendo tantos absurdos sociais e ambientais, diversos deles chegaram ao conhecimento da verdade e mudaram de opinião em relação à transposição do rio São Francisco.
IHU On-Line – Como o senhor se sente hoje, cinco anos depois de ter feito greve de fome por causa da transposição do rio São Francisco?
Dom Luiz Flávio Cappio – O meu sentimento é de tristeza de ver, em primeiro lugar, o povo sendo maltratado. As comunidades sendo colocadas totalmente de escanteio. A sociedade civil não ser ouvida, não ter voz e não ter vez. Fico triste com essa postura ditatorial de um governo que se diz do povo. Em segundo lugar fico indignado em ver o dinheiro público, que poderia estar sendo investido em obras que realmente poderiam trazer soluções de abastecimento hídrico, estar sendo desviado. O governo já gastou muito dinheiro nesse projeto de transposição, que é uma grande mentira, um engano, um engodo. Por outro lado, me sinto confortado de ver que o tempo está mostrando a veracidade de tudo aquilo que dizíamos. O tempo é mestre de verdade e mostra com toda clareza tudo aquilo que há sete anos afirmávamos.
Alternativas
No segundo jejum, em Sobradinho, já tínhamos a solução e mostramos as alternativas de abastecimento hídrico para as comunidades carentes. O "Atlas do Nordeste”, um projeto da Agência Nacional de Águas – ANA, que é do próprio governo, visa abastecer hidricamente as comunidades carentes do Nordeste. Temos de acabar com esse mito de dizer que o Nordeste não tem água. Temos muita água na região. Água do rio São Francisco, do rio Parnaíba, que divide o Piauí com o Maranhão, uma rede de 70 mil açudes, que é a maior rede de açudes do mundo. O que falta é a distribuição dessas águas, que estão concentradas. O governo, em vez de optar pelos projetos da ANA de abastecimento hídrico das comunidades carentes, escolheu a transposição que consiste na segurança hídrica para os grandes projetos econômicos. Precisamos de políticas públicas de democratização da água, ou seja, precisamos levar essa água para quem precisa. Segundo a Constituição Cidadã de 1988, essa seria a prioridade de investimentos públicos em projetos hídricos.
Fico indignado quando vejo reportagens na televisão mostrando as comunidades carentes, aquelas mães de família chorando com lata d’água na cabeça e as criancinhas com sede. O governo é culpado por essa situação, porque optou não em levar água para o povo, mas em garantir água para os projetos econômicos.
Alternativas para abastecer o Nordeste o governo possui. Infelizmente elas não são colocadas em prática. É preciso o mínimo de bom senso: levar água para quem tem sede, e não para grandes empreendimentos empresariais.
IHU On-Line – Qual a situação do semiárido? O Programa um Milhão de Cisternas foi eficaz? A água continua sendo um agravante na região?
Dom Luiz Flávio Cappio – A seca é a seca, e não existe forma de lutar contra ela. No Nordeste sempre haverá a seca, porque faz parte da natureza da região. A nossa região é semiárida, e precisamos criar uma política de convivência com isso. E se existe sofrimento por parte do povo, o culpado é o governo por não investir recursos em políticas públicas que venham em direção às necessidades da população no que diz respeito ao abastecimento hídrico das comunidades.
O Programa Um Milhão de Cisternas é ótimo, só que os políticos tomaram conta dele. Quem administra são as prefeituras, as câmaras de vereadores e algumas ONGs. Infelizmente, o que estou vendo é que se faz política com o programa. Assim, a cisterna se tornou cabresto eleitoral e forma de garantir votos nas eleições. O programa é bom. Precisa, porém, ser melhorado na forma de implementação.
IHU On-Line – O senhor participa da "Peregrinação pelo rio São Francisco” há vinte anos. Que avaliação faz do encontro nessas duas décadas e que transformações aponta no São Francisco?
Dom Luiz Flávio Cappio – Isso é um consolo para o nosso coração. Há 20 anos fizemos essa caminhada, partindo da Serra da Canastra. O tempo passou. Já se foram 20 anos. Naquela época ainda não se falava em transposição. 20 anos de luta em prol da vida do Velho Chico e do povo ribeirinho.
Para comemorar fomos novamente visitar o berço do rio. Agradecemos a Deus por toda essa luta travada por tantas pessoas. Podemos dizer que esse encontro é o marco da luta em defesa do rio São Francisco, porque foi a partir desta iniciativa que conseguimos conscientizar as populações ribeirinhas. Hoje, em todo o lugar em que vamos ao longo do rio, encontramos as comunidades conscientes e desejosas de participar dessas lutas em defesa do rio. Isso é muito gratificante. No próximo ano iremos até a foz do rio, entre Alagoas e Sergipe, agradecer a Deus pelos 20 anos do término dessa caminhada cidadã de muito amor ao rio São Francisco e a seu povo.
