O censo é uma fotografia da autodeclaração religiosa em determinado contexto: ele não possibilita qualificar a mudança, ou entender suas nuances, mas apenas nos ajuda a visualizar as macrolinhas das transformações de uma década, esclarece Renata Menezes
Thamiris Magalhães
Thamiris Magalhães
Em relação à diferença da Igreja Católica com as outras religiões, Renata Menezes aponta que ela tem uma história milenar e uma estrutura que é simultaneamente permeável à convivência com a heterodoxia em suas margens internas, mas refratária a mudanças radicais que poderiam efetivamente colocá-la em diálogo com a modernidade. Em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Renata Menezes narra que, no Brasil, ela perde uma condição de monopólio e de hegemonia, ou de pilar da cultura e da sociedade, para cair no lugar de mais uma opção no campo religioso brasileiro, ainda que este permaneça marcadamente cristão. E diz: “Ela teve que aprender a ser a religião da maioria dos brasileiros em vez de ser ‘a religião dos brasileiros’, e está tendo que aprender a lidar com uma situação ainda mais desfavorável, em que ela cada vez mais perde espaço”. Portanto, continua, “saiu de uma posição em que sua reprodução se dava de forma quase automática, transmitida através da família e da cultura, para uma posição inédita no país, de ter que ‘disputar’, ensaiando formas de proselitismo. O que os dados demonstram é que sua estratégia de retomada de posições não tem dado muitos resultados”.
Renata Menezes é professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ; pesquisadora “Jovem Cientista do Nosso Estado”, da Faperj e editora associada da Revista Mana. Possui Bacharelado em História pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Licenciatura em História, pela Faculdade de Educação da mesma universidade, mestrado em Antropologia Social pelo PPGAS/Museu Nacional/UFRJ e doutorado em Antropologia Social pelo mesmo programa. Sua tese de doutorado, A Dinâmica do Sagrado, foi publicada em 2004 pela Relume-Dumará.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Há uma mudança no mapa religioso atual de acordo com os dados do censo? No que consiste essa mudança?
Renata Menezes – A meu ver, existem dois conjuntos de mudanças: aquelas que confirmam o movimento dos últimos censos, isto é, que apresentam uma continuidade com as séries históricas, e aquelas que assinalam certa novidade, isto é, que apontam para descontinuidades com os censos anteriores.
Como mudanças esperadas, podemos falar do decréscimo expressivo do catolicismo e do crescimento evangélico, que são movimentos que vêm ocorrendo a largos passos desde a década de 1980. E, dentro do segmento evangélico, há novamente um decréscimo nas igrejas históricas, ligadas ao protestantismo clássico (luteranos, presbiterianos, metodistas) e um forte crescimento de igrejas pentecostais. Também em nível nacional, permanecem as tendências regionais de um norte mais evangélico e de um nordeste e sul mais católicos, sendo o sudeste uma interessante mistura de um estado mais católico do que a média nacional (Minas Gerais, com 70,43% de católicos e 20,19% de evangélicos); um estado um pouco menos católico que a média nacional (São Paulo, com 60,06% de católicos e 24,08% de evangélicos) e dois estados bem menos católicos e mais evangélicos do que essa média (Rio de Janeiro, com 45,81% de católicos e 29,37% de evangélicos, e Espírito Santo, com 53,29% de católicos e 33,12% de evangélicos).
Surpresas
Todos esses dados já foram sublinhados pelos pesquisadores que se pronunciaram sobre os resultados do censo de 2010, mas esses comentaristas também assinalaram algumas surpresas, como o decréscimo no número de membros da Igreja Universal do Reino de Deus, igreja de modelo hierárquico, centralizado e episcopal, e o crescimento expressivo da Assembleia de Deus, igreja de modelo mais congregacional, capilar e deliberativo, para além de diferenças teológicas e litúrgicas entre ambas. Esse dado é extremamente relevante, pois nos impede de tratar os evangélicos, mesmo os pentecostais, em bloco, de modo unívoco, e nos leva a pensar na riqueza de sua diversidade interna, bem como nas diferentes modalidades de agregação e pertencimento compreendidas por essa identidade religiosa.
