segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Ações de graça em 2012


Ações de graça em 2012

Victoria Soto foi enterrada rodeada de flores e lágrimas, uma professora que, junto com seus colegas, num país onde são desvalorizados, demonizados e acusados de serem culpados de quase tudo, deu sua vida para salvar seus estudantes, os filhos de todos. Não só o fez frente às balas de um louco, mas da loucura de um país inundado de armas e que desde seus mais altos poderes afirma que é legítimo disparar e matar para resolver conflitos e disputas cá e lá no estrangeiro. O artigo é de David Brooks.

Em meio a matanças, furacões, crises fiscais onde políticos escolhidos por ricos debatem que nada devem os mesmo ricos a suas sociedade enquanto passam a conta para os mais vulneráveis, no meio da histeria das ruas decoradas de luzes para que não se veja o obsceno lucro em nome de Cristo, ou seja, no meio de tudo que anula esta luz nestes dias mais obscuros do ano, nos salvam - às vezes literalmente - infinitas ações de graça.

Jovens do Occupy Wall Street, religiosos, bombeiros, veteranos de guerra, policiais, artistas e músicos continuam aparecendo em zonas devastadas pelo furacãp Sandy para ajudar desconhecidos a limpar os escombros, apoiar-los na sua desolação, ressuscitar as vidas quase afogadas pelas águas e ventos. Insistir que suas vozes sejam escutadas pelos políticos, distraídos por desastres inventados como o precipício fiscal.

Enquanto isto, em outra esquina, num povoado de Connecticut não tão longe destas cenas já se concluiram os ritos fúnebres das vinte crianças e seis adultos assassinados por armas obtidas ilegalmente. Victoria Soto foi enterrada rodeada de flores e lágrimas, uma professora que, junto com seus colegas, num país onde são desvalorizados, demonizados e acusados de serem culpados de quase tudo, deu sua vida para salvar seus estudantes, os filhos de todos. Não só o fez frente às balas de um louco, mas da loucura de um país inundado de armas e que desde seus mais altos poderes afirma que é legítimo disparar e matar para resolver conflitos e disputas cá e lá no estrangeiro.

Minha irmã deu sua vida para salvar seus estudantes, e se isto não é força e heroísmo real não sei o que é, disse Carlee no funeral, ao qual assistiu Paul Simon e que cantou “Sounds of Silence”, a canção favorita de Soto.

O ato de Soto não é um ato isolado. Todos os dias, professores se dedicam a duas coisas que de certa maneira são somente uma: a tarefa humana mais nobre de compartilhar luz e o resgate das vidas. Se não fosse por esta escola, eu estaria morto, comentou um estudante latino para Sarah, professora e agora assessora de escolas públicas em Nova Iorque. Não era a primeira vez que havia escutado isto: vários jovens nascidos com um futuro anulado e descartado, debaixo de suspeita permanente por serem jovens e negros ou latinos, ou só por serem pobres, o disseram de várias maneiras ao passar dos anos.

Milhões de estudantes, todos anônimos (alguns depois se tornam famosos) são resgatados todos os dias por professores aqui e em todo o mundo. Os professores se dedicam ao exercício humano mais nobre: passar o fogo de Prometeu, a maçã de Eva, a consciência e sabedoria humana coletiva e acumulada à próxima geração. Obviamente não o fazem por remuneração, por fama, nem por ambição (essa profissão é inútil para tudo isto), mas sim por ser o trabalho essencial da civilização. Mas ao estar entre o universal e o particular, entre a totalidade e o estudante, também são às vezes os que com um conselho, com um abraço, um poema ou com seus corpos salvam a outro ser humano. Nada disto está nos exames padronizados, não há qualificações para registrá-lo, um empresário da educação que saiba, ou possa, gerar instruções para tudo isto.

Acaba de passar por aqui talvez uma das expressões supremas da educação no mundo: a Orquestra Sinfônica Simón Bolívar, coroa do Sistema Nacional de Orquestras Infanto-juvenis da Venezuela. Centenas de milhares, já têm que ser milhões, de jovens anônimos, quasi todos de bairros populares, de repente são resgatados pela música clássica universal, para, por sua vez, resgatar-nos a todos através de sua luz sonora.

Enquanto isto, numa esquina de Nova Iorque, Leo, que trabalha em assuntos de segurança nas escolas públicas (teve uma semana intensa depois do ocorrido em Connecticut) sai para comer algo em uma das milhares pizzarias comuns nesta cidade. Alí lhe oferecem um combo econômico: um pedaço de pizza e um suco por só US$2,75. Leo vê que traz 8 dólares e decide que, como tem dinheiro suficiente, vai pagar para outros dois. Verdade?, pergunta o outro cliente, Leo diz que sim e o deseja um feliz Natal. Faz o mesmo com o seguinte, que já tinha sua nota de 5 dólares para pagar, e este lhe agradece lhe entregando a nota, dizendo-lhe que o use com os seguintes; um dos próximos tinha uma nota de 10 para o seu pedido, aceita o presente de Leo, e entrega a nota para convidar os próximos. E todos estes também aceitaram o presente, mas deram mais notas,para o mesmo, para presentear os próximos. Leo ficou mais de meia hora assim, um atrás do outro, para finalmente acabar com a fila da generosidade.

No metro e nas ruas aqui, todos os dias se oferecem presentes, alguns resgatam do esquecimento, outros são para esquecer o que não é belo. Dois músicos, um com guitarra, outro com banjo, oferecem melodias das montanhas Appalachia; num vagão um trio de Puebla apresenta a música das montanhas do outro lado da fronteira, um chinês mostra os ecos de suas montanhas num tipo de harpa, enquanto um homem com óculos escuros toca Jimi Hendriz, um pianista toca Beethoven, uma banda de metais marchinhas natalinas mescladas com um pouco de jazz.

Alguns destes são atos heróicos, outros são pequenos ainda que às vezes capacitam, preparam e até convocam a novos feitos magníficos (nunca se sabe). Outros são para compartilhar beleza, para expressar solidariedade, para dançar um pouco, para fazer latir um coração.

São ações de graça que apesar de tudo prometem nova luz.

