Quem não tem 500 ovelhas, não tem ovelha! Era o que dizíamos entre amigos e colegas de universidade, na última quadra do século XX. Quando, também, calculávamos que a bovinocultura não pagava por idas frequentes à estância, se menor de 500 hectares e distando mais de 100 quilômetros da cidade de residência. Naquele tempo, embebidos de tradições e da cultura dos velhos pecuaristas, analisávamos as perspectivas do mercado de trabalho e torcíamos pelo fim da crise da pecuária. Não tínhamos consciência de que, desde que esta atividade existe em terras brasileiras, a palavra que faz parelha com pecuária é crise, andam sempre "acolheradas".
As missões jesuíticas estabeleceram-se com as vacarias, para a produção exclusiva de couro (que já foi um artigo importante para a indústria antes da borracha e do plástico); matavam-se milhares de cabeças de gado e as carcaças apodreciam no campo. Até aí, a mão de obra utilizada era principalmente indígena e de uns poucos irmãos leigos, todos trabalhavam felizes remunerados através de orações, perdão e, ao final da vida, com o bilhete de entrada no Paraíso. Porém, eram contratados "mantidos", carne à vontade e o que pudessem plantar e colher para a comunidade. Nesse tempo já haviam rocas de fiar e teares manuais para cobrir a nudez dos nativos e aquecer o povo com camisas de algodão e ponchos e batinas de lã. Não haviam leis trabalhistas para protegê-los, mas viviam folgados, fazendo aquilo que índio gosta. E não havia desabastecimento de couros na metrópole.
Era lei nas colônias que não houvesse indústria de nenhum tipo, criar ovelhas era proibido, pois quem tem ovelha tem lã e, quem tem lã, fabrica tecidos concorrendo com o "Arranjo Produtivo Colonial". Logo os gênios que assessoravam os imperadores das grandes potências ibéricas, invejosos do sucesso alheio, saquearam as missões e expulsaram os padres pecuaristas causando a primeira crise da pecuária nacional. E, melhor, descobrindo a primeira fórmula econômica que deu certo em terras brasileiras, que de tão bem-sucedida é norma de mercado até hoje por aqui - "matar a galinha dos ovos de ouro!"
Mais tarde, com a chegada da família imperial e a abertura dos portos à Inglaterra, que vinha apanhando dos mal-humorados e republicanos "hermanos argentinos", o negócio melhorou. O mercado consumidor cresceu, milhões de escravos para serem alimentados, afinal em seus "contratos de trabalho" a comida estava incluída. Trocava-se charque por mais escravos - cujo tráfico era a maior atividade econômica da nação - que produziam mais charque que podia ser trocado por bens manufaturados pela recente revolução industrial dos ingleses, desde os têxteis ao metal mecânico, que por seu lado também necessitavam de mercado consumidor.
Aprendemos a segunda norma da economia brazuca, se o nosso produto está bem cotado, vamos importar dos concorrentes, para regular os preços no mercado interno. Na prática funciona assim, para reduzir os custos com mão de obra (escrava), compramos charque no Prata aos preços correntes e vendemos mais barato no mercado interno, derrubamos os preços pagos ao produtor brasileiro de charque, que se obriga a vender por qualquer preço para saldar suas obrigações financeiras e, assim, poder contratar novos créditos. Todas essas operações aquecem a economia e passam, necessariamente, pelo fisco, é óbvio. É diferente de matar a galinha dos ovos de ouro, agora só "dão bastante corda para ela se enforcar!" Mais ou menos como os PRONAF's da vida.
A Guerra do Paraguay foi lucrativa para os comerciantes e pecuaristas argentinos que sustentaram, com carne e farinha, todas as tropas da Tríplice Aliança numa campanha que durou muito mais do que o necessário e dizimou milhares de vidas (dizem alguns que foi proposital - uma guerrinha para acabar com as disputas políticas internas dos três países através da falta de guerrilheiros).
Isso tudo resultou na abolição da escravatura, que foi a melhor saída para redução do custo com mão de obra; pela comida os escravos saíam caro! Fim da cana, fim do charque e muito imigrante, de parceria, plantando e colhendo café, galinhas no terreiro, porcos no chiqueiro e um que outro tourinho das vacas mansas para carnear. Acabou o mercado interno, é a "crise da pecuária!"