Sem religião
Também me chamou a atenção o crescimento dos sem religião. Seu crescimento vinha ocorrendo desde a década de 1980: eles eram 0,8 %, em 1970, passando para 1,6% em 1980, isto é, dobrando seu percentual no conjunto da população, para 4,8% em 1991 e para 7,3% em 2000. E em 2010, chegam a 8,0% da população. Mas se esse bloco continua crescendo e permanece como a terceira categoria no universo religioso do país (bem acima da quarta colocada, a categoria espírita, com 2,0% da população), esse crescimento se deu de forma muito menos acelerada do que nas décadas passadas. Isso é curioso porque, em alguns momentos, nós, que pesquisamos religião, chegamos a levantar a hipótese de que esse bloco estaria crescendo num ritmo igual ao dos pentecostais, e isso não se deu. Será que essa categoria estaria atingindo seu teto?
IHU On-Line – De que maneira podemos definir o “sincretismo religioso”? Quais suas principais características? Ele é retratado no censo? De que maneira?
Renata Menezes – Sincretismo religioso é uma categoria bastante complicada de ser utilizada por cientistas sociais. Ela é uma categoria surgida nos debates teológicos para identificar as misturas (sínteses) entre sistemas religiosos, um amálgama de concepções heterogêneas, mas foi utilizada na maioria das vezes em disputas inter e intrarreligiosas com o sentido pejorativo de desqualificar as práticas alheias como impuras, misturadas, desconexas. E isso era pretexto para condenar essas práticas porque seriam pouco ortodoxas, vulgares, sem sentido, etc. Mas, na verdade, sabemos que todos os processos culturais têm uma dimensão de mistura, de integração das diversidades, pois os grupos humanos não vivem isolados, mas em comunicação. Assim, suas cosmovisões, suas maneiras de pensar, de exprimir afetos, seus valores e técnicas estão em contato, provocando influências mútuas e ressignificações constantes. O próprio catolicismo surgiu num processo de hibridação entre o judaísmo, as religiões de Roma, as tradições semíticas e orientais...
Sincretismo como um valor positivo
Na história do Brasil, algumas religiões, como a umbanda, inverteram o sinal pejorativo do termo sincretismo e passaram a tratá-lo como um valor positivo. A umbanda, assumindo-se como sincrética, trouxe a mistura de prática das tradições afro, indígena, católica e kardecista como um sinal de sua legitimidade e de sua brasilidade, por englobar as matrizes religiosas tradicionais da sociedade brasileira. Assim, transformaram um estigma numa afirmação positiva de singularidade. Mas essa posição é atacada por vários grupos religiosos, por condenarem uma mistura que consideram excessiva, incapaz de integrar um sistema fechado e coerente, pobre intelectualmente, etc.
É um debate sem fim, pois envolve categorias analíticas em embates políticos e sociais, em torno da mistura religiosa e cultural. Por isso os cientistas sociais passaram a utilizar o conceito de sincretismo com muito cuidado, para não embarcar num debate sobre legitimidade religiosa que não lhes dizia respeito. Mas como as formas puras só existem nos manuais das ortodoxias religiosas – as pessoas estão em movimento permanente, senão entre igrejas, ao menos em torno de sistemas de pensamento e formas de organização, o tema da mistura sempre retorna, seja com o nome de sincretismo, seja sob a forma de outro conceito.
TrânsitoA dinâmica de transformações no domínio das religiões no Brasil, dos anos 1980 até agora, em que se torna comum não apenas trocar da religião de nascimento para uma segunda, mas fazê-lo até mesmo várias vezes ao longo da vida, tem trazido à baila novamente o tema do sincretismo: que misturas, que combinações os agentes religiosos têm feito que justificam ou que acompanham suas passagens por diferentes religiões ou igrejas?
Mas se o tema está de novo na pauta, não é o censo que vai ajudar a respondê-lo. Pois o censo é uma fotografia da autodeclaração religiosa em determinado contexto: ele não possibilita qualificar a mudança, ou entender suas nuances, mas apenas nos ajuda a visualizar as macrolinhas das transformações de uma década. Só saindo da dimensão do macro e do quantitativo para a esfera do estudo de caso e do qualitativo conseguiremos identificar processos mais sutis de transformações e combinações nas esferas dos valores e das crenças.