Tradução: Caio Mello

Breve história do neoliberalismo, de suas consequências e de seu futuro


Breve história do neoliberalismo, de suas consequências e de seu futuro

A crise revelou os limites materiais do neoliberalismo, à margem de ideologias. Não haverá superação da crise a não ser pela ampliação do espaço público em detrimento do individualismo ilimitado. Em economia, em matéria ambiental, e em geopolítica. Cedo ou tarde as forças políticas compreenderão isso. O futuro do neoliberalismo, portanto, é ser contido ao longo de um novo ciclo de democratização. O artigo é de J. Carlos de Assis.

Vem de Kant, no relato de Bobbio, a distinção entre as duas liberdades, conceituadas dessa forma desde os primórdios da Idade Moderna: a liberdade como ausência de limites, e a liberdade como faculdade de impor os próprios limites através de leis. A busca da primeira é facilmente reconhecível no Partido Republicano dos Estados Unidos, sendo que mais recentemente tomou a forma generalizada de neoliberalismo mundo afora; a da segunda, no Partido Democrata, que tomou forma melhor desenvolvida na social democracia europeia, hoje sob ameaça de estrangulamento pela política econômica imposta pela Alemanha.

É fácil perceber que a liberdade enquanto não limites está ligada sobretudo ao campo civil, enquanto a liberdade de se impor as leis a que se deve obedecer está vinculada ao campo político. Já não é tão fácil assim compreender essas duas liberdades como complementares, e não antitéticas. Uma jamais eliminará a outra enquanto houver liberdade em termos gerais. As liberdades civis e a liberdade política são conquistas imperecíveis da civilização. No mesmo movimento em que se criou a liberdade civil, criou-se a liberdade política. Uma depende da outra como subprodutos do mesmo tronco.

O elemento comum de origem das duas liberdades é o direito à propriedade privada. No campo civil, isso é óbvio, pois a propriedade privada é a pedra basilar do direito civil. Mas o fato é que isso é também verdade no campo político, embora bem menos reconhecido. A palavra democracia, que muitos associam a “poder do povo”, na verdade significava originalmente poder dos proprietários: demos, em grego antigo, significa uma medida agrária que era usada para definir as propriedades rurais das famílias que vieram, com Péricles, a comandar a política de Atenas. Só mais tarde demos veio a significar povo.

A Revolução Americana, por sua vez, ancorou-se na afirmação do direito de propriedade privada. Assim também as três primeiras convenções da Revolução Francesa. Justamente por isso são tratadas como revoluções burguesas. Para tentar conciliar direito civil e direito político, Marx distinguiu propriedade privada em geral de propriedade privada dos meios de produção. Com esse expediente conceitual, estava construído, no campo da ideologia materialista, o instrumento essencial para justificar a revolução e impor a democracia proletária como meio de ampliar o espaço público da liberdade e reduzir o espaço da liberdade individual. 

Os liberais reagiram ferozmente, como de se esperar, à ameaça comunista à liberdade civil e política. De certa forma foram ajudados pelos comunistas porque a suposta democracia política soviética converteu-se em ditadura de partido único. Paradoxalmente, em parte por medo do comunismo, permitiu-se no pós-guerra que emergisse na Europa um sistema misto que de alguma forma conciliava a liberdade civil com a liberdade política. É a socialdemocracia europeia, em especial a construída no norte do Continente. Nos Estados Unidos, o Partido Democrata, sobretudo nos governos Roosevelt (New Deal) e Johnson (Grande Sociedade), conseguiu também importantes avanços da liberdade na esfera pública.

Esse relativo equilíbrio foi rompido por Reagan e Thatcher no início dos anos 80, e depois por Bush. Dessa vez foi o princípio da liberdade ilimitada que avançou sobre a esfera pública. Firmou-se como uma agenda explícita republicana, ainda em ação, que tomou a forma de pregação, justificação ideológica e implementação do Estado mínimo, com redução de impostos principalmente sobre os ricos, e auto-regulação, reduzindo dessa forma o espaço do poder público para interferir na economia privada, mesmo quando se trata de monopólios e oligopólios, ou de transações financeiras globais. Foi um movimento amplamente vitorioso em termos mundiais, em especial após o colapso de União Soviética.

O sistema neoliberal como princípio de ordenamento das sociedades e das economias poderia ter tido longa duração não fosse a crise iniciada em 2008. É que as forças de esquerda, patrocinadoras tradicionais das liberdades que buscam a ampliação dos espaços públicos nas sociedades, foram em grande parte cooptadas pelo neoliberalismo em face do desafio da globalização financeira. A crise, contudo, revelou os limites materiais do neoliberalismo, à margem de ideologias. Não haverá superação da crise a não ser pela ampliação do espaço público em detrimento do individualismo ilimitado. Em economia, em matéria ambiental, e em geopolítica. Cedo ou tarde as forças políticas compreenderão isso. O futuro do neoliberalismo, portanto, é ser contido ao longo de um novo ciclo de democratização.

(*) Economista e professor de Economia Internacional da UEPB, autor, entre outros livros, de “A Razão de Deus”, pela Civilização Brasileira.

10 anos de governos pós-neoliberais no Brasil



Em primeiro de janeiro de 2013, se cumprem 10 anos desde a posse do governo Lula, que teve continuidade na sua reeleição em 2006 e na eleição da Dilma em 2010. Dessa maneira se completa uma década de governos que buscam superar os modelos centrados no mercado, no Estado mínimo nas relações externas prioritariamente voltadas para os Estados Unidos e os países do centro do sistema.

São governos que, para superar a pesada herança econômica, social e política recebida, priorizam, ao contrário, um modelo de desenvolvimento intrinsecamente articulado com políticas sociais redistributivas, colocando a ênfase nos direitos sociais e não nos mecanismos de mercado. Buscam o resgate do Estado como indutor do crescimento econômico e garantia dos direitos sociais de todos. Colocam em prática políticas externas que dirigem seu centro para os processos de integração regional e os intercâmbios Sul-Sul e não para Tratados de Livres Comércio com os EUA.

