sábado, 1 de dezembro de 2012

O preconceito cultural e religioso é inadmissível



 
José Lisboa Moreira de Oliveira
Filósofo. Doutor em teologia. Ex-assessor do Setor Vocações e Ministérios/CNBB. Ex-Presidente do Inst. de Past. Vocacional. É gestor e professor do Centro de Reflexão sobre Ética e Antropologia da Religião (CREAR) da Universidade Católica de Brasília
Adital
Está circulando na internet a notícia de que um grupo de 13 estudantes evangélicos da escola estadual Senador João Bosco Ramos de Lima, em Manaus (AM) se recusou a fazer um trabalho sobre a cultura afro-brasileira. De acordo com a notícia os estudantes alegaram que fazer um trabalho sobre a cultura afro-brasileira seria "apologia ao 'satanismo e ao ‘homossexualismo'” e que isso contraria a crença que seguem. Segundo informações dos jornais, pastores e os próprios pais orientaram os alunos a fazerem um trabalho sobre as missões evangélicas na África, mas a escola não aceitou a troca do tema. No meu entender a escola agiu corretamente.
Ainda segundo as notícias circuladas na internet, os alunos evangélicos fizeram protestos. Além disso, segundo depoimento de professores, este grupo de alunos se recusa a ler obras clássicas como O Guarani de José de Alencar, Macunaíma de Mario de Andrade e Casa Grande e Senzala de Gilberto Freire. Os alunos evangélicos alegaram motivos religiosos, afirmando que esse tipo de atividade contradiz a fé cristã que professam.
A notícia poderia passar despercebida se não fosse mais um exemplo do crescente fundamentalismo religioso na sociedade brasileira, o qual vem acompanhado de preconceitos, discriminação, violência e intolerância cultural e religiosa. Por essa razão a questão merece uma reflexão, ainda que breve.
No caso noticiado percebe-se antes de tudo uma profunda ignorância acerca do que sejam de fato as culturas religiosas afro-brasileiras e suas respectivas expressões religiosas. Confundir culturas afro-brasileiras com "satanismo” e "homossexualismo” é, no mínimo, manifestação de total burrice e de escrachada ignorância. Os pastores e pais destes estudantes deveriam sentir vergonha ao alimentar este tipo de coisa.
Em segundo lugar, a atitude dos estudantes evangélicos, patrocinada pelos pais e abençoada pelos pastores, expressa um profundo e vergonhoso preconceito contra as culturas afro-brasileiras. É homofóbica e fere regras elementares da Declaração Universal dos Direitos Humanos e da Constituição Federal do Brasil. Tal comportamento revela quão forte é ainda a discriminação contra os negros e suas magníficas expressões culturais. Atitudes como esta mostram que, em relação ao povo negro, continuamos com a mesma mentalidade dos tempos da senzala. O que é vergonhoso e criminoso.
Além do mais, o comportamento destes estudantes evangélicos fere os princípios mais elementares do cristianismo, que eles afirmam defender. Revela claramente que os pastores da Igreja a que pertencem não conhecem a Bíblia e fazem uma estúpida leitura fundamentalista dos textos sagrados cristãos. Esquecem, por exemplo, de que o amor ao próximo é o distintivo do discípulo de Jesus: "Se vocês tiverem amor uns para uns para com os outros, todos reconhecerão que vocês são meus discípulos” (Jo 13,35). E, segundo Jesus, este amor não pode ter fronteiras e nem limites. O mandamento do amor ao próximo (Jo 15,12) não admite exclusão de ninguém, nem mesmo dos inimigos: "amem os seus inimigos, e rezem por aqueles que perseguem vocês!” (Mt 5,44), Ora, se a radicalidade cristã chega a pedir que se ame o inimigo, a atitude desses estudantes contra a cultura afro-brasileira – que não é inimiga do cristianismo – é uma negação plausível da essência do cristianismo. Demonstra, pois, verdadeira ausência do espírito cristão e total desconhecimento dos textos bíblicos mais elementares.
Por trás desta atitude está ainda a pedagogia do medo que caracteriza os grupos religiosos fundamentalistas. Medo de aproximar-se, de conhecer e de se relacionar com o diferente. Na pedagogia do medo se esconde a fragilidade de uma experiência religiosa que é incapaz de dar conta de si mesma. Por isso prefere afastar os que são diferentes, com medo de que eles possam descobrir a fragilidade da fé. Caberia, então, aqui a seguinte pergunta feita pela Bíblia cristã: "Quem lhes fará mal, se vocês se empenham em fazer o bem?” (1Pd 3,13). Além do mais, diz ainda a Bíblia cristã, quem tem medo é alguém que ainda não descobriu a essência do cristianismo, não descobriu o amor: "No amor não existe medo; pelo contrário, o amor perfeito lança fora o medo, porque o medo supõe castigo. Por conseguinte, quem sente medo ainda não está realizado no amor” (1Jo 4,18).
Jesus não teve medo de se relacionar com o diferente. Ele quebrou as regras e os padrões religiosos relacionando-se com liberdade com pessoas que, na cultura de sua época e de sua religião, eram tidas como impuras. Apenas alguns exemplos. Ele vai almoçar na casa do "desclassificado” Levi, pecador público bem conhecido, e lá encontra outras pessoas de "má fama” (Mc 2,15-17). Entra na casa de Zaqueu (Lc 19,1-10). Puxa conversa com uma mulher do povo samaritano contra o qual os judeus tinham grande preconceito (Jo 4,7-42). Atravessa o lago e vai para a Decápole, região pagã e desclassificada pelos judeus (Mc 5,1-20). Durante uma refeição na casa de um fariseu deixa-se tocar por uma prostituta (Lc 7,36-50). Atende ao pedido do oficial romano (Mt 8,5-13) e elogia a fé de uma mulher fenícia (Mc 7,24-30). Portanto, quando estes estudantes se recusam a fazer um simples trabalho sobre as culturas afro-brasileiras estão simplesmente recusando-se a agir como seguidores de Jesus. Revelam a existência de uma esquizofrenia.
Quanto à recusa de ler textos da literatura brasileira, isso expressa apenas mais uma característica do fundamentalismo religioso que, infelizmente, marca algumas Igrejas cristãs: o dualismo maniqueísta. A atitude maniqueísta tende a separar as realidades do mundo, considerando algumas coisas ruins e outras boas. As ruins geralmente são as "coisas materiais” e as boas são as "coisas espirituais”. Também aqui há uma tremenda contradição, pois Jesus não classificava nada como bom ou como ruim. Aliás, dizia Jesus, não é o que vem de fora e entra numa pessoa que a torna impura, mas é aquilo que sai da pessoa que a pode contaminar (Mc 7,14-15). Portanto, segundo o mais genuíno ensinamento cristão, a leitura e o estudo de um simples romance não contamina ninguém. O problema não está no romance, mas na cabeça da pessoa que, na maioria das vezes, está repleta de imoralidade, maldade, malícia, devassidão e falta de juízo (Mc 7,20-23).
Não podemos, pois, aceitar de forma alguma atitudes preconceituosas como essa destes estudantes, uma vez que ferem os direitos humanos mais elementares, e são uma verdadeira afronta à dignidade da pessoa humana. Pelas leis brasileiras preconceitos como esses são crimes e precisam ser punidos dentro do rigor da lei. Não se pode ser conivente com isso. Além do mais, como acabamos de ver, negam a essência do cristianismo. A desculpa de motivos religiosos não cola; pelo contrário, revela profunda distância e ignorância do núcleo central da fé cristã.
[Autor de Universidade em Pastoralidade por Edições Loyola].
 

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