IHU On-Line – Por que as regiões Nordeste e Sul ainda concentram o maior número de católicos e o Rio de Janeiro concentra o menor número?
Renata Menezes – A hipótese é que nessas regiões (Nordeste, Sul) a transmissão religiosa ainda ocorre largamente pela família, isto é, que há um grande peso da religião herdada dos pais, da comunidade de origem. E são regiões em que o catolicismo há muito tem o papel de demarcação de identidade, tanto étnica como regional. Tanto é que, nos anos 1990, por exemplo, era dessas regiões que vinha a maior parte do clero católico masculino do país. Será que a transmissão familiar diminuiu no Rio de Janeiro mais do que em outros estados? Teria o decréscimo do catolicismo no Estado alguma associação com a questão da migração, da pobreza, ou mesmo da violência, que marcou o estado nas últimas décadas? Alguns estudiosos, como a professora Christina Vital da Cunha e o professor César Pinheiro Teixeira , têm encontrado na capital desse estado a figura do “bandido evangélico”, ou do “traficante evangélico”, ou seja, de criminosos que manifestam sua adesão à identidade evangélica por encontrarem nessas igrejas formas de proteção que consideram mais eficazes do que aquelas que encontravam anteriormente na Igreja Católica ou nos cultos afro-brasileiros.
Dificuldades
Acho, no entanto, difícil comparar duas regiões com um estado. Primeiro, porque há, como já indiquei, uma grande variedade intrarregional. O Rio de Janeiro encontra-se em uma região em que há uma diversidade interna muito grande, com estados mais e menos católicos, mais e menos evangélicos. Segundo, porque o Rio de Janeiro tem o mais baixo percentual de católicos do país, mas não é o mais evangélico: há um grande número de pessoas “sem religião”, o percentual de afro-brasileiros é quase o triplo do índice nacional e o de espíritas, quase o dobro. Assim, é preciso uma análise interna para a configuração do campo das religiões nesse estado, para entender para onde estão indo os católicos e de onde vêm os evangélicos, e definir em que medida se trata de condições generalizáveis a outros estados, ou seja, extrapoláveis para o resto do país.
Uma curiosidade: olhando os dados do espiritismo por dentro, seis estados estão acima da média nacional, de 2,02%: Rio de Janeiro (4,05%), Distrito Federal (3,5%), São Paulo (3,29%), Rio Grande do Sul (3,21%), Goiás (2,46%) e Minas Gerais (2,14%). A que se deveria essa diversidade?
IHU On-Line – Que rumos o catolicismo está tomando diante do futuro, de acordo com os dados do último censo?
Renata Menezes – O catolicismo vem diminuindo, mantendo quase o mesmo ritmo nos últimos trinta anos e, pela primeira vez, diminuindo não apenas em números percentuais, mas em números absolutos. Ou seja, há menos católicos no país do que no ano 2000. O teólogo Faustino Teixeira destacou que há prognósticos de demógrafos, como o professor José Eustáquio Diniz Alves, em artigo publicado no Globo de 1-7-2012, página 16, que até 2030 os católicos devem ser menos de 50% da população do país e até 2040 seu número empata com o de evangélicos. Mas isso ocorrerá, obviamente, se a dinâmica de transformações do campo religioso brasileiro se mantiver. Será interessante acompanhar esse processo e observar em que medida esses prognósticos irão se cumprir ou não, e quais os fatores que irão marcar as novas configurações dessa esfera da vida social.
IHU On-Line – Atualmente torna-se mais visível o trânsito religioso. Qual é o significado religioso desse trânsito e qual sua implicação para as instituições religiosas?