"É incrível a postura de um governo, que foi eleito pelos pobres deste país, ao desprezar tanto as verdadeiras necessidades do povo e se tornar totalmente insensível diante das imensas carências deste mesmo povo”, lamenta o bispo de Barra, BA.
"O meu sentimento é de tristeza de ver, em primeiro lugar, o povo sendo maltratado. As comunidades sendo colocadas totalmente de escanteio. (...) Fico triste com essa postura ditatorial de um governo que se diz do povo”. O desabafo é Dom Luiz Flávio Cappio, bispo da Diocese da Barra, na Bahia, em entrevista à IHU On-Line por telefone. Cinco anos depois de fazer uma greve de fome em oposição à transposição do rio São Francisco, Dom Cappio continua decepcionado com a posição do governo de manter uma obra que não resolverá os problemas do semiárido.
Ele conta que a obra de transposição do rio São Francisco está "abandonada”, porque deixou de ser prioridade do governo. "A região virou um caos. Os moradores investiram em restaurantes, hotéis, etc. Mas os trabalhadores foram embora, porque a obra ficou praticamente parada. Hotéis, pousadas e restaurantes que foram construídos estão fechados, e o povo ficou no prejuízo”. Na avaliação do bispo, a "grande prioridade do governo” é preparar a "nação para a Copa do Mundo. Os recursos que antes estavam destinados a essas grandes obras do PAC estão sendo direcionadas para as grandes arenas e serviços de infraestrutura para a Copa do Mundo”.
Questionado sobre se mantém o diálogo com o governo, ele é enfático ao se referir à presidente Dilma: "Acredito que ela não tenha nenhum interesse de conversar comigo como também com qualquer membro desta luta. Mas assim como Lula, o governo do PT sempre foi cego, surdo e mudo às manifestações populares. E assim como todos os nossos diálogos com o governo Lula foram infrutíferos, o mesmo acontece com o governo atual. Mudam as pessoas, mas a sistemática é a mesma. Ditadura não dialoga”.
Dom Luiz Flávio Cappio vive na Bahia, onde está à frente da Diocese de Barra. Em 2005 e 2007 fez greve de fome em protesto contra o projeto do governo federal de transposição do rio São Francisco. Em 2008, a organização Pax Christi Internacional (Bélgica) deu a Dom Cappio o prêmio da Paz por sua luta em defesa da vida na região do São Francisco. Em 2009, recebeu o Prêmio Kant de Cidadão do Mundo, da Fundação Kant (Alemanha).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual a atual situação das obras de transposição do rio São Francisco? O senhor tem acompanhado a obra ao longo dos últimos cinco anos?
Dom Luiz Flávio Cappio – A obra está praticamente parada. Em alguns canteiros o exército está presente, mas boa parte da obra já está abandonada em decomposição, destruída. Enquanto isso o governo anuncia valores imensos para a continuação dos trabalhos e para consertar aquilo que foi danificado por irresponsabilidade do próprio governo. O que está acontecendo é trágico. A obra não obedece nenhum cronograma de construção.
IHU On-Line – Quais são as razões do atraso da obra? Que falhas aponta?
Dom Luiz Flávio Cappio – A transposição de águas do rio São Francisco é uma obra totalmente ilógica. Foi planejada para estar numa vitrine de propaganda, principalmente política, do governo que a concebeu. Os detalhes técnicos não são levados em consideração. No momento da execução os responsáveis se deparam com imensos problemas, próprios de uma obra dessa magnitude. A obra passa a ser protelada juntamente com os reajustes orçamentários.
Infelizmente o projeto de transposição não respeita as populações como merecem. A obra passa por uma região que é habitada por comunidades tradicionais, indígenas, quilombolas, povos ribeirinhos que, evidentemente, reagem.
A obra já foi uma das prioridades do PAC. Hoje a grande prioridade do governo é a preparação da nação para a Copa do Mundo. Os recursos que antes estavam destinados a essas grandes obras do PAC estão sendo direcionadas para as grandes arenas e serviços de infraestrutura para a Copa do Mundo.
IHU On-Line – Há cinco anos o senhor mencionava os impactos que a transposição causaria aos moradores da região. Qual a situação deles hoje?
Dom Luiz Flávio Cappio – São dois os impactos. Primeiramente o impacto social com as comunidades que moram próximas à obra. Houve, por parte das nações indígenas, uma reação muito grande, mas o governo deu-lhes um "cala a boca” e elas não tiveram mais possibilidades de se manifestarem como nações indígenas. Por esse motivo a obra se torna anticonstitucional, visto que, segundo a Constituição Cidadã de 1988, qualquer projeto que envolva território indígena o Congresso deve ser consultado. E este jamais deu parecer algum sobre o assunto e nem sequer foi consultado.