As famílias crescendo, o dinheiro encurtando, as sesmarias se dividindo. Vaca, só para inglês enlatar, melhor que nada. Valem pouco, mas ainda temos muitas descendentes daquelas vacas dos jesuítas, vamos carneando, uma a cada quatro semanas, para o consumo da estância. É o século vinte, ou copiamos essa gringada e nos industrializamos ou nos escondemos na estância atrás de nossas tradições senhoriais ibéricas, campo e gado ainda não faltam.
Eis que estoura a Grande Guerra e os ingleses, sempre eles, compram de tudo para desovar na Europa conflagrada. A vaca tem preço finalmente, e aquele outro animalzinho que antes só servia para fornecer lã para o consumo, tirar algum pelego e alimentar o fogo da queima de tijolos naquelas planícies sem fim do sul, onde não existiam árvores para lenha, começa a ter valor.
Há necessidade de muita lã, para alimentar os teares daquela revolução industrial, daquela Inglaterra que se esforça por ganhar muito dinheiro enquanto, secundariamente, luta uma guerra em solo alheio. Há necessidade de muita carne para alimentar os europeus e de muita lã para abrigá-los. Crescem os rebanhos do cone sul, se os castelhanos ganham dinheiro com isso, nós que temos a mesma vocação para a pecuária vamos ganhar também. Os ingleses "botam barraca de lã", os alemães se instalam com a indústria têxtil e os curtumes, mercado não falta.
Terminada a guerra, sobreveio outra "crise da pecuária" que desta vez durou pouco. Logo veio outra guerra, ainda maior e mais longa, mas vieram também os frigoríficos, ingleses e americanos. Nunca o boi valeu tanto, que inveja dos argentinos, já estavam ricos na época da carne enlatada, enriqueceram ainda mais com a frigorificação.
Dá-lhe carne, dá-lhe lã, dá-lhe guerra e dá-lhe progresso, descobriram de tudo desde a energia do átomo até o fio sintético, para fazer paraquedas mais baratos que os de seda.
Em tempo de vacas caras, havia até carne de baleia nos açougues riograndenses! Aprendemos a comer carne de ovelha. Este animalzinho que se reproduz tão bem, aí atirado, não custa nada e ainda serve de comida para a peonada, que reclama e "pede as contas" se não comer carne todos os dias (perpetua-se o antigo hábito de comer por conta do patrão). Devia ter uma lei igual a da cidade, um salário que o patrão pagasse e o empregado que se virasse, se não tem dinheiro não come.
A todas essas, a lã custeava as despesas da estância e ainda dava para vender uns "capões boca cheia" nas festas de fim de ano e páscoa. Tínhamos cooperativas de lãs e lanifícios, agregamos valor (ninguém usava o termo nessa época), agora vendíamos "tops" - lã lavada, cardada e fiada - pronta para o fabrico de fios finos, até o "tropical" para os ternos de verão. Ano em que a lã vale pouco, torramos a caponada, no próximo o preço da lã melhora, falta capão para esquilar, e assim vai. Justo para essas eventualidades, criamos duplo propósito, Corriedale, Ideal e Romney, os uruguaios atacam de Merilin (o duplo propósito clássico, 50/50), e os argentinos, estes venderam a estância na Patagônia e estão vivendo em Buenos Aires, parece que hoje tem uns italianos entendidos em moda criando ovelha por lá (y unos chinos, también), lã não se vê, vai direto para a Europa e Ásia, velo sujo.
Aquele fio sintético que substituiu a seda nos paraquedas, pois é, substituiu a lã em várias outras aplicações. Todo mundo usa algodão, 'calça de brim'.
"-Fresco progresso, diria minha avó, nem o leiteiro passa mais, fazendo o 'reparte'!"
Entre o leiteiro, o padeiro, o verdureiro e as entregas da mercearia, são quatro cavalos desempregados e enviados para o frigorífico (bueno, esta é outra história, e outro animal). Umas guerrinhas, alguns anos e várias leis trabalhistas depois, estamos no interior do Rio Grande do Sul, de férias, achando graça em ver um amigo esbravejando com o capataz:
"- Vocês estão comendo uma ovelha por dia! Que é isso? São só duas famílias e três peões 'mantidos'! De hoje em diante, não carneiem mais de duas ovelhas por semana! Vão acabar com o rebanho, deste jeito!" (Para ser justo com o capataz: nosso amigo esqueceu de contar sua própria família e as visitas de férias).