Os resultados são evidentes. O Brasil, marcado por ser o país mais desigual do continente mais desigual do mundo, vive, pela primeira vez com a intensidade e extensão atuais, profundos processos de combate à pobreza, à miséria e à desigualdade, que já lograram transformar de maneira significativa a estrutura social do país, promovendo formas maciças de ascensão econômica e social, com acesso a direitos fundamentais, de dezenas de milhões de brasileiros.

Dotando o Estado brasileiro de capacidade de ação, estamos podendo reagir aos efeitos recessivos da mais forte crise econômica internacional das ultimas oito décadas, mantendo – mesmo se diminuído – o crescimento da economia e estendendo, mesmo em situações econômicas adversas, as políticas sociais redistributivas.

Por outro lado, políticas externas soberanas projetaram o Brasil como uma das lideranças emergentes em um mundo em crise de hegemonia, com iniciativas coletivas e solidárias, com propostas que apontam para um mundo multipolar, centrado em resoluções políticas pacíficas dos focos de conflitos e em formas de cooperação solidária para o desenvolvimento das regiões mais atrasadas.

No entanto, esses governos recebem uma pesada herança de um passado recente de enormes retrocessos de todo tipo. O Brasil – assim como a América Latina – passou pela crise da dívida, que encerrou o mais longo ciclo de crescimento econômico da nossa história, iniciado nos anos 1930 com a reação à crise de 1929. Sofreu os efeitos da ditadura militar, de mais de duas décadas, que quebrou a capacidade de resistência do movimento popular, preparando as condições para o outro fenômeno regressivo. Os governos neoliberais, de mais de uma década – de Collor a FHC – completaram esse processo regressivo do ponto de vista econômico, social e ideológico.

Assim, Lula não retoma o processo de desenvolvimento econômico e social onde ele havia sido estancado, mas recebe uma herança que inclui não apenas uma profunda e prolongada recessão, mas um Estado desarticulado, uma economia penetrada pelo capital estrangeiro, um mercado interno escancarado para o mercado internacional, uma sociedade fragmentada, com a maior parte dos trabalhadores sem contrato de trabalho. 

O segredo do sucesso do governo Lula, seguido pelo de Dilma, está na ruptura em três aspectos essenciais do modelo neoliberal:

- a prioridade das políticas sociais e não do ajuste fiscal, mantido em funções dessas políticas

- a prioridade dos processos de integração regional e das alianças Sul-Sul e não de Tratado de Livre Comércio com os EUA

- a retomada do papel do Estado como indutor do crescimento econômico e garantia dos direitos sociais, deslocando a centralidade do mercado pregada e praticada pelo neoliberalismo.

Essas características constituem o eixo do modelo posneoliberal – comum a todos os governos progressistas latino-americanos -, que faz do continente um caso particular de única região do mundo que apresenta um conjunto de governos que pretendem superar o neoliberalismo e que desenvolvem projetos de integração regional autônomos em relação aos EUA.

Foi uma década essencial no Brasil, não apenas pelas transformações essenciais que o país sofreu, mas também porque ela reverteu tendências históricas, especialmente à desigualdade, que tinham feito do Brasil o país mais desigual do continente mais desigual do mundo.

A década merece uma reflexão profunda e sistemática, que parta da herança recebida, analise os avanços realizados e projete as perspectivas, os problemas e o futuro do Brasil nesta década. Um livro com textos de 21 dos melhores pensadores da esquerda, que está sendo organizado por mim, deve ser lançado num seminário geral por volta de abril e, a partir desse momento, fazer várias dezenas de lançamentos e debates por todo o ano. 

O projeto pretende promover discussões estratégicas sobre o Brasil, elevando a reflexão sobre os problemas que enfrentamos e projetando o futuro da construção de uma alternativa ao neoliberalismo.
Postado por Emir Sader às 10:23

“Roberto Carlos – Reflexões” atinge boa audiência para a Globo



NOITE DE NATAL
Chayene beija Roberto
A Globo exibiu na noite da última terça-feira (25) mais um show especial de Natal do cantor Roberto Carlos. A audiência novamente correspondeu positivamente ao Rei.
“Roberto Carlos – Reflexões” atingiu 29 pontos de média, contra 7 do SBT e 4 da Record, recuperando os índices perdidos pela emissora durante as festividades natalinas. Na segunda-feira, 24, “Salve Jorge” marcou apenas 19 pontos.
Michel Teló, As Empreguetes, Seu Jorge e Arlindo Cruz brilharam ao lado de Roberto Carlos no programa.
Confira o comparativo: 
2000 – 41 pontos
2001 – 28 pontos
2002 – 30 pontos
2003 – 31 pontos
2004 – 32 pontos
2005 – 32 pontos
2006 – 30 pontos
2007 – 25 pontos
2008 – 25 pontos
2009 – 24 pontos
2010 – 24 pontos
2011 – 22 pontos
2012 – 29 pontos

Comunicação 2012, um balanço: não foi fácil, e nunca será


Comunicação 2012, um balanço: não foi fácil, e nunca será

Como fazer que uma população majoritariamente feliz se dê conta de que seu direito fundamental à liberdade de expressão está sendo exercido apenas por uns poucos oligopólios que defendem os seus (deles) interesses como se fossem o interesse publico? Mais ainda: como esperar que um governo em lua-de-mel com a “opinião pública” corra o risco de enfrentar o enorme poder simbólico de oligopólios de mídia, capaz de destruir reputações públicas construídas ao longo de uma vida inteira em apenas alguns segundos? O artigo é de Venício Lima.

(*) Publicado originalmente no Observatório da Imprensa

Não há como ignorar certa monotonia nos balanços de fim de ano do setor de comunicações. Sem muito esforço, um observador atento constatará que:

1. Os atores e interesses que interferem, de facto, na disputa pela formulação das políticas públicas são poucos: governo, empresários de mídia (inclusive operadores de telefonia e fabricantes de equipamento eletroeletrônico) e parlamentares.

Há que se mencionar ainda o Judiciário que, por meio de sua mais alta corte, o Supremo Tribunal Federal (STF), tem interpretado a Constituição de 1988 de maneira a legitimar uma inusitada hierarquia de direitos em que prevalece a liberdade da imprensa sobre a liberdade de expressão e os direitos de defesa e proteção do cidadão (acórdão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental – ADPF – nº 130, de 2009). 