Renata Menezes – O trânsito religioso é um fenômeno que não se atém ao universo das religiões, pois tem implicações sociais, econômicas, culturais, como também na família, na escola, na construção de subjetividades, na noção de pessoa... Ele é fruto de transformações históricas, mas também as provoca, num processo de alimentação mútua do qual, pela velocidade com a qual tem ocorrido, muitas vezes é difícil perceber as minúcias. No Ocidente – e falo em uma escala ampla, para enfatizar que se trata de um processo que não se dá apenas no Brasil ou no “terceiro mundo” –, temos visto um processo de desinstitucionalização religiosa, de desfiliação das igrejas de origem. Esse processo pode desaguar no ateísmo, no agnosticismo, na opção por espiritualidades difusas ou por práticas new age, ou pode desaguar em conversões, como ao pentecostalismo (mais corrente na América Latina e na África), ao islamismo, religiões de matriz oriental (mais corrente na Europa e EUA), ou uma procura de formas fundamentalistas de sua religião anterior.
Esse movimento, como a socióloga Sílvia Fernandes assinalou em entrevista ao Instituto Humanitas Unsinos – IHU, tem muito de experimentação, e pode se dar de formas diversas, isoladas ou combinadas, o que faz com que o quadro das mudanças seja multifacetado.
Implicações para as igrejas
As implicações para as igrejas são muitas. Elas têm se colocado, desde os anos 1980, em uma situação de competição aberta por fiéis, por legitimidade social, por recursos e espaço no Estado, por imposição de sua visão de mundo à sociedade. Em países em que há imposto religioso, como a Alemanha, a desfiliação de membros significa uma perda direta de recursos. Mas é claro que o foco da preocupação das igrejas não é meramente com “o caixa”, porém com o que isso significa em termos de seu espaço na sociedade, o que isso implica em termos civilizacionais: como seria um Ocidente não cristão, ou um Ocidente marcado por um cristianismo exclusivamente pentecostal? Estão em jogo projetos eclesiástico-eclesiológicos, e não apenas cifras numéricas.
IHU On-Line – A Igreja Universal também perdeu 10% dos fiéis na última década. Isso está relacionado com que fatores?
Renata Menezes é professora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ; pesquisadora “Jovem Cientista do Nosso Estado”, da Faperj e editora associada da Revista Mana. Possui Bacharelado em História pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Licenciatura em História, pela Faculdade de Educação da mesma universidade, mestrado em Antropologia Social pelo PPGAS/Museu Nacional/UFRJ e doutorado em Antropologia Social pelo mesmo programa. Sua tese de doutorado, A Dinâmica do Sagrado, foi publicada em 2004 pela Relume-Dumará.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Há uma mudança no mapa religioso atual de acordo com os dados do censo? No que consiste essa mudança?
Renata Menezes – A meu ver, existem dois conjuntos de mudanças: aquelas que confirmam o movimento dos últimos censos, isto é, que apresentam uma continuidade com as séries históricas, e aquelas que assinalam certa novidade, isto é, que apontam para descontinuidades com os censos anteriores.
Como mudanças esperadas, podemos falar do decréscimo expressivo do catolicismo e do crescimento evangélico, que são movimentos que vêm ocorrendo a largos passos desde a década de 1980. E, dentro do segmento evangélico, há novamente um decréscimo nas igrejas históricas, ligadas ao protestantismo clássico (luteranos, presbiterianos, metodistas) e um forte crescimento de igrejas pentecostais. Também em nível nacional, permanecem as tendências regionais de um norte mais evangélico e de um nordeste e sul mais católicos, sendo o sudeste uma interessante mistura de um estado mais católico do que a média nacional (Minas Gerais, com 70,43% de católicos e 20,19% de evangélicos); um estado um pouco menos católico que a média nacional (São Paulo, com 60,06% de católicos e 24,08% de evangélicos) e dois estados bem menos católicos e mais evangélicos do que essa média (Rio de Janeiro, com 45,81% de católicos e 29,37% de evangélicos, e Espírito Santo, com 53,29% de católicos e 33,12% de evangélicos).
Surpresas
Todos esses dados já foram sublinhados pelos pesquisadores que se pronunciaram sobre os resultados do censo de 2010, mas esses comentaristas também assinalaram algumas surpresas, como o decréscimo no número de membros da Igreja Universal do Reino de Deus, igreja de modelo hierárquico, centralizado e episcopal, e o crescimento expressivo da Assembleia de Deus, igreja de modelo mais congregacional, capilar e deliberativo, para além de diferenças teológicas e litúrgicas entre ambas. Esse dado é extremamente relevante, pois nos impede de tratar os evangélicos, mesmo os pentecostais, em bloco, de modo unívoco, e nos leva a pensar na riqueza de sua diversidade interna, bem como nas diferentes modalidades de agregação e pertencimento compreendidas por essa identidade religiosa.