Passada a graça, e uns dias, ao pensar naquela bronca, "só por causa dumas ovelhas de descarte". Fazendo as contas, que carneando duas por semana resultaria em 104 no ano e que, desconsiderando a mortalidade em todas as idades, à uma taxa de reposição de 20% seriam necessárias 500 ovelhas de cria somente para obtenção deste rebanho de consumo. E nesta conta ainda devem ser colocados os capõezinhos que os guris levam para o churrasquinho da turma, os que vão para a caridade e para a política, aquele raçudinho que vai para a exposição (dentro do isopor com gelo - ação de "marketing").
A percepção é de que o ovelheiro não é um profissional da ovinocultura, as ovelhas estão lá como um subproduto, que não chega a ser coadjuvante da bovinocultura pois vive dos seus restos. Já são de pouca ajuda na manutenção da estância, afinal não pagam mais a conta dos insumos e, graças a tantas "leis para proteger o trabalhador", a peonada também encolheu, assim como suas famílias. O rebanho é um patrimônio cultural e, como herança, é parecido com o "Modelo A" do vovô, por mais caro que custe e ineficiente que seja, exige manutenção para não desaparecer consumido pelo tempo.
Infelizmente, como atividade econômica, a criação de ovelhas nestes termos tradicionais, é mais prejudicial do que benéfica para a ovinocultura. Ao não ver o rebanho como "negócio", não lhe dedicamos investimentos e, ao não investir, não esperamos retorno compensatório. No final do ano mandamos embora a cavalhada velha (que vão curtir a merecida aposentadoria num balcão de congelados no Japão), as vacas mansas muito usadas, aquela caponada e ovelhas desdentadas. Aceitamos qualquer preço por estes animais, afinal, estamos fazendo uma "limpeza do campo". A quantidade de dinheiro recebido por essas vendas, só é relevante para definir o número de dias, a mais ou a menos, que a família vai passar em Santa Catarina, de férias. Proceder desta forma é fazer pecuária predatória, é concorrer para a formação de um mercado prejudicial aos produtores e aos consumidores (tanto pela remuneração quanto pela qualidade do produto), é defender os interesses dos intermediários na cadeia produtiva, aqueles "peixes grandes", que são os que menos comprometem e mais lucram em qualquer atividade produtiva na nossa "pátria amada e idolatrada". Lucram até quando não trabalham, basta ameaçar fechar as portas e demitir alguns funcionários para arranjar uma ajuda governamental.
Assim, convivemos com preços atrelados aos preços do boi sem nenhuma razão que justifique esse atrelamento. Alguma bruxaria na Bolsa de Chicago, adivinha o tamanho da safra americana e profetiza quanto o "big brother" estará disposto a pagar pelo que será produzido no hemisfério sul na próxima safra. Definido o valor do farelo de soja, todo o resto vem atrás, milho, frango, porco, boi e o cordeiro à cabresto. Nada disto ultrapassa o campo da especulação e da fantasia, nada é real. Pior agora que o grande irmão "quebrou", desvalorizando a própria moeda ao investir internamente sem possibilidades de retorno financeiro. Nós passamos por isto recentemente, salvar empresa falida com o dinheiro do povo é dureza, "Seu Obama", mas, se não salvar, este mesmo povo corre aos bancos querendo sacar o dinheiro que não existe e rebenta de vez com a economia do país. Jogar no mercado de capitais e "futuros", é coisa de quem tem muito dinheiro, de corretor que joga com o dinheiro alheio, de quem é dono da banca e pode descarregar o prejuízo em outras atividades, instituições ou países. Pelado não entra em cassino.
Plantar e criar é a nossa vocação, somos bons nisso, chega de pagar a conta dos perdedores que, enfim, jogam mal mas jogam porque querem. Quem nunca se fez a pergunta, "o que define o preço do boi?" Aliás, pergunto a todos vocês, colegas pecuaristas:
Qual a razão de termos os preços dos nossos produtos estabelecidos por terceiros?
