quarta-feira, 31 de outubro de 2012

Cinecittà venezuelana pretende combater 'ditadura de Hollywood'


A Cidade do Cinema é o primeiro complexo de estúdios e um dos principais motores da produção cinematográfica do país

Marina Terra
Com uma mochila nas costas, um garoto de 13 anos abandona sua casa em ruínas e segue em viagem pela costa venezuelana. No caminho, consegue sensibilizar as pessoas ao narrar uma tragédia que marcou sua vida e, dessa forma, obtem ajuda para sobreviver. Cada vez que repete a história, no entanto, dá uma versão diferente. Para alguns, diz que está atrás de sua mãe; para outros, que ela se sacrificou para salvá-lo; ou então afirma que é órfão de pai. As mentiras, ou verdades, são conectadas por um fio condutor: o trágico deslizamento de terra ocorrido em 1999 no estado de Vargas, na Venezuela, que deixou milhares de mortos e desaparecidos.
O filme O garoto que mente (El chico que miente, 2009), de Marité Ugas, sucesso de público e um dos selecionados para a edição de 2011 do Festival de Berlim, é um dos mais recentes exemplos de renascimento do cinema venezuelano. Parte dessa transformação se deve às novas políticas de incentivo e produção cultural do governo de Hugo Chávez, declaradamente voltadas para "o rompimento com a ditadura dos filmes norte-americanos".

A qualidade do cinema local, de acordo com o cineasta e roteirista Diego Sequera, caiu sensivelmente nos anos 1990, tanto em quantidade de produções quanto na qualidade desse material. “Foi o boom dos filmes identificados com Hollywood, uma forma de colonização por meio do cinema”, diz o venezuelano, que trabalha na Cidade do Cinema (Villa del Cine, em espanhol), o primeiro complexo de estúdios e um dos principais motores da produção do país.

Divulgação/Villa del Cine
Vista aérea da Cidade do Cinema, criada em 2006 pelo governo da Venezuela
Situada na cidade de Guarenas, 33 quilômetros ao leste de Caracas, o empreendimento fundado em 2006 já produziu mais de 500 filmes - entre longas-metragens, curtas e documentários. A maioria aborda temas nacionais, especialmente ícones ou momentos da história.
O que levou Chávez a investir recursos nesse centro foi saber, segundo suas próprias palavras, que "oito grandes estúdios de Hollywood dividem 85% do cinema mundial e representam ao menos 94% da oferta cinematográfica na América Latina".

Esse novo perfil de cinema foi alvo de críticas de cineastas e produtores independentes, que consideram a Cineccità venezuelana mais um instrumento da propaganda chavista. Somente roteiros identificados com a esquerda estariam recebendo investimentos. Jonathan Jakubowicz, diretor que ganhou reconhecimento internacional com o filme “Sequestro Express”, de 2005, denuncia que a Cidade do Cinema só apoia filmes “que retratam a revolução como solução para todos os problemas da nação, ou aqueles que contam histórias dos líderes da independência, sempre com uma versão que favorece valores apropriados pela revolução bolivariana”.

“Quem dera fosse verdade que a Cidade do Cinema fosse voltada apenas para filmes inspirados pela revolução", contesta Sequera. "Mas não é assim. Muitos opositores do governo trabalham lá. Adversários abertos do regime, que têm liberdade total para criar.” Para o roteirista, a crítica que deveria ser feita está na forma de produção de alguns filmes, ainda bastante influenciados pelo modelo norte-americano. “Em 2005, o processo de industrialização do cinema começa a mudar as estruturas da produção audiovisual venezuelana. Porém, filmes como Miranda regresa e La Clasetrazem um formato gringo, de superproduções. Acredito que deveria haver mais criatividade”, desabafa.