Aguarda decisão, por exemplo, a Ação Direta de Inconstitucionalidade – ADI nº 2404 na qual os empresários de radiodifusão, usando a sigla do PTB e representados pelo ex-ministro Eros Grau, pedem a impugnação do artigo 254 do Estatuto da Criança e do Adolescente – vale dizer, questionam a política pública definida pelas portarias 1220/2006 e 1000/2007 do Ministério da Justiça que estabeleceram as normas para Classificação Indicativa de programas de rádio e televisão.

Não me esqueci da chamada “sociedade civil organizada” – movimentos sociais, partidos, sindicatos, ONGs, entidades civis, dentre outros. Todavia, como sua interferência continua apenas periférica no jogo político real, prefiro tratá-la como um não-ator.

2. Alguns atores ocupam posições superpostas, por exemplo: ministro das Comunicações e/ou parlamentar (poder concedente) é, simultaneamente, empresário de mídia (concessionário de radiodifusão); e,

3. As principais regras e normas legais são mantidas ou se reproduzem, ao longo do tempo, mesmo quando há – como tem havido – um processo de radicais mudanças tecnológicas.

Essa realidade pode ser verificada, em seus eixos principais, pelo menos desde a articulação que levou à derrubada dos 52 vetos do então presidente João Goulart ao Código Brasileiro de Telecomunicações – CBT (Lei 4.117/1962) e que deu origem à criação da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), 50 anos atrás. Depois disso, no que se refere às concessões do serviço de radiodifusão, mais ou menos a cada dez anos as regras se consolidam: primeiro na Lei 5.785/1972; depois no Decreto 88.066/1983 e na Constituição de 1988 e, mais recentemente, no Decreto 7670/2012.

O resultado é que, ano após ano, permanece praticamente inalterada a supremacia de determinados grupos e de seus interesses na condução da politica pública de comunicações.

Creio que as políticas de radiodifusão no Brasil constituem um exemplo daquilo que, em Ciência Política, os institucionalistas históricos chamam de “dependência de trajetória” (path dependency), isto é, “uma vez iniciada uma determinada política, os custos para revertê-la são aumentados. (...) As barreiras de certos arranjos institucionais obstruirão uma reversão fácil da escolha inicial” (Levi).

O eventual leitor(a) poderá constatar esta “dependência de trajetória” nos balanços que tenho publicado neste Observatório desde 2004 (ver “Adeus às ilusões“, “Balanço de muitos recuos e alguns avanços“, “Notas de um balanço pouco animador“, “Balanço provisório de um semestre inusitado“, “Mais recuos do que avanços“ “Algumas novidades e poucos progressos“, “O que se pode esperar para 2009? (1)“, “O que se pode esperar para 2009? (final)“, “Por que a mídia não se autoavalia?“ e “Os avanços de 2011“).

2011 versus 2012
No fim de 2011, escolhi fazer um breve “balanço seletivo” registrando fatos que poderiam ser considerados como avanços no sentido da democratização da comunicação (ver “Os avanços de 2011“). Um ano depois, muito do que se esperava que acontecesse no curto prazo, de fato, não se concretizou. Exemplos:

(a)o marco civil da internet não foi votado pelo Congresso Nacional;

(b)o esperado crescimento e fortalecimento dos movimentos em prol da criação dos conselhos estaduais de comunicação social em vários estados da Federação não ocorreu: o movimento prossegue em Brasília; o conselho da Bahia foi instalado, mas funciona precariamente; e o projeto no Rio Grande do Sul ainda não foi encaminhado à Assembleia Legislativa; e,

(c)a Frente Parlamentar pela Liberdade de Expressão e o Direito a Comunicação com Participação Popular (Frentecom), que havia sido criada em abril e da qual se esperava um papel relevante no encaminhamento de questões relativas às comunicações na Câmara dos Deputados, apesar do esforço de vários de seus integrantes tem sido ignorada pela direção da Casa.

Por outro lado, 2012 poderá ser lembrado por alguns acontecimentos protagonizados direta ou indiretamente pela grande mídia, no Brasil e no exterior.

Inglaterra e Argentina
O primeiro registro há de ser para Inquérito Leveson (The Leveson Inquiry) cujo relatório final foi apresentado em novembro. Nele está uma descrição/diagnóstico de práticas “jornalísticas” que, infelizmente, não ocorrem apenas na Inglaterra. Há também um conjunto de propostas de ações institucionais para evitar o desvirtuamento completo da liberdade da imprensa, inclusive a criação de uma instância reguladora autônoma, tanto em relação ao governo quanto aos empresários de mídia. Independente dos resultados concretos, o relatório Leveson deveria ser lido e discutido entre nós (ver, neste Observatório, “Um documento com lugar na história“, “Areopagítica, 368 anos depois“ e “O vespeiro do controle externo“).

O segundo registro é a batalha judicial que ocorre na Argentina entre o governo e o Grupo Clarín. Um projeto que surgiu de amplo debate nos mais diferentes segmentos da sociedade foi submetido ao Congresso Nacional – onde tramitou, recebeu emendas, foi aprovado e transformado em lei. Mesmo tendo essa origem, a Ley de Medios de 2009 vem enfrentando, por parte de um dos principais oligopólios de mídia da América Latina e de seus aliados, inclusive no Brasil, uma resistência feroz, como se constituísse uma ameaça – e não uma garantia – à liberdade de expressão. Como afirmou recentemente o relator especial da ONU para liberdade de expressão, a Ley de Medios argentina deveria ser estudada como um exemplo de regulação democrática, protetora da liberdade de expressão plural e diversa.

Discurso único
No Brasil, o ano de 2012 foi dominado pelo discurso único da grande mídia –antes, durante e depois das eleições municipais – em torno do julgamento da Ação Penal nº 470 e da CPI do Cachoeira. O macarthismo praticado no tratamento de vozes discordantes confirma ad nauseamo papel da grande mídia de julgar, condenar e/ou omitir, seletiva e publicamente, ignorando o princípio da presunção de inocência e/ou a ausência de provas.