A todo momento aparecem anúncios de "cursos de formação de preços", com a chancela das Federações Comerciais, Industriais e de Serviços. E nós, por que não formamos nossos preços, por que nos sujeitamos a receber o preço oferecido e arcamos com o resultado, seja ele qual for? Já que falamos de história, também esta é uma postura cultural herdada dos nossos antepassados? Será consequência direta da terra recebida do Império em troca da ocupação, ou coisa de índio que não valoriza sua posse, talvez de escravo desterrado? Nosso maior componente de custos é alimentação, se não dermos comida comprada e nossos animais forem criados exclusivamente a campo, quer dizer que nos saíram de graça?
Pensem em formar seus preços, meus colegas, nada os impede. Se nossa grande nação não segue o exemplo da Austrália, que consegue ver e respeitar o produtor e a produção rural, como o grande gerador de riqueza que é, cabe a nós o "fazer-se respeitar". Lembram aquele ministro da agricultura que dizia que "quando o governo não atrapalha já está ajudando", não é mais suficiente que assim seja. Ao invés de regulamentar com o objetivo único de fiscalizar tributos, atravancando a atividade agropecuária, o estado deve participar como um facilitador da mesma, além de poder e dever demonstrar para todos os brasileiros que nem tudo é a "sacrossanta agricultura familiar", assim como nem todos são grandes e nem todo pequeno é familiar, principalmente, que nem todos aqui são vilões tentando dinheiro fácil.
Reflitam sobre isso, conversem com seus pares nas Associações e Sindicatos Rurais de suas cidades, consultem suas Federações. Apertem a Federação da Agricultura para que chame as Federações das Indústrias e do Comércio para uma conversa, ao menos se poderá responsabilizar algum segmento pela falta de cooperação entre as forças produtivas. Esperar pelo governo ou por regulamentação pode demorar outros 500 anos. Antes de me acusarem de estar delirando, lembrem que o pessoal do Centro-Oeste consegue receber à vista pelo gado vendido, coisa inconcebível até bem pouco tempo. Velho hábito que a indústria frigorífica adquiriu no tempo da super inflação e do "over night" e que hoje já não faz sentido.
Assim se todo o processo é dinâmico, nada é imutável (ou 'imexível' dizia um outro ministro), podemos sim, fazer a diferença e receber o que merecemos pelo que produzimos. A história está aí por ser escrita, depende de nós o que passará para o papel sobre os dias que vivemos.
Saudações ovelheiras!
Ivan Saul D.V.M. M.Sc.Vet. - Granja Po'A Porã, 23/nov/2010.
As missões jesuíticas estabeleceram-se com as vacarias, para a produção exclusiva de couro (que já foi um artigo importante para a indústria antes da borracha e do plástico); matavam-se milhares de cabeças de gado e as carcaças apodreciam no campo. Até aí, a mão de obra utilizada era principalmente indígena e de uns poucos irmãos leigos, todos trabalhavam felizes remunerados através de orações, perdão e, ao final da vida, com o bilhete de entrada no Paraíso. Porém, eram contratados "mantidos", carne à vontade e o que pudessem plantar e colher para a comunidade. Nesse tempo já haviam rocas de fiar e teares manuais para cobrir a nudez dos nativos e aquecer o povo com camisas de algodão e ponchos e batinas de lã. Não haviam leis trabalhistas para protegê-los, mas viviam folgados, fazendo aquilo que índio gosta. E não havia desabastecimento de couros na metrópole.
Era lei nas colônias que não houvesse indústria de nenhum tipo, criar ovelhas era proibido, pois quem tem ovelha tem lã e, quem tem lã, fabrica tecidos concorrendo com o "Arranjo Produtivo Colonial". Logo os gênios que assessoravam os imperadores das grandes potências ibéricas, invejosos do sucesso alheio, saquearam as missões e expulsaram os padres pecuaristas causando a primeira crise da pecuária nacional. E, melhor, descobrindo a primeira fórmula econômica que deu certo em terras brasileiras, que de tão bem-sucedida é norma de mercado até hoje por aqui - "matar a galinha dos ovos de ouro!"