O primeiro filme citado por Sequera contava a biografia de Francisco de Miranda, um dos precursores da independência venezuelana. Com 140 minutos de duração e orçamento de 2,32 milhões de dólares, envolvei mais de mil figurantes.  Miranda Regresa foi rodado na Venezuela, em Cuba e na República Tcheca. Connta com uma pequena participação do ator e ativista norte-americano Danny Glover, admirador público de Chávez. Já La Clase narra a história de um jovem violinista de origem humilde dividido entre a carreira musical e a história da Venezuela.
Divulgação/Villa del Cine

Cena do filme Miranda Regresa, que conta a história de Francisco de Miranda, um dos precursores da independência venezuelana

Junto com a Cidade do Cinema, foi criado o curso da Escola Nacional de Cinema, na UCV (Universidade Central da Venezuela), e o curso de Licenciatura em Arte Audiovisuais na Unearte (Universidade Experimental das Artes). A Unearte, criada em 2008, é totalmente voltada para as artes, com cursos de teatro, dança, artes plásticas, música e, desde 2011, cinema.

A Cidade do Cinema, também em 2011, abriu o Centro de Formação Profissional. “Ha áreas em que temos um só especialista. Isso poderia funcionar quando fazíamos um ou dois longas por ano, mas não quando estamos fazendo 10, 12 ou 14 como agora", explicou Pedro Calzadila, ministro da Cultura, na época da inauguração.

Crise sistêmica da financeirização e a incerteza das mudanças


Os problemas financeiros desencadeados a partir de 2007 alcançaram escala internacional e assumiram características que permitem defini-los como uma crise sistêmica do capitalismo financeirizado que em fins de 2008 já atingia 38 anos de existência. Para que uma tragédia econômico-financeira ao estilo de 1929 não se desenvolvesse, apareceu o Big Bank - o Banco Central - de cada país desenvolvido utilizando instrumentos conhecidos com novas características. Ainda que tenha impedido uma grande crise, essa atuação não foi capaz de impedir a contaminação da performance produtiva da economia global. Além disso, este artigo discute a incerteza que ronda a fundação de uma efetivação regulação e reforma do padrão atual de dominância financeira.