Em relação às demais comunidades de moradores e pequenos proprietários locais, houve muitas promessas e propaganda enganosa na implantação do projeto. Mas, na medida em que o trabalho foi sendo implantado, o povo viu, às duras penas, que não era nada daquilo que se prometeu. Pelo contrário, eles estavam destruindo cercas, acabando com as roças, dizimando os rebanhos, as indenizações muito mal pagas, enquanto o povo estava sendo encurralado sem ter para onde ir.
A região virou um caos. Os moradores investiram em restaurantes, hotéis, etc. Mas os trabalhadores foram embora, porque a obra ficou praticamente parada. Hotéis, pousadas e restaurantes que foram construídos estão fechados, e o povo ficou no prejuízo. Sem falar nos filhos e filhas que foram gerados pela presença de uma multidão de homens ao longo do canteiro de obras, quer dizer, há problemas sociais terríveis.
O segundo impacto é ambiental. Toda a região foi devastada. Se sobrevoarmos o canteiro de obras dos canais da transposição, vamos observar uma enorme faixa de terra totalmente nua como se fosse um imenso deserto, quer dizer, sem o menor respeito pela biodiversidade da Caatinga. São danos irreparáveis de uma obra que começou, está parada e que não vai para lugar nenhum.
IHU On-Line – Como estão as manifestações populares contra a transposição?
Dom Luiz Flávio Cappio – No início aconteceram muitas manifestações na própria região como também em Brasília. Vários grupos representantes de comunidades indígenas, quilombolas e ribeirinhas apoiadas por vários segmentos solidários acamparam no planalto. Houve manifestações homéricas. Eu mesmo participei destas manifestações, na região e em Brasília. Visitei as comunidades indígenas por várias vezes, encorajando as lideranças. Mas tudo foi em vão. Os governantes não nos ouviram nem nos receberam. Fizeram-se cegos, surdos e mudos diante do grito do povo. A mesma coisa está acontecendo em Belo Monte, no Pará. É incrível a postura de um governo, que foi eleito pelos pobres deste país, ao desprezar tanto as verdadeiras necessidades do povo e se tornar totalmente insensível diante das imensas carências deste mesmo povo.
IHU On-Line – O governo anunciou a construção de novas hidrelétricas para a Amazônia. Como avalia essas obras? De modo geral, como vê o plano energético do governo federal?
Dom Luiz Flávio Cappio – Estamos numa verdadeira ditadura em que os projetos são impostos, ninguém conversa com ninguém, não existe nenhum diálogo. Apenas os lobbies das grandes empreiteiras, das grandes empresas produtoras de energia elétrica, dos grandes grupos econômicos interessados são considerados. A sociedade civil fica totalmente à margem. Quando os especialistas das universidades expõem suas ideias, colocando sua posição com embasamento técnico e de conhecimento, eles são ignorados. A sociedade civil está marginalizada. É uma verdadeira ditadura dos interesses econômicos. Veja só o absurdo: enquanto todos os países civilizados reveem seu programa de energia nuclear, o Brasil leva adiante os projetos de usinas nucleares no São Francisco!
IHU On-Line – O senhor tem dialogado com a presidente Dilma sobre a transposição do rio São Francisco, como fez com Lula?
Dom Luiz Flávio Cappio – Conversei com o ex-presidente Lula. Com a presidente Dilma apenas participei de uma mesa num seminário sobre o São Francisco antes de ela ser presidente. Não conversamos sobre o projeto de transposição.
IHU On-Line – Por falta de oportunidade?
Dom Luiz Flávio Cappio – Sim, por falta de oportunidade. Acredito que ela não tenha nenhum interesse de conversar comigo como também com qualquer membro desta luta. Mas assim como Lula, o governo do PT sempre foi cego, surdo e mudo às manifestações populares. E assim como todos os nossos diálogos com o governo Lula foram infrutíferos, o mesmo acontece com o governo atual. Mudam as pessoas, mas a sistemática é a mesma. Ditadura não dialoga.
IHU On-Line – Como os bispos do Norte e Nordeste têm dialogado em função do projeto energético?
Dom Luiz Flávio Cappio – Meus irmãos, os bispos do Nordeste, foram ingênuos e se deixaram levar pela propaganda oficial do governo. Olhavam nossa postura com desconfiança. Mas, na medida em que a obra foi sendo implementada, trazendo tantos absurdos sociais e ambientais, diversos deles chegaram ao conhecimento da verdade e mudaram de opinião em relação à transposição do rio São Francisco.