A defesa corporativa e intransigente de jornalistas envolvidos em práticas suspeitas, a transformação do julgamento no STF em espetáculo, o massacre seletivo a determinados políticos e partidos e a mitificação (ou a execração) pública de juízes, reafirmam o papel político/partidário que a grande mídia tem desempenhado em momentos decisivos de nossa história, a rigor, desde o início do século 19.

Numa época em que os impressos atravessam uma crise de variadas dimensões; jornais e revistas tradicionais são fechados (Jornal da Tarde e Newsweek, por exemplo) e “práticas jornalísticas” são questionadas (exemplo: o Inquérito Leveson, na Inglaterra), não deixa de surpreender a intolerância arrogante dos pronunciamentos na reunião anual da Sociedade Interamericana de Imprensa (SIP, na sigla em espanhol), ocorrida em outrubro, em São Paulo, e manifestações e documentos provenientes dos institutos Millenium e Palavra Aberta (think tankse lobistas do empresariado), como se os donos da imprensa se constituíssem no inquestionável padrão ético de referencia para a liberdade e a democracia.

Inércia governamental
O ano de 2012 ficará também marcado pela inquietante inércia do governo federal em relação ao setor de comunicações. Salvo o decreto que regulamentou a Lei de Acesso à Informação (Decreto 7.724, de 16/05/2012) e a norma do Ministério das Comunicações que regulamenta o Canal da Cidadania (previsto no Decreto 5820/2006 para a transmissão de programações das comunidades locais, e para a divulgação de atos, trabalhos, projetos, sessões e eventos dos poderes públicos federal, estadual e municipal), não há praticamente nada.

Onde estão as propostas (mais de seiscentas) aprovadas na 1ª Conferência Nacional de Comunicação (Confecom) e encaminhadas ao governo federal em dezembro de 2009?

Onde está o projeto de marco regulatório elaborado no fim do governo Lula e encaminhado pelo ministro Franklin Martins ao ministro Paulo Bernardo, em janeiro de 2011?

Por outro lado, uma leitura equivocada das normas legais de distribuição de recursos publicitários pela Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom-PR) vem sufocando financeiramente a chamada mídia alternativa e consolidando ainda mais a concentração de grupos oligopolísticos. A mídia alternativa, por óbvio, não tem condições de competir com a grande mídia se aplicados apenas os chamados “critérios técnicos” de audiência e CPM (custo por mil).

Se fossem cumpridos os princípios constitucionais (muitos ainda não regulamentados), o critério de distribuição de recursos deveria ser “a máxima dispersão da propriedade” (Edwin Baker), isto é, a garantia de que mais vozes fossem ouvidas no espaço público promovendo a diversidade e a pluralidade – vale dizer, mais liberdade de expressão.

E o Parlamento?

Além da não votação do marco civil da internet, impedida pelos poderosos interesses das empresas de telecom em relação à neutralidade da rede, há de se mencionar a reinstalação, em julho, do Conselho de Comunicação Social (CCS), depois de quase seis anos de inatividade ilícita. A mesa diretora do Congresso Nacional, presidida por José Sarney, cuja família é historicamente vinculada a concessões de radiodifusão, ignorou a Frentecom e articulou a nova composição do CCS fazendo que nele prevaleçam interesses oligárquico-empresariais e religiosos.

Os não-atores

Por fim, os não-atores. O destaque é o lançamento pelo renovado coletivo do Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação (FNDC) dacampanha nacional “Para expressar a liberdade – Uma nova lei para um novo tempo”(em abril) e seus vários eventos regionais e locais, incluindo a vinda ao Brasil de Frank La Rue, o relator especial pela liberdade de expressão da ONU (em dezembro). Apesar do boicote sistemático da grande mídia, a atenção que a campanha tem recebido na mídia alternativa constrói um embrionário espaço público onde circulam informações que não estão disponíveis nas fontes dominantes.

Registre-se ainda que partidos políticos – sobretudo a partir do julgamento da Ação Penal nº 470 – finalmente parecem se dar conta da importância fundamental das comunicações no jogo político. Salvo raras exceções, todavia, não se tem até agora resultados concretos na atuação partidária no Congresso Nacional, nem na proposta de projetos e/ou ações junto à sociedade.

Não será fácil

O mundo não acabou, como muitos acreditavam. Os índices de desemprego nunca foram tão baixos e o salário médio tão elevado. A ascensão social fez as classes A e B crescerem 54% na última década e, nos próximos três anos, outras oito milhões de pessoas serão a elas incorporadas. O Corinthians, patrocinado pela Caixa Econômica Federal, é campeão mundial de futebol. O nível de satisfação do brasileiro nunca esteve tão elevado (de acordo com pesquisas do Data Popular, IBGE e Secretaria de Assuntos Estratégicos da Presidência da República).

A novela Avenida Brasil dominou as telas de TV ao longo de seis meses com audiências médias de 50% (Ibope). A grande mídia – sustentada em boa parte por verbas oficiais (70% dos recursos distribuídos nos primeiros 19 meses do atual governo foram destinados a apenas 10 grupos privados, de acordo com a Secom-PR) – celebra a condenação dos “corruptos” na Ação Penal nº 470; se apresenta como defensora da ética pública e das liberdades – sobretudo da liberdade de expressão –; e prossegue na sua obsessão seletiva de mobilizar a “opinião pública” contra determinados políticos e partidos.

As médias de aprovação tanto do governo como da presidente Dilma Rousseff batem recordes após recordes: 62% e 78%, respectivamente, de acordo com a última pesquisa CNI/Ibope (dezembro).

Diante desses fatos, sejamos razoáveis.

Como fazer que uma população majoritariamente feliz se dê conta de que seu direito fundamental à liberdade de expressão está sendo exercido apenas por uns poucos oligopólios que defendem os seus (deles) interesses como se fossem o interesse publico?

Mais ainda: como esperar que um governo em lua-de-mel com a “opinião pública” corra o risco de enfrentar o enorme poder simbólico de oligopólios de mídia, capaz de destruir reputações públicas construídas ao longo de uma vida inteira em apenas alguns segundos?

Em 2013 não será fácil – como, aliás, nunca foi.