José Carlos Braga
Introdução
NO MOMENTO em que este artigo é escrito, janeiro/fevereiro de 2009, a crise sistêmica do capitalismo, aberta em 2007/2008, aponta para a estatização temporária do sistema bancário, especialmente nos Estados Unidos e na Inglaterra, enquanto aprofunda-se no âmbito da macroeconomia da renda e do emprego em vários países. Confirma-se, em geral, que decorre, dentre outras razões, de uma extrema exacerbação do paradigma do "desenvolvimento" liberal, implementado desde o início dos anos 1970. O desenrolar da crise vai abrindo as portas para uma intervenção estatal das maiores já apresentadas na história do capitalismo, mostrando-nos cada vez mais claramente as dimensões do Estado próprio à macroeconomia da riqueza financeira. Isto é, um Estado em que o Banco Central e o Tesouro não medem esforços em defesa da sustentação da riqueza da alta finança. Ao mesmo tempo cresce o clamor para que se redefina o caráter da relação entre Estado e economia e que, por assim dizer, claramente, a sociedade e o Estado controlem a economia, e não o contrário.
O que está acontecendo nessa crise é da natureza do capital e do capitalismo desregulado. Não existe nenhuma deformação, nenhum desvio da essência do processo de acumulação, tal como detectado por seus grandes intérpretes. Tanto da acumulação produtiva como da articulação daquela com a acumulação financeira e da autonomização desta última. É curioso que parte da crítica de esquerda cobre um "produtivismo" do "sistema de mercado" que justamente não é alcançável pela lógica pura do mercado. O capitalismo está cada vez mais parecido com ele mesmo. Determinações econômicas e políticas têm concorrido para tanto. O período iniciado em 1970 que se designa como o do capitalismo financeirizado (Braga, 2000b), ou do capitalismo sob dominância financeira, ou ainda o "Finance Led Capitalism" (Guttmann & Plihon, 2008), já dura mais de 38 anos. Um capitalismo, como se verá adiante, em que a valorização da riqueza financeira vinha preponderando sobre a produtiva, sem impedi-la, porém expandindo-se a velocidades superiores e produzindo instabilidade econômico-financeira estrutural.
Pois bem, isso já é mais tempo do que os famosos 30 anos gloriosos da época de ouro - "Golden Age" - do capitalismo posterior à Segunda Guerra Mundial.
A dinâmica da valorização imobiliária e de seu fenecimento que está na origem da crise atual expressou a extensão da globalização financeira e a intensificação da financeirização das economias.
As regulações já propostas e as que estão em pauta darão conta dos problemas? Serão elas capazes de mudar o padrão sistêmico de riqueza vigente nesses 38 anos?
As mudanças necessárias contam com estadistas à altura, com partidos políticos e legislativos adequados e aparelhados e com movimentos sociais ativos para "empurrarem" na direção pertinente?
O Estado capitalista e a riqueza financeira2 após a lição deflagrada em 1929
O que segue ajuda a entender o que acontece atualmente - 2007/2009 - uma vez que os procedimentos atuais já vêm se desenvolvendo ao longo das últimas décadas.
Na "alta", só há o mercado; na "baixa", todos querem o Estado. Não estamos nos referindo apenas à velha salvaguarda do Banco Central como o prestamista de última instância. Examinamos aqui o lema inconfesso que rege uma espécie de divisão de funções entre o setor privado e o setor público na condução das atuais economias capitalistas de mercado livre, desregulado, desregulamentado. Quando a economia da produção (renda e emprego) vai bem e acompanhada de valorização financeira dos ativos (ações nas bolsas de valores, imóveis etc.), cabe ao Estado não atrapalhar (sic!). Quando começam as desvalorizações da riqueza e crises econômicas, o Estado é convocado pelos chamados mercados para uma adequada providência destinada a evitar o "pior": as perdas patrimoniais privadas.
O presidente do Federal Reserve (FED), o Banco Central americano, anunciava por volta de 1999/2000 que as taxas de juros seriam reduzidas se houvesse sinais de que a economia se encaminhava para um "hard landing", "pérola" da nomenclatura sobre crise que ganhou evidência na mídia. O que o Sr. Alan Greenspan estava dizendo, em outras palavras, era que a política monetária seria expansiva, ofertando a liquidez necessária para evitar um desenlace crítico da prolongada expansão americana.
É de J. K. Galbraith maravilhosa ironia sobre a nomenclatura que o discurso oficial utiliza para referir-se à instabilidade capitalista. Desde o século passado, as palavras foram perdendo peso e significação: pânico, crise, depressão, recessão, reajustamento. A inovação atual apela para a aviação comercial - o pouso suave (soft landing) ou o pouso árduo (hard landing). Curioso, pois na versão jocosa dos pilotos o voo exitoso é aquele no qual ocorre tanto a decolagem quanto o pouso, já que a decolagem é opcional, mas a aterrissagem é compulsória. Logo, o voo capitalista seria, pela metáfora em voga, sempre exitoso, havendo apenas diferentes graus de comodidade ou incomodidade no pouso que antecede a subsequente decolagem. Evidentemente, os eventos de 2008/2009 destruíram essas nomenclaturas atenuantes, uma vez que têm exposto o mundo às múltiplas faces da crise sistêmica do capitalismo globalizado sob dominância financeira.
