sábado, 1 de dezembro de 2012

A classe média e a corrupção no Brasil



 
Flavio Lyra
Economista. Cursou doutorado de economia na UNICAMP. Ex-técnico do IPEA
Adital
Brasília, 26 de novembro de 2012
O tema da corrupção, especialmente em sua existência associada ao desvio de recursos públicos para o favorecimento de empresas, de políticos e de pessoas comuns, constitui a pièce de résistance, o prato principal, do cardápio político da classe média.
Não sem fortes razões é assim, pois os membros da classe média conhecem de perto o funcionamento dos mecanismos da corrupção, seja como observadores, seja como executores das práticas envolvidas, através das posições que ocupam nas empresas e na administração pública; seja como beneficiários parciais dos resultados das fraudes.
A atitude de indignação que os membros da classe média revelam frente aos casos mais notórios de corrupção que chegam ao conhecimento público deve-se, em boa medida, a razões de ordem moral. Entretanto, não cabe descartar dois aspectos: os casos de corrupção de menor importância são muito difundidos e geralmente aceitos como normais; e os casos realmente importantes beneficiam apenas pequenos grupos contra os quais se levantam as vozes dos que ficam de fora dos esquemas: não há necessidade nem recursos de corromper a todos que aceitariam ser corrompidos. Existe um dito popular que define corrupção como "todo bom negócio para o qual não fomos convidados”.
As denúncias de casos de corrupção, bem como a insinuação de suspeitas a respeito, assumem assim em nossa sociedade a condição de arma política importante, porquanto fácil de ser mobilizada e acionada, quando conveniente, contra competidores e adversários, especialmente com a utilização dos meios de comunicação controlados por grupos minoritários vinculados à classe dominante.
Seu uso para fins políticos é sobejamente conhecido e muito bem aproveitado pela mídia que faz das denúncias e dos escândalos comprovados, material fértil para aumentar a venda de seus serviços ao público em geral e aos interessados diretos na divulgação das notícias pertinentes.
Para que a corrupção possa continuar sendo usada para atingir inimigos é indispensável que os atos que lhe são inerentes sejam vistos como desvios da normalidade. Os corruptos acabam sendo apenas aqueles que, em virtude de circunstâncias desfavoráveis, foram flagrados com a mão na massa e não tiveram o poder suficiente para corromper os responsáveis pela aplicação da lei ou para desviarem de si o foco das atenções.
À classe dominante não interessa, de modo algum, que venha à luz o fato de que a corrupção é inerente à forma de organização econômica em que vivemos, baseada na concentração da propriedade privada nas mãos de uma minoria, na exploração do trabalho e na acumulação de riqueza. Enfim, na organização capitalista. Daí que se esmere em manter a classe média, usando o controle que exerce sobre meios de comunicação, convencida de que o grande problema nacional é a corrupção, sem apontar suas causas reais.
O ofuscamento da questão política central, que é a luta de classes entre capitalistas e trabalhadores, por uma simples disputa dos partidos políticos em torno da questão da corrupção, mostra-se amplamente favorável à perpetuação do sistema capitalista e, portanto, é estimulado e promovido, a preço de ouro, pelos formadores de opinião vinculados às minorias que controlam a empresa privada e suas associações.
Aliás, fenômeno semelhante ocorre nos países capitalistas centrais. Nestes, a corrupção sistêmica inerente ao funcionamento do sistema de livre empresa, hegemonizado pelas grandes corporações privadas, que controlam de modo avassalador o poder político, não permite sequer a posta em prática de políticas que fortaleçam os mecanismos estatais de regulação da atividade econômica, que poderiam atenuar as formas fraudulentas de atuação das grandes empresas privadas, especialmente, os bancos.
Nos Estados Unidos e na Europa a disputa política central entre capitalistas e trabalhadores não vem à tona, pois aparece sob o disfarce de um conflito em torno do tema da intervenção estatal na economia, com os conservadores (Tea Party) defendendo à volta ao ‘paraíso perdido’ da máxima liberdade de empresa e os liberais defendendo um maior poder de regulação do Estado.
Para ambos contendores, não fica claro que o problema real reside exatamente na forma de organização econômica predominante, cujo funcionamento é dirigido para favorecer a acumulação da propriedade nas mãos de poucos e o empobrecimento da classe média.
Anteriormente ao primeiro governo do PT (antes de 2003), a bandeira da luta contra a corrupção estava nas mãos do PT. Nos anos subsequentes, os partidos derrotados nas eleições e as organizações de direita encontraram no combate nominal à corrupção o instrumento eficaz para demonizar o governo, o PT, e os movimentos de esquerda.
Por certo, que o PT, em sua ingenuidade ideológica, não percebeu a armadilha em que estava se metendo, ao copiar os métodos dos grupos políticos tradicionais no que respeita ao uso de recursos públicos para financiar arranjos políticos e atender a insaciável demanda de recursos desses grupos.