(*) Venício A. de Lima é jornalista e sociólogo, pesquisador visitante no Departamento de Ciência Política da UFMG (2012-2013), professor de Ciência Política e Comunicação da UnB (aposentado) e autor de Política de Comunicações: um Balanço dos Governos Lula (2003-2010), Editora Publisher Brasil, 2012, entre outros livros

Ode à resistência dos sobrados


Em meio à especulação imobiliária, que inferniza e apequena metrópoles, livro retrata padrão urbano que homenageia espaço, circulação e diversidade

Luciana Cavalcanti
Minha mãe, dona Avany Cavalcanti, sempre dizia: "os espigões estão dominando a cidade e daqui a pouco vento e casa vão ser coisas do passado aqui em Recife"...
Infelizmente ela previa o que atualmente tem se confirmado em algumas cidades do Brasil, como por exemplo em Recife e São Paulo.
Em Recife, no início da década de 1920, o sociólogo, antropólogo, ensaísta e pensador social Gilberto Freyre volta de seus estudos realizados nos Estados Unidos e na Europa e entra em choque quando encontra, após cinco anos de ausência, uma cidade em reforma, com seu patrimônio, ruas, praças, casas sendo destroçados pelo que ele chamaria de "excesso de urbanização". Esta mudança estrutural das cidades ocorreu em muitos lugares do mundo.
A professora Helouise Costa em seu livro A Fotografia Moderna no Brasil cita um trecho do artigo de Wilson Coutinho publicado no Jornal do Brasil de 8 de abril de 1984 "Atget, um clássico da fotografia moderna" e comenta:
"O caso das reformas urbanas de Paris, levados a cabo por Hausmann, é extremamente representativo. Napoleão III, por ocasião da abertura dos boulevards, decretou uma lei que institucionalizava a documentação fotográfica como um serviço de utilidade pública. A destruição da cidade incomodou os amantes de Paris, como os homens do patrimônio. A lei oferecia francos a quem fotografasse algum aspecto das ruas de Paris, seus monumentos e logradouros, alguns que seriam devorados pela reforma urbana de Napoleão III, fotos estas que eram compradas pela municipalidade. Outro comércio era a própria adoração de Paris, havendo um mercado de colecionadores que se dedicavam a possuir em 18×24 cm, tamanho das fotos da época, pedaços da velha cidade que estava prestes a desaparecer".

Recentemente foi divulgado na imprensa pernambucana o projeto "Novo Recife" (leia-se no blog Acerto de Contas) que dentre outras transformações e ocupações desmedidas, inclui a construção de prédios gigantes na área do Cais José Estelita - uma parte do centro da cidade com vista privilegiada para o encontro do rio com o mar. Além de não colaborar para a preservação do patrimônio, o projeto detona a possilibidade de revitalização coerente, humanizada e adequada daquele espaço do Recife Antigo.
E vê-se por todo lado obras de prédios cada vez mais altos e total descompromisso com o que ainda resta de patrimônio no país. Há uma diferença entre o Brasil que espantou Gilberto Freyre e o de hoje. Na época, a ideia era não apagar as lembranças físicas da Monarquia e erguer edificações com a cara da República. Tudo o que representasse o regime anterior deveria ser destruído.
Hoje a ocupação do espaço urbano tem se dado de maneira mais trágica. A pressão de construtoras nutre o objetivo de verticalizar as cidades em intensidade além da necessária e ética. Excluem-se moradores antigos ou casas que fazem parte da história e da memória de um lugar. É a identidade que se perde... E de forma muito mais rápida do que em qualquer outra época. Afinal, é mais gente para habitar, mais gente para pagar e mais gente sem se preocupar com o que preservar de suas lembranças afetivas, incluindo o espaço onde se vive. Vale ler o excelente artigo de Cláudia Linhares Sanz no Icônica, sobre casas e sua memória e afeto.
Nesta perspectiva de observação e convivência com esta problemática, nasce o belo e apurado trabalho do fotógrafo carioca, Fernando Martinho (participa do Coletivo Paralaxis) sobre os sobrados ainda resistentes da zona oeste da cidade de São Paulo. A obra, na forma de livro, foi lançada no dia 14, na Rever.
Morando em São Paulo há mais de doze anos, desde 2010 Fernando fotografa sobrados antigos através de sua câmera digital que capta a imagem de um vidro despolido de uma Rolleyflex, dando à foto o ar que ele precisa para revelar a nostalgia, a memória antiga de fachadas e casas que ainda conseguem sobreviver na vasta subida de novos edifícios que invade São Paulo há alguns bons anos. "A textura do visor, as sujeiras, arranhões e até o fato de a imagem estar invertida contribuíram para compor a atmosfera lírica que almejava. A ideia de memória, das lembranças, das vidas passadas, de tempo, estava tudo ali. E acho bastante poético também, é praticamente uma ode aos sobrados", conta o autor.
Seu objetivo é continuar fotografando os sobrados "até eles acabarem", afirma.
Fernando Martinho, do Coletivo Paralaxis: "Sobrados da Zona Oeste"
"Quando vim pra São Paulo me surpreendi com a quantidade de casas. Imaginava a cidade muito mais vertical. O Rio de Janeiro (zona sul) quase não tem mais casas. Fui morar na Vila Madalena e assisti de perto às demolições e transformações no bairro. E assim foi na cidade inteira. Hoje vejo bairros antigos totalmente desfigurados. Aquela cultura de bairro pequeno, tranquilo se foi. Hoje vivemos sob uma ditadura das incorporadoras imobiliárias, onde não se valoriza nem respeita o antigo, o histórico, o público".
Nesta pesquisa quase iconográfica, além de fazer uma vasta documentação fotográfica, Fernando tenta entender como se executa o projeto de urbanização que acontece na cidade por meio de sua árdua busca e olhar fotográfico investigador.
"É controverso: as pessoas querem morar em apartamentos de 40 metros quadrados em torres de vinte andares encravadas em ruas que não as comportam. A cidade não as comporta. O sujeito vai levar vinte minutos só pra sair da garagem do prédio. Vai acabar a cultura de bairro. Algumas empresas do ramo imobiliário vendem ‘bem estar' mas não contribuem para isso, muito pelo contrário. Sem falar que muitas, a meu ver, agem de modo criminoso. Por exemplo: várias vendem imóveis de luxo e contratam (de forma totalmente ilegal e desumana) homens e mulheres para segurarem aquelas placas-setas nas esquinas. Derrubam imóveis tombados pelo patrimônio histórico na calada da noite. Fazem terrorismo e ameaçam moradores de casas humildes. Enfim, muita picaretagem".
"Uma cidade humanizada", prossegue Fernando, "deve valorizar o coletivo. Onde existe espaço público decente, onde o pedestre seja prioridade. As pessoas devem circular por ela, devem se misturar. Segregar é desumano!"
"Eu vivi minha infância em casa e brincando na rua. Vivia em Santa Teresa, no Rio. Eram outros tempos, vivia em cima de uma goiabeira no quintal, andando de bicicleta pelas ladeiras, ia de bonde pra escola. Conhecia todas as ruas, becos, vielas e escadarias como a palma da minha mão".
"Fotografei diversas casas que já foram destruídas. Um horror! Hoje em dia a gente pisca e já derrubaram quarteirões inteiros. Já é difícil ver o horizonte nessa cidade, imagine daqui a dez anos".
Fernando Martinho sempre se dedica a uma ideia de modo intenso e instigante. Desde que iniciou este projeto, saiu andando pelas ruas; Chegava todas as vezes em nossas reuniões do Coletivo Paralaxis cansado e decepcionado com o que via. E fomos - eu, Alexandre Severo e Stefan Schmeling - acompanhando aos poucos sua evolução e espanto com o que a verticalização causou a São Paulo. Muito bom ver este projeto, que também pode ser tido como uma denúncia aos abusos cometidos contra o espaço urbano, contra a memória de uma cidade e contra a delicadeza que nela ainda existe. Triste perder esta delicadeza...
Mas mesmo com pesar que tenhamos, as fotografias podem motivar mudanças e trazem lembranças de um tempo que já não existe mais. É quando a fotografia vira patrimônio! Felizmente e infelizmente...
Parabéns, Fernando e linda Ode aos Sobrados! E que estas possam trazer luz a esta questão tão emergente e necessária à discussão...
Luciana Cavalcanti é fotojornalista e graduada em Jornalismo pela UFPE. Especialização em Direitos Humanos pela UnB atualmente é mestranda em Culturas e Identidades Brasileiras no Instituto de Estudos Brasileiros - IEB - USP. Participa, juntamente com Alexandre Severo, Fernando Martinho e Stefan Schmeling, do Coletivo Paralaxis.