Sem religião
Também me chamou a atenção o crescimento dos sem religião. Seu crescimento vinha ocorrendo desde a década de 1980: eles eram 0,8 %, em 1970, passando para 1,6% em 1980, isto é, dobrando seu percentual no conjunto da população, para 4,8% em 1991 e para 7,3% em 2000. E em 2010, chegam a 8,0% da população. Mas se esse bloco continua crescendo e permanece como a terceira categoria no universo religioso do país (bem acima da quarta colocada, a categoria espírita, com 2,0% da população), esse crescimento se deu de forma muito menos acelerada do que nas décadas passadas. Isso é curioso porque, em alguns momentos, nós, que pesquisamos religião, chegamos a levantar a hipótese de que esse bloco estaria crescendo num ritmo igual ao dos pentecostais, e isso não se deu. Será que essa categoria estaria atingindo seu teto?
IHU On-Line – De que maneira podemos definir o “sincretismo religioso”? Quais suas principais características? Ele é retratado no censo? De que maneira?
Renata Menezes – Sincretismo religioso é uma categoria bastante complicada de ser utilizada por cientistas sociais. Ela é uma categoria surgida nos debates teológicos para identificar as misturas (sínteses) entre sistemas religiosos, um amálgama de concepções heterogêneas, mas foi utilizada na maioria das vezes em disputas inter e intrarreligiosas com o sentido pejorativo de desqualificar as práticas alheias como impuras, misturadas, desconexas. E isso era pretexto para condenar essas práticas porque seriam pouco ortodoxas, vulgares, sem sentido, etc. Mas, na verdade, sabemos que todos os processos culturais têm uma dimensão de mistura, de integração das diversidades, pois os grupos humanos não vivem isolados, mas em comunicação. Assim, suas cosmovisões, suas maneiras de pensar, de exprimir afetos, seus valores e técnicas estão em contato, provocando influências mútuas e ressignificações constantes. O próprio catolicismo surgiu num processo de hibridação entre o judaísmo, as religiões de Roma, as tradições semíticas e orientais...
Sincretismo como um valor positivo
Na história do Brasil, algumas religiões, como a umbanda, inverteram o sinal pejorativo do termo sincretismo e passaram a tratá-lo como um valor positivo. A umbanda, assumindo-se como sincrética, trouxe a mistura de prática das tradições afro, indígena, católica e kardecista como um sinal de sua legitimidade e de sua brasilidade, por englobar as matrizes religiosas tradicionais da sociedade brasileira. Assim, transformaram um estigma numa afirmação positiva de singularidade. Mas essa posição é atacada por vários grupos religiosos, por condenarem uma mistura que consideram excessiva, incapaz de integrar um sistema fechado e coerente, pobre intelectualmente, etc.
É um debate sem fim, pois envolve categorias analíticas em embates políticos e sociais, em torno da mistura religiosa e cultural. Por isso os cientistas sociais passaram a utilizar o conceito de sincretismo com muito cuidado, para não embarcar num debate sobre legitimidade religiosa que não lhes dizia respeito. Mas como as formas puras só existem nos manuais das ortodoxias religiosas – as pessoas estão em movimento permanente, senão entre igrejas, ao menos em torno de sistemas de pensamento e formas de organização, o tema da mistura sempre retorna, seja com o nome de sincretismo, seja sob a forma de outro conceito.
TrânsitoA dinâmica de transformações no domínio das religiões no Brasil, dos anos 1980 até agora, em que se torna comum não apenas trocar da religião de nascimento para uma segunda, mas fazê-lo até mesmo várias vezes ao longo da vida, tem trazido à baila novamente o tema do sincretismo: que misturas, que combinações os agentes religiosos têm feito que justificam ou que acompanham suas passagens por diferentes religiões ou igrejas?