Mais tarde, com a chegada da família imperial e a abertura dos portos à Inglaterra, que vinha apanhando dos mal-humorados e republicanos "hermanos argentinos", o negócio melhorou. O mercado consumidor cresceu, milhões de escravos para serem alimentados, afinal em seus "contratos de trabalho" a comida estava incluída. Trocava-se charque por mais escravos - cujo tráfico era a maior atividade econômica da nação - que produziam mais charque que podia ser trocado por bens manufaturados pela recente revolução industrial dos ingleses, desde os têxteis ao metal mecânico, que por seu lado também necessitavam de mercado consumidor.
Aprendemos a segunda norma da economia brazuca, se o nosso produto está bem cotado, vamos importar dos concorrentes, para regular os preços no mercado interno. Na prática funciona assim, para reduzir os custos com mão de obra (escrava), compramos charque no Prata aos preços correntes e vendemos mais barato no mercado interno, derrubamos os preços pagos ao produtor brasileiro de charque, que se obriga a vender por qualquer preço para saldar suas obrigações financeiras e, assim, poder contratar novos créditos. Todas essas operações aquecem a economia e passam, necessariamente, pelo fisco, é óbvio. É diferente de matar a galinha dos ovos de ouro, agora só "dão bastante corda para ela se enforcar!" Mais ou menos como os PRONAF's da vida.
A Guerra do Paraguay foi lucrativa para os comerciantes e pecuaristas argentinos que sustentaram, com carne e farinha, todas as tropas da Tríplice Aliança numa campanha que durou muito mais do que o necessário e dizimou milhares de vidas (dizem alguns que foi proposital - uma guerrinha para acabar com as disputas políticas internas dos três países através da falta de guerrilheiros).
Isso tudo resultou na abolição da escravatura, que foi a melhor saída para redução do custo com mão de obra; pela comida os escravos saíam caro! Fim da cana, fim do charque e muito imigrante, de parceria, plantando e colhendo café, galinhas no terreiro, porcos no chiqueiro e um que outro tourinho das vacas mansas para carnear. Acabou o mercado interno, é a "crise da pecuária!"
As famílias crescendo, o dinheiro encurtando, as sesmarias se dividindo. Vaca, só para inglês enlatar, melhor que nada. Valem pouco, mas ainda temos muitas descendentes daquelas vacas dos jesuítas, vamos carneando, uma a cada quatro semanas, para o consumo da estância. É o século vinte, ou copiamos essa gringada e nos industrializamos ou nos escondemos na estância atrás de nossas tradições senhoriais ibéricas, campo e gado ainda não faltam.
Eis que estoura a Grande Guerra e os ingleses, sempre eles, compram de tudo para desovar na Europa conflagrada. A vaca tem preço finalmente, e aquele outro animalzinho que antes só servia para fornecer lã para o consumo, tirar algum pelego e alimentar o fogo da queima de tijolos naquelas planícies sem fim do sul, onde não existiam árvores para lenha, começa a ter valor.
Há necessidade de muita lã, para alimentar os teares daquela revolução industrial, daquela Inglaterra que se esforça por ganhar muito dinheiro enquanto, secundariamente, luta uma guerra em solo alheio. Há necessidade de muita carne para alimentar os europeus e de muita lã para abrigá-los. Crescem os rebanhos do cone sul, se os castelhanos ganham dinheiro com isso, nós que temos a mesma vocação para a pecuária vamos ganhar também. Os ingleses "botam barraca de lã", os alemães se instalam com a indústria têxtil e os curtumes, mercado não falta.
Terminada a guerra, sobreveio outra "crise da pecuária" que desta vez durou pouco. Logo veio outra guerra, ainda maior e mais longa, mas vieram também os frigoríficos, ingleses e americanos. Nunca o boi valeu tanto, que inveja dos argentinos, já estavam ricos na época da carne enlatada, enriqueceram ainda mais com a frigorificação.
Dá-lhe carne, dá-lhe lã, dá-lhe guerra e dá-lhe progresso, descobriram de tudo desde a energia do átomo até o fio sintético, para fazer paraquedas mais baratos que os de seda.
Em tempo de vacas caras, havia até carne de baleia nos açougues riograndenses! Aprendemos a comer carne de ovelha. Este animalzinho que se reproduz tão bem, aí atirado, não custa nada e ainda serve de comida para a peonada, que reclama e "pede as contas" se não comer carne todos os dias (perpetua-se o antigo hábito de comer por conta do patrão). Devia ter uma lei igual a da cidade, um salário que o patrão pagasse e o empregado que se virasse, se não tem dinheiro não come.