"A Grécia não é só ódio e discriminação. É violência também", diz imigrante




Nascida no Kuwait, mas de origem síria, Hala usa o hijab, o que a torna um alvo fácil para membros do partido neonazista

Roberto Almeida
Hala Akari, de 40 anos, é parte do conselho de integração de imigrantes da prefeitura de Atenas. Há 22 anos na Grécia, dona de um grego fluente e sem sotaque, ela lembra com carinho a chegada ao país, mas sente calafrios ao pensar nas transformações dos últimos dois anos, decorrentes da crise econômica. Hoje, sofre racismo diariamente, algo impensável para alguém que teve o pai ameaçado de deportação e, curiosamente, recebeu ajuda de uma então generosa polícia grega.
Nascida no Kuwait, mas de origem síria, Hala usa o hijab, o que a torna um alvo fácil para membros do partido neonazista Aurora Dourada. Ela relata abertamente o terror causado pela incursão de homens vestidos de preto, característica do traje do grupo, em bairros de imigrantes.
Apesar de já ter reportado casos de violência e racismo, nunca ouviu uma resposta convincente do corpo político grego. Pelo contrário. Percebeu que os casos eram tratados como “isolados”, pouco significativos, e que a polícia grega, alinhada com o Aurora Dourada, não é mais a mesma.
Hala Akari, em Atenas: "não temos apenas ódio e discriminação na Grécia, temos violência também"

Em uma manhã de novembro, Hala conversou durante uma hora com Opera Mundi em Keramikos, estação de trem no oeste de Atenas. Seu maior desejo, mesmo após duas décadas na Grécia, é abandonar o país. “Meu trabalho ficou impraticável”, disse.

Opera Mundi: Você diz que imigrantes que estão na Grécia há mais de 20 anos decidiram deixar o país?
Hala Akari: Sim. Pessoas que tinham seus trabalhos, que são fluentes em grego, estão indo para o exterior. Alguns voltam para seus países. Outros escolhem ir para países do norte europeu, onde a situação é melhor e conseguir trabalho é mais fácil. Alguns deles, muitos sírios, tentam asilo, já que não podem voltar para casa por causa da guerra. A Grécia está perdendo essas pessoas.

OM: Por que elas estão indo embora?
HK: Por causa da crise social. Racismo. Não estamos falando apenas do partido de extrema-direita [o Aurora Dourada, com contornos neonazistas], estamos falando da sociedade como um todo. Sempre há pessoas que odeiam estrangeiros, mas não dessa forma. A sociedade grega hoje está mudando e entrando nesse caminho, acha os imigrantes um alvo fácil. Como você é diferente, fica fácil dizer que você é a razão da crise. Sabemos que quando há uma crise a discriminação aumenta, mas não assim. Não temos apenas ódio e discriminação na Grécia, temos violência também.

OM: Os casos são relacionados com o Aurora Dourada?
HK: Podemos dizer que começaram com o Aurora Dourada. Temos registrado vários incidentes de violência. São pessoas que usam preto. Sabemos que são do Aurora Dourada, mas às vezes eles não têm o símbolo do partido na roupa, mas em outras sim. E muitas vezes eles enviam mensagens: “Estaremos nas ruas hoje”. Um aviso claro para que os imigrantes não saiam de casa.