Mas se o tema está de novo na pauta, não é o censo que vai ajudar a respondê-lo. Pois o censo é uma fotografia da autodeclaração religiosa em determinado contexto: ele não possibilita qualificar a mudança, ou entender suas nuances, mas apenas nos ajuda a visualizar as macrolinhas das transformações de uma década. Só saindo da dimensão do macro e do quantitativo para a esfera do estudo de caso e do qualitativo conseguiremos identificar processos mais sutis de transformações e combinações nas esferas dos valores e das crenças.
IHU On-Line – Por que as regiões Nordeste e Sul ainda concentram o maior número de católicos e o Rio de Janeiro concentra o menor número?
Renata Menezes – A hipótese é que nessas regiões (Nordeste, Sul) a transmissão religiosa ainda ocorre largamente pela família, isto é, que há um grande peso da religião herdada dos pais, da comunidade de origem. E são regiões em que o catolicismo há muito tem o papel de demarcação de identidade, tanto étnica como regional. Tanto é que, nos anos 1990, por exemplo, era dessas regiões que vinha a maior parte do clero católico masculino do país. Será que a transmissão familiar diminuiu no Rio de Janeiro mais do que em outros estados? Teria o decréscimo do catolicismo no Estado alguma associação com a questão da migração, da pobreza, ou mesmo da violência, que marcou o estado nas últimas décadas? Alguns estudiosos, como a professora Christina Vital da Cunha e o professor César Pinheiro Teixeira , têm encontrado na capital desse estado a figura do “bandido evangélico”, ou do “traficante evangélico”, ou seja, de criminosos que manifestam sua adesão à identidade evangélica por encontrarem nessas igrejas formas de proteção que consideram mais eficazes do que aquelas que encontravam anteriormente na Igreja Católica ou nos cultos afro-brasileiros.
Dificuldades
Acho, no entanto, difícil comparar duas regiões com um estado. Primeiro, porque há, como já indiquei, uma grande variedade intrarregional. O Rio de Janeiro encontra-se em uma região em que há uma diversidade interna muito grande, com estados mais e menos católicos, mais e menos evangélicos. Segundo, porque o Rio de Janeiro tem o mais baixo percentual de católicos do país, mas não é o mais evangélico: há um grande número de pessoas “sem religião”, o percentual de afro-brasileiros é quase o triplo do índice nacional e o de espíritas, quase o dobro. Assim, é preciso uma análise interna para a configuração do campo das religiões nesse estado, para entender para onde estão indo os católicos e de onde vêm os evangélicos, e definir em que medida se trata de condições generalizáveis a outros estados, ou seja, extrapoláveis para o resto do país.
Uma curiosidade: olhando os dados do espiritismo por dentro, seis estados estão acima da média nacional, de 2,02%: Rio de Janeiro (4,05%), Distrito Federal (3,5%), São Paulo (3,29%), Rio Grande do Sul (3,21%), Goiás (2,46%) e Minas Gerais (2,14%). A que se deveria essa diversidade?
IHU On-Line – Que rumos o catolicismo está tomando diante do futuro, de acordo com os dados do último censo?
Renata Menezes – O catolicismo vem diminuindo, mantendo quase o mesmo ritmo nos últimos trinta anos e, pela primeira vez, diminuindo não apenas em números percentuais, mas em números absolutos. Ou seja, há menos católicos no país do que no ano 2000. O teólogo Faustino Teixeira destacou que há prognósticos de demógrafos, como o professor José Eustáquio Diniz Alves, em artigo publicado no Globo de 1-7-2012, página 16, que até 2030 os católicos devem ser menos de 50% da população do país e até 2040 seu número empata com o de evangélicos. Mas isso ocorrerá, obviamente, se a dinâmica de transformações do campo religioso brasileiro se mantiver. Será interessante acompanhar esse processo e observar em que medida esses prognósticos irão se cumprir ou não, e quais os fatores que irão marcar as novas configurações dessa esfera da vida social.
IHU On-Line – Atualmente torna-se mais visível o trânsito religioso. Qual é o significado religioso desse trânsito e qual sua implicação para as instituições religiosas?