A todas essas, a lã custeava as despesas da estância e ainda dava para vender uns "capões boca cheia" nas festas de fim de ano e páscoa. Tínhamos cooperativas de lãs e lanifícios, agregamos valor (ninguém usava o termo nessa época), agora vendíamos "tops" - lã lavada, cardada e fiada - pronta para o fabrico de fios finos, até o "tropical" para os ternos de verão. Ano em que a lã vale pouco, torramos a caponada, no próximo o preço da lã melhora, falta capão para esquilar, e assim vai. Justo para essas eventualidades, criamos duplo propósito, Corriedale, Ideal e Romney, os uruguaios atacam de Merilin (o duplo propósito clássico, 50/50), e os argentinos, estes venderam a estância na Patagônia e estão vivendo em Buenos Aires, parece que hoje tem uns italianos entendidos em moda criando ovelha por lá (y unos chinos, también), lã não se vê, vai direto para a Europa e Ásia, velo sujo.
Aquele fio sintético que substituiu a seda nos paraquedas, pois é, substituiu a lã em várias outras aplicações. Todo mundo usa algodão, 'calça de brim'.
"-Fresco progresso, diria minha avó, nem o leiteiro passa mais, fazendo o 'reparte'!"
Entre o leiteiro, o padeiro, o verdureiro e as entregas da mercearia, são quatro cavalos desempregados e enviados para o frigorífico (bueno, esta é outra história, e outro animal). Umas guerrinhas, alguns anos e várias leis trabalhistas depois, estamos no interior do Rio Grande do Sul, de férias, achando graça em ver um amigo esbravejando com o capataz:
"- Vocês estão comendo uma ovelha por dia! Que é isso? São só duas famílias e três peões 'mantidos'! De hoje em diante, não carneiem mais de duas ovelhas por semana! Vão acabar com o rebanho, deste jeito!" (Para ser justo com o capataz: nosso amigo esqueceu de contar sua própria família e as visitas de férias).
Passada a graça, e uns dias, ao pensar naquela bronca, "só por causa dumas ovelhas de descarte". Fazendo as contas, que carneando duas por semana resultaria em 104 no ano e que, desconsiderando a mortalidade em todas as idades, à uma taxa de reposição de 20% seriam necessárias 500 ovelhas de cria somente para obtenção deste rebanho de consumo. E nesta conta ainda devem ser colocados os capõezinhos que os guris levam para o churrasquinho da turma, os que vão para a caridade e para a política, aquele raçudinho que vai para a exposição (dentro do isopor com gelo - ação de "marketing").
A percepção é de que o ovelheiro não é um profissional da ovinocultura, as ovelhas estão lá como um subproduto, que não chega a ser coadjuvante da bovinocultura pois vive dos seus restos. Já são de pouca ajuda na manutenção da estância, afinal não pagam mais a conta dos insumos e, graças a tantas "leis para proteger o trabalhador", a peonada também encolheu, assim como suas famílias. O rebanho é um patrimônio cultural e, como herança, é parecido com o "Modelo A" do vovô, por mais caro que custe e ineficiente que seja, exige manutenção para não desaparecer consumido pelo tempo.
Infelizmente, como atividade econômica, a criação de ovelhas nestes termos tradicionais, é mais prejudicial do que benéfica para a ovinocultura. Ao não ver o rebanho como "negócio", não lhe dedicamos investimentos e, ao não investir, não esperamos retorno compensatório. No final do ano mandamos embora a cavalhada velha (que vão curtir a merecida aposentadoria num balcão de congelados no Japão), as vacas mansas muito usadas, aquela caponada e ovelhas desdentadas. Aceitamos qualquer preço por estes animais, afinal, estamos fazendo uma "limpeza do campo". A quantidade de dinheiro recebido por essas vendas, só é relevante para definir o número de dias, a mais ou a menos, que a família vai passar em Santa Catarina, de férias. Proceder desta forma é fazer pecuária predatória, é concorrer para a formação de um mercado prejudicial aos produtores e aos consumidores (tanto pela remuneração quanto pela qualidade do produto), é defender os interesses dos intermediários na cadeia produtiva, aqueles "peixes grandes", que são os que menos comprometem e mais lucram em qualquer atividade produtiva na nossa "pátria amada e idolatrada". Lucram até quando não trabalham, basta ameaçar fechar as portas e demitir alguns funcionários para arranjar uma ajuda governamental.