IHU On-Line – Como o senhor se sente hoje, cinco anos depois de ter feito greve de fome por causa da transposição do rio São Francisco?
Dom Luiz Flávio Cappio – O meu sentimento é de tristeza de ver, em primeiro lugar, o povo sendo maltratado. As comunidades sendo colocadas totalmente de escanteio. A sociedade civil não ser ouvida, não ter voz e não ter vez. Fico triste com essa postura ditatorial de um governo que se diz do povo. Em segundo lugar fico indignado em ver o dinheiro público, que poderia estar sendo investido em obras que realmente poderiam trazer soluções de abastecimento hídrico, estar sendo desviado. O governo já gastou muito dinheiro nesse projeto de transposição, que é uma grande mentira, um engano, um engodo. Por outro lado, me sinto confortado de ver que o tempo está mostrando a veracidade de tudo aquilo que dizíamos. O tempo é mestre de verdade e mostra com toda clareza tudo aquilo que há sete anos afirmávamos.
Alternativas
No segundo jejum, em Sobradinho, já tínhamos a solução e mostramos as alternativas de abastecimento hídrico para as comunidades carentes. O "Atlas do Nordeste”, um projeto da Agência Nacional de Águas – ANA, que é do próprio governo, visa abastecer hidricamente as comunidades carentes do Nordeste. Temos de acabar com esse mito de dizer que o Nordeste não tem água. Temos muita água na região. Água do rio São Francisco, do rio Parnaíba, que divide o Piauí com o Maranhão, uma rede de 70 mil açudes, que é a maior rede de açudes do mundo. O que falta é a distribuição dessas águas, que estão concentradas. O governo, em vez de optar pelos projetos da ANA de abastecimento hídrico das comunidades carentes, escolheu a transposição que consiste na segurança hídrica para os grandes projetos econômicos. Precisamos de políticas públicas de democratização da água, ou seja, precisamos levar essa água para quem precisa. Segundo a Constituição Cidadã de 1988, essa seria a prioridade de investimentos públicos em projetos hídricos.
Fico indignado quando vejo reportagens na televisão mostrando as comunidades carentes, aquelas mães de família chorando com lata d’água na cabeça e as criancinhas com sede. O governo é culpado por essa situação, porque optou não em levar água para o povo, mas em garantir água para os projetos econômicos.
Alternativas para abastecer o Nordeste o governo possui. Infelizmente elas não são colocadas em prática. É preciso o mínimo de bom senso: levar água para quem tem sede, e não para grandes empreendimentos empresariais.
IHU On-Line – Qual a situação do semiárido? O Programa um Milhão de Cisternas foi eficaz? A água continua sendo um agravante na região?
Dom Luiz Flávio Cappio – A seca é a seca, e não existe forma de lutar contra ela. No Nordeste sempre haverá a seca, porque faz parte da natureza da região. A nossa região é semiárida, e precisamos criar uma política de convivência com isso. E se existe sofrimento por parte do povo, o culpado é o governo por não investir recursos em políticas públicas que venham em direção às necessidades da população no que diz respeito ao abastecimento hídrico das comunidades.
O Programa Um Milhão de Cisternas é ótimo, só que os políticos tomaram conta dele. Quem administra são as prefeituras, as câmaras de vereadores e algumas ONGs. Infelizmente, o que estou vendo é que se faz política com o programa. Assim, a cisterna se tornou cabresto eleitoral e forma de garantir votos nas eleições. O programa é bom. Precisa, porém, ser melhorado na forma de implementação.
IHU On-Line – O senhor participa da "Peregrinação pelo rio São Francisco” há vinte anos. Que avaliação faz do encontro nessas duas décadas e que transformações aponta no São Francisco?
Dom Luiz Flávio Cappio – Isso é um consolo para o nosso coração. Há 20 anos fizemos essa caminhada, partindo da Serra da Canastra. O tempo passou. Já se foram 20 anos. Naquela época ainda não se falava em transposição. 20 anos de luta em prol da vida do Velho Chico e do povo ribeirinho.
Para comemorar fomos novamente visitar o berço do rio. Agradecemos a Deus por toda essa luta travada por tantas pessoas. Podemos dizer que esse encontro é o marco da luta em defesa do rio São Francisco, porque foi a partir desta iniciativa que conseguimos conscientizar as populações ribeirinhas. Hoje, em todo o lugar em que vamos ao longo do rio, encontramos as comunidades conscientes e desejosas de participar dessas lutas em defesa do rio. Isso é muito gratificante. No próximo ano iremos até a foz do rio, entre Alagoas e Sergipe, agradecer a Deus pelos 20 anos do término dessa caminhada cidadã de muito amor ao rio São Francisco e a seu povo.
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