Renata Menezes – O trânsito religioso é um fenômeno que não se atém ao universo das religiões, pois tem implicações sociais, econômicas, culturais, como também na família, na escola, na construção de subjetividades, na noção de pessoa... Ele é fruto de transformações históricas, mas também as provoca, num processo de alimentação mútua do qual, pela velocidade com a qual tem ocorrido, muitas vezes é difícil perceber as minúcias. No Ocidente – e falo em uma escala ampla, para enfatizar que se trata de um processo que não se dá apenas no Brasil ou no “terceiro mundo” –, temos visto um processo de desinstitucionalização religiosa, de desfiliação das igrejas de origem. Esse processo pode desaguar no ateísmo, no agnosticismo, na opção por espiritualidades difusas ou por práticas new age, ou pode desaguar em conversões, como ao pentecostalismo (mais corrente na América Latina e na África), ao islamismo, religiões de matriz oriental (mais corrente na Europa e EUA), ou uma procura de formas fundamentalistas de sua religião anterior.
Esse movimento, como a socióloga Sílvia Fernandes assinalou em entrevista ao Instituto Humanitas Unsinos – IHU, tem muito de experimentação, e pode se dar de formas diversas, isoladas ou combinadas, o que faz com que o quadro das mudanças seja multifacetado.
Implicações para as igrejas
As implicações para as igrejas são muitas. Elas têm se colocado, desde os anos 1980, em uma situação de competição aberta por fiéis, por legitimidade social, por recursos e espaço no Estado, por imposição de sua visão de mundo à sociedade. Em países em que há imposto religioso, como a Alemanha, a desfiliação de membros significa uma perda direta de recursos. Mas é claro que o foco da preocupação das igrejas não é meramente com “o caixa”, porém com o que isso significa em termos de seu espaço na sociedade, o que isso implica em termos civilizacionais: como seria um Ocidente não cristão, ou um Ocidente marcado por um cristianismo exclusivamente pentecostal? Estão em jogo projetos eclesiástico-eclesiológicos, e não apenas cifras numéricas.
IHU On-Line – A Igreja Universal também perdeu 10% dos fiéis na última década. Isso está relacionado com que fatores?
Renata Menezes – Novamente citando Sílvia Fernandes, uma hipótese é de que a estrutura hierárquica, centralizada da IURD, esteja enfrentando a concorrência de igrejas neopentecostais de estrutura mais flexível, portanto mais e abertas à criatividade e à incorporação de “novidades” em seus cultos.
Outra hipótese que poderia se somar a essa seria a de que haveria um limite ao crescimento de uma igreja tão calcada na teologia da prosperidade. Na África, por exemplo, existem igrejas neopentecostais surgidas como dissidências da IURD, como o Templo da Restauração, em Cabo Verde, constituídas por pessoas que, endividadas pelo dízimo doado à IURD, passam a desconfiar dos princípios teológicos dessa igreja e criam outras, permanecendo, no entanto, no universo pentecostal.
IHU On-Line – Qual é a grande diferença da Igreja Católica com relação às outras religiões?