Assim, convivemos com preços atrelados aos preços do boi sem nenhuma razão que justifique esse atrelamento. Alguma bruxaria na Bolsa de Chicago, adivinha o tamanho da safra americana e profetiza quanto o "big brother" estará disposto a pagar pelo que será produzido no hemisfério sul na próxima safra. Definido o valor do farelo de soja, todo o resto vem atrás, milho, frango, porco, boi e o cordeiro à cabresto. Nada disto ultrapassa o campo da especulação e da fantasia, nada é real. Pior agora que o grande irmão "quebrou", desvalorizando a própria moeda ao investir internamente sem possibilidades de retorno financeiro. Nós passamos por isto recentemente, salvar empresa falida com o dinheiro do povo é dureza, "Seu Obama", mas, se não salvar, este mesmo povo corre aos bancos querendo sacar o dinheiro que não existe e rebenta de vez com a economia do país. Jogar no mercado de capitais e "futuros", é coisa de quem tem muito dinheiro, de corretor que joga com o dinheiro alheio, de quem é dono da banca e pode descarregar o prejuízo em outras atividades, instituições ou países. Pelado não entra em cassino.
Plantar e criar é a nossa vocação, somos bons nisso, chega de pagar a conta dos perdedores que, enfim, jogam mal mas jogam porque querem. Quem nunca se fez a pergunta, "o que define o preço do boi?" Aliás, pergunto a todos vocês, colegas pecuaristas:
Qual a razão de termos os preços dos nossos produtos estabelecidos por terceiros?
A todo momento aparecem anúncios de "cursos de formação de preços", com a chancela das Federações Comerciais, Industriais e de Serviços. E nós, por que não formamos nossos preços, por que nos sujeitamos a receber o preço oferecido e arcamos com o resultado, seja ele qual for? Já que falamos de história, também esta é uma postura cultural herdada dos nossos antepassados? Será consequência direta da terra recebida do Império em troca da ocupação, ou coisa de índio que não valoriza sua posse, talvez de escravo desterrado? Nosso maior componente de custos é alimentação, se não dermos comida comprada e nossos animais forem criados exclusivamente a campo, quer dizer que nos saíram de graça?
Pensem em formar seus preços, meus colegas, nada os impede. Se nossa grande nação não segue o exemplo da Austrália, que consegue ver e respeitar o produtor e a produção rural, como o grande gerador de riqueza que é, cabe a nós o "fazer-se respeitar". Lembram aquele ministro da agricultura que dizia que "quando o governo não atrapalha já está ajudando", não é mais suficiente que assim seja. Ao invés de regulamentar com o objetivo único de fiscalizar tributos, atravancando a atividade agropecuária, o estado deve participar como um facilitador da mesma, além de poder e dever demonstrar para todos os brasileiros que nem tudo é a "sacrossanta agricultura familiar", assim como nem todos são grandes e nem todo pequeno é familiar, principalmente, que nem todos aqui são vilões tentando dinheiro fácil.
Reflitam sobre isso, conversem com seus pares nas Associações e Sindicatos Rurais de suas cidades, consultem suas Federações. Apertem a Federação da Agricultura para que chame as Federações das Indústrias e do Comércio para uma conversa, ao menos se poderá responsabilizar algum segmento pela falta de cooperação entre as forças produtivas. Esperar pelo governo ou por regulamentação pode demorar outros 500 anos. Antes de me acusarem de estar delirando, lembrem que o pessoal do Centro-Oeste consegue receber à vista pelo gado vendido, coisa inconcebível até bem pouco tempo. Velho hábito que a indústria frigorífica adquiriu no tempo da super inflação e do "over night" e que hoje já não faz sentido.
Assim se todo o processo é dinâmico, nada é imutável (ou 'imexível' dizia um outro ministro), podemos sim, fazer a diferença e receber o que merecemos pelo que produzimos. A história está aí por ser escrita, depende de nós o que passará para o papel sobre os dias que vivemos.
Saudações ovelheiras!
Ivan Saul D.V.M. M.Sc.Vet. - Granja Po'A Porã, 23/nov/2010.
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