OM: Pode dar um exemplo?
HK: Uma amiga minha enviou uma mensagem para mim, alertando para que eu tomasse cuidado. “Em dois bairros, Kipseli e Plati Amerikis, membros do Aurora Dourada estarão nas ruas a partir das sete da noite. Por favor, diga a todos os seus amigos a não ir para lá.” Mas, mais do que isso, todos os dias, depois das sete da noite, eles estão nas ruas, entram em ônibus e tróleis, tiram imigrantes dos veículos e pedem para ver os documentos. Eles não têm direito de fazer isso, mas fazem. Muita gente tem medo deles. Muitas vezes, a polícia sabe, vê, mas não faz nada.

OM: Como o governo tem reagido?
HK: Tentamos por muito tempo, na prefeitura de Atenas, explicar aos políticos que há um perigo real contra imigrantes. Muitos deles [que sofrem com os ataques] são paquistaneses ou dE Bangladesh e, por terem a pele mais escura, são reconhecidos facilmente. Se estiver sozinho, é comum que um grupo de cinco ou seis apareça para espancá-lo. Isso aconteceu e reportamos, mas os políticos diminuem a importância, falam que é um fenômeno pequeno que não precisa de discussão ou legislação. Quando todo o sistema político grego mudou, com deputados apenas em busca de votos, eles mesmos começaram a expressar racismo. Quando eles começaram a falar assim, a sociedade passou a adotar o mesmo discurso sem medo de punição. Se o primeiro-ministro [Antonis Samaras, do Nova Democracia, de centro-direita] fala assim, oras, podemos falar à vontade. Ficou bastante claro há dois anos.

OM: Quando você diz deputados se refere a membros do Aurora Dourada ou de todos os partidos políticos?
HK: Do Nova Democracia, do PASOK [de centro-esquerda]. Não esperávamos ouvir isso do PASOK, mas como era época de eleições, notaram o crescimento da direita e adotaram o mesmo discurso. “Isso não pode continuar. Nossa cidade precisa ser nossa cidade, Atenas não é mais grega...”  Isso mostrou como não estão felizes com imigrantes. Mas ficou difícil mesmo quando vimos que 22 parlamentares do Aurora Dourada haviam sido eleitos. Foi um choque. Quem votou nessas pessoas? Descobrimos que muitos policiais votaram e muitas pessoas que acharam que “limpariam” seus bairros e teriam mais empregos à disposição. Sabe, as pessoas não gostam de ter de pensar muito nas coisas, preferem ver o preto no branco, bom e mau, grego e não-grego. E mesmo quem tiver nacionalidade grega, mas não for nascido na Grécia, deve ir embora e deixar a Grécia para os gregos.

OM: Você já sofreu racismo?
HK: No transporte público é diário. Outro dia eu estava no tróleibus e uma mulher subiu. Ela gritava e empurrava a todos. O veículo estava cheio de imigrantes da Rua Patission. Eu perguntei a ela por que estava empurrando as pessoas. Ela olhou para mim e disse: “Como você se atreve a falar comigo?” Eu respondi que sim. “Vocês são muçulmanas. Era só o que faltava uma muçulmana querer falar.” Ela estava longe e eu percebi que começou a conversar com uma amiga, que muçulmanos isso, muçulmanos aquilo. Eu a chamei para repetir tudo na minha frente. Eu falo grego muito bem, sem sotaque. Em meio a tudo isso, um homem grego começou a gritar com ela. “Não consigo aguentar a loucura de vocês! O que eles [imigrantes] fizeram para você? Eles não fizeram nada! É uma loucura, vocês me envergonham por ser grego.” Ela desceu na parada seguinte.

OM: Então há ainda uma parcela da população que defende os imigrantes.
HK: Sim, vemos que alguns gregos não aceitam o racismo. Mas normalmente você não consegue se defender, principalmente se não fala a língua corretamente. Muita gente prefere descer a ter de ouvir esse tipo de ataque. Muitas vezes vemos motoristas de ônibus dizendo a homens negros para saírem do veículo. Quem iria defendê-lo? A polícia faz com que você se arrependa de ir reportar algum caso de racismo e pedir ajuda. Você não tem direitos.

OM: Como você compara a Grécia de hoje com a Grécia de 22 anos atrás, quando você chegou?
HK: A diferença é muito, muito grande. Quando chegamos, não tínhamos documentos. Não havia legislação específica para imigrantes. Era tudo muito novo para os gregos. Eles começaram a aceitar imigrantes, mas antes eles próprios eram os imigrantes. Quando outros países fecharam as portas, como França e Inglaterra, a única opção era a Grécia. Ficamos sem visto. Se a polícia pegasse, deportava. Mas a sociedade grega era muito carinhosa, e eles nos abraçaram. Éramos diferentes: minha mãe e eu usávamos hijab, eles sabiam que éramos muçulmanos, e mesmo assim nos ajudaram muito no começo a aprender o grego.
Na universidade, os professores eram ótimos e tentaram ajudar muito estudantes imigrantes. Isso que não tínhamos documentos! A polícia chegou a parar meu pai, e quando soube que tinha família na Grécia, ajudaram-no a fugir da fiscalização. Até a polícia era amiga. Agora temos o oposto. Temos documento e alguns direitos, mas a sociedade é muito fria conosco. Eles têm medo. Eles estão distantes. Eu entendo que muitos imigrantes tenham vindo, mas eles precisam saber que isso que está acontecendo não é culpa dos imigrantes. Agora, se você perguntar a eles [imigrantes] se querem ir embora, a primeira coisa que vão dizer é que sim. Só faltam os documentos. Eu já disse que se Atenas quer se ver livre dos imigrantes só precisa dar a eles residência por um mês. E eles irão desaparecer. A Grécia está protegendo as fronteiras de outros países e isso fez dela uma grande prisão.

OM: Há solução?
HK: Acho que o melhor caminho seria dar residência para que possam sair, ou facilitar os trâmites de aplicação por asilo. Se eles conseguirem qualquer tipo de papel, eles podem ir para outros países. Não vou dizer que outros países queiram aceitar essas pessoas, mas eles podem, como Alemanha, Suécia, Dinamarca e Noruega. No Reino Unido é difícil conseguir papéis. Mas, principalmente, não vejo como solução ficar na Grécia.

OM: Como as regras impostas pela Troika afetam a vida dos imigrantes?
HK: Se elas fizerem a vida dos gregos mais difícil, vão complicar a nossa vida em dobro.