Para essa mudança de mãos da bandeira anticorrupção têm jogado papel primordial os quatros grandes grupos empresariais familiares que controlam os meios de comunicação no país: Estado de São Paulo, Folha de São Paulo, Globo e Veja.
A mudança deu-se com grande receptividade na classe média que, em sua ânsia de condenar o PT, como represália pela perda de privilégios que vem sofrendo para dar lugar à ascensão social dos segmentos mais pobres da população, chega a esquecer que os maiores escândalos de corrupção ocorridos no país, nos últimos tempos, não estiveram ligados ao PT: as privatizações nos governos de FHC, as operações financeiras de Daniel Dantas (operação Satiagraha), a operação Gautama, as fraudes do governo Arruda no Distrito Federal, e o recente caso de Carlos Cachoeira, que envolveu o Senador Demóstenes Torres.
Para entender o verdadeiro espírito da empresa capitalista e sua propensão natural à corrupção, basta concentrar a atenção no significado do lucro, que nada mais é do que o resultado do uso da capacidade da empresa para gerar receita e para reduzir custo. As formas como a receita é gerada e o custo é reduzido, dispensam qualquer juízo moral. Aplica-se ao caso o dito chinês: "não importa a cor do gato, o fundamental é que come ratos”.
O poder de mercado das empresas privadas é usado para aumentar as receitas e/ou reduzir os custos, portanto, para aumentar os lucros, sem qualquer justificativa ou preocupação social. Os oligopólios da indústria farmacêutica, por exemplo, aumentam seus lucros à custa da vida dos que não podem pagar seus preços exorbitantes. A Nike, mantém suas altas taxas de lucro, pagando míseros salários a trabalhadores asiáticos e contando com vultosos subsídios fiscais dos governos. A alma da empresa capitalista é a ideia de que tudo que aumenta a receita e diminui o custo, é meritório, pois aumenta o lucro e favorece a acumulação de riqueza
Quem aceita o discurso liberal de que o mercado é um mecanismo justo e eficiente de alocação de recursos e distribuição renda desconhece as poderosas forças que estão por trás da fixação de preços e de salários. Não existem mercados perfeitos, nem neutros, os preços a que compramos os produtos e vendemos nosso trabalho são apenas o reflexo das relações poder na sociedade. São eles que viabilizam a acumulação das grandes fortunas privadas nas atividades realizadas dentro da lei. Os preços e os salários, portanto, já são em si mesmos formas "corruptas” de realização das transações econômicas consideradas legais.
No mundo empresarial a corrupção é um elemento importante da estratégia de negócios, uma arma adicional para enfrentar a competição. Nenhuma empresa bem sucedida sobrevive sem um caixa dois que lhe permita registrar as operações que realiza fora do controle do fisco, nem sem o pagamento de comissões e propinas aos que com ela mantêm transações econômicas e financeiras.
Os inúmeros paraísos fiscais existentes no mundo, sinônimo de corrupção, são uma peça importante do sistema financeiro mundial, pois sem eles os recursos de origem ilícita (dos lucros que fogem à tributação, das rendas do tráfico de drogas e de armamentos, dos valores subtraídos aos países, através de operações de sub e superfaturamento do comércio, as propinas aos políticos e aos funcionários públicos) não teriam onde ser acumulados e transformados em "dinheiro limpo” para retornarem aos países de onde provieram, como investimentos.
Vivemos numa cultura em que o objetivo primordial é acumular riqueza. Uns o fazem respeitando em alguma medida as leis, outros o fazem através do roubo, do contrabando, do tráfico de drogas, da apropriação ilícita de recursos públicos.
Imaginar que em nossas sociedades os organismos do Estado pairam acima das formas corruptas de operação das empresas privadas é uma grande ilusão. Estado e empresas acham-se inteiramente imbricados. Os tentáculos das empresas privadas, especialmente das grandes empresas penetram em toda a estrutura do Estado. Para os partidos de esquerda que chegam ao poder, constitui uma tarefa verdadeiramente hercúlea governar sujeitos às pressões corruptoras inerentes à realidade econômica.
Não é crível admitir que, numa sociedade em que o financiamento das campanhas dos candidatos a postos eletivos é feita por empresadas privadas, a maioria dos políticos não atue em favor dos interesses das empresas financiadoras. Quem conhece o funcionamento do Legislativo brasileiro sabe precisamente quem são patrocinadores de seus membros.
Nossas sociedades são fundamentalmente corruptas, pois sua forma de organização econômica, voltada para a acumulação de riqueza por indivíduos e grupos de indivíduos, em detrimento do resto da sociedade, estimula permanentemente tais comportamentos.
A eliminação total da corrupção é, portanto, praticamente impossível, mantidas as instituições atuais. Ao contrário do que pensa a classe média, somente com a crescente participação das organizações populares no controle do poder econômico e da política é possível reduzir a corrupção. O desafio que está diante de nossas sociedades é enveredar pelo caminho de novas formas de organização econômica, social e política. Essa solução só pode surgir da classe trabalhadora e das organizações populares, as quais são as grandes prejudicadas pelas formas de organização atual.

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