Renata Menezes – A Igreja Católica tem uma história milenar e uma estrutura que é simultaneamente permeável à convivência com a heterodoxia em suas margens internas, mas refratária a mudanças radicais que poderiam efetivamente colocá-la em diálogo com a modernidade. No Brasil, ela perde uma condição de monopólio e de hegemonia, ou de pilar da cultura e da sociedade, para cair no lugar de mais uma opção no campo religioso brasileiro, ainda que este permaneça marcadamente cristão. Ela teve que aprender a ser a religião da maioria dos brasileiros em vez de ser “a religião dos brasileiros”, e está tendo que aprender a lidar com uma situação ainda mais desfavorável, em que ela cada vez mais perde espaço. Portanto, saiu de uma posição em que sua reprodução se dava de forma quase automática, transmitida através da família e da cultura, para uma posição inédita no país, de ter que “disputar”, ensaiando formas de proselitismo. O que os dados demonstram é que sua estratégia de retomada de posições não tem dado muitos resultados.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Renata Menezes – A meu ver, a divulgação dos resultados referentes à religião no censo 2010 provocou uma comoção surpreendente: tanto as igrejas e as pessoas religiosas como a mídia e os pesquisadores esperavam esses dados com ansiedade, divulgaram-nos e comentaram-nos de uma forma que me pareceu singular. Gostaria de destacar esse ponto como um sinal do peso que esses dados estão tendo na sociedade brasileira atual: usados por políticos para construir alianças eleitorais, por religiosos para conseguir espaço na esfera pública, por Igrejas, como evidência de sua importância social, etc. Diante desse quadro, acho importante destacar os limites de um censo na compreensão da dinâmica religiosa de um país. A questão sobre religião no censo brasileiro é apenas uma, claramente considerada insuficiente pelos pesquisadores para dar conta de suas preocupações, aplicada apenas no questionário longo, de uma amostra dentro do país. As inúmeras categorias de agrupamento (66) não resolvem as dificuldades dos aplicadores em enquadrar as informações obtidas, pois muitas definições são ambíguas até mesmo para os especialistas do tema. Assim, é um dado com limitações. Porém, é o dado mais macroexistente, o único a oferecer uma fotografia panorâmica da vida nacional. Devemos nos apropriar dele, sem dúvida, mas também sem expectativas de extrair daí todas as respostas às nossas questões.
Outra hipótese que poderia se somar a essa seria a de que haveria um limite ao crescimento de uma igreja tão calcada na teologia da prosperidade. Na África, por exemplo, existem igrejas neopentecostais surgidas como dissidências da IURD, como o Templo da Restauração, em Cabo Verde, constituídas por pessoas que, endividadas pelo dízimo doado à IURD, passam a desconfiar dos princípios teológicos dessa igreja e criam outras, permanecendo, no entanto, no universo pentecostal.
IHU On-Line – Qual é a grande diferença da Igreja Católica com relação às outras religiões?
Renata Menezes – A Igreja Católica tem uma história milenar e uma estrutura que é simultaneamente permeável à convivência com a heterodoxia em suas margens internas, mas refratária a mudanças radicais que poderiam efetivamente colocá-la em diálogo com a modernidade. No Brasil, ela perde uma condição de monopólio e de hegemonia, ou de pilar da cultura e da sociedade, para cair no lugar de mais uma opção no campo religioso brasileiro, ainda que este permaneça marcadamente cristão. Ela teve que aprender a ser a religião da maioria dos brasileiros em vez de ser “a religião dos brasileiros”, e está tendo que aprender a lidar com uma situação ainda mais desfavorável, em que ela cada vez mais perde espaço. Portanto, saiu de uma posição em que sua reprodução se dava de forma quase automática, transmitida através da família e da cultura, para uma posição inédita no país, de ter que “disputar”, ensaiando formas de proselitismo. O que os dados demonstram é que sua estratégia de retomada de posições não tem dado muitos resultados.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algum aspecto não questionado?
Renata Menezes – A meu ver, a divulgação dos resultados referentes à religião no censo 2010 provocou uma comoção surpreendente: tanto as igrejas e as pessoas religiosas como a mídia e os pesquisadores esperavam esses dados com ansiedade, divulgaram-nos e comentaram-nos de uma forma que me pareceu singular. Gostaria de destacar esse ponto como um sinal do peso que esses dados estão tendo na sociedade brasileira atual: usados por políticos para construir alianças eleitorais, por religiosos para conseguir espaço na esfera pública, por Igrejas, como evidência de sua importância social, etc. Diante desse quadro, acho importante destacar os limites de um censo na compreensão da dinâmica religiosa de um país. A questão sobre religião no censo brasileiro é apenas uma, claramente considerada insuficiente pelos pesquisadores para dar conta de suas preocupações, aplicada apenas no questionário longo, de uma amostra dentro do país. As inúmeras categorias de agrupamento (66) não resolvem as dificuldades dos aplicadores em enquadrar as informações obtidas, pois muitas definições são ambíguas até mesmo para os especialistas do tema. Assim, é um dado com limitações. Porém, é o dado mais macroexistente, o único a oferecer uma fotografia panorâmica da vida nacional. Devemos nos apropriar dele, sem dúvida, mas também sem expectativas de extrair daí todas as respostas às nossas questões.
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