O que estava implícito era que o poder público asseguraria até mesmo a continuidade da "exuberância irracional" denunciada pelo próprio regente americano da acumulação financeira globalizada e dolarizada. Ou seja, o "risco sistêmico" seria contornado e muitas posições especulativas acabariam sancionadas, caindo em desgraça somente aqueles que exageraram nas finanças Ponzi.3 Por essa razão, para surpresa de muitos à época, logo após as "garantias" de pronta intervenção pública, os mercados mundo afora deram saltos efusivos, revelando a autonomização da riqueza financeira. O Estado emissor da moeda "dominante" vem à cena como garantidor de última instância do processo de valorização dos ativos que é recorrentemente atacado pela instabilidade e pelas crises provocadas pelos próprios mercados. Isso, evidentemente, nem sempre assegura que o "risco sistêmico" seja contornado, mas implica que esforços públicos socorrerão "interminavelmente" o mercado da riqueza. Pode-se dizer que na globalização capitalista liberal, por paradoxal que pareça, a regra de ouro é: o Estado socorrerá os mercados em que se transacionam não só especulativamente - o que é o normal do sistema - mas sob a ruptura das regras os títulos representativos da riqueza!
A situação superespeculativa teve vigência em outros países e momentos antes da "explosão atual". No Japão dos anos 1990, após o auge especulativo da bolsa e do mercado imobiliário, houve inúmeras medidas monetárias e fiscais expansionistas para evitar que a estagnação do Produto Interno Bruto (PIB) se transformasse numa crise. Há que perguntar quão profundo seria o "hard landing" japonês, não fossem essas intervenções. O índice Nikkey, entre 1989 e 1992, despencou de 45.000 para 15.000, representando uma desvalorização cujo ajuste, se deixado ao mercado, conduziria a economia japonesa para uma grande depressão. Nem as bolsas americanas, nem qualquer outra tinha apresentado até o momento uma queda tão violenta.
Na administração da crise da Coreia do Sul, 1997, o governo recorreu até mesmo à estatização de bancos, apenas para evitar encadeamentos disruptivos de insolvência. Na sequência, encontrou dificuldades para revendê-los aos capitais privados. Além disso, o governo injetou recursos públicos em outros bancos que se encontravam em dificuldades. A The Economist (3.6.2000) informava que o setor público coreano gastou com os bancos algo como US$ 88 bilhões.
Os dados acerca do custo fiscal das crises entre 1977 e 1995 são expressivos. O do Japão é estimado em 20% do PIB contando a partir de 1992 para enfrentar a estagnação deflagrada com a desvalorização de riqueza posterior à especulação da bolsa de valores e de imóveis. Na Noruega, entre 1987/1993, o custo chegou a 8% do PIB; na Espanha, 1977/1985, a 5,6% do PIB; na Suécia, 1991, 4,0% do PIB; nos Estados Unidos, 1981-1991, 3,2% do PIB.4
Quando os resgates de sistemas financeiros ou cambiais não podiam ser realizados com autonomia nacional, apelava-se aos organismos multilaterais, como Fundo Monetário Internacional (FMI) e Banco Mundial, que impunham suas conhecidas condicionalidades. No caso da Argentina, tais condicionalidades implicaram custo social e econômico bastante elevado para reanimar o sistema de currency board, que já colocavam as decisões públicas e privadas sob a égide da "dolarização" e implicaram renúncia ainda maior de soberania. O garrote aplicado às finanças públicas impediu qualquer possibilidade de os distintos níveis de governo virem a ter uma agenda de desenvolvimento. Mas, ao mesmo tempo, deixado ao jogo autônomo das forças de mercado, o sistema monetário argentino já estaria morto pela crise cambial.
Esses desenhos internacionais de política econômica na gestão das crises desvelavam uma faceta especial do tipo de liberalismo coetâneo da globalização. Plena liberdade aos mercados e aos capitais para que produzam e realizem riquezas no mundo todo. Nos momentos críticos de desvalorização dessas riquezas, plena liberdade aos poderes públicos - ao Banco Central e ao Tesouro Nacional - para a defesa dos patrimônios privados, ainda que o custo disso seja expansão monetária indesejada, ônus fiscais, desemprego elevado, cessão do poder decisório a instâncias internacionais. Na hora da euforia valem os mercados; na hora da queda valem as providências estatais.
Desde o século XIX até a Grande Depressão dos anos 30 do século XX, as desvalorizações afetavam amplamente os patrimônios privados, com quebras generalizadas de empresas bancárias, industriais, comerciais. Uma outra fase de crescimento iniciava-se, liderada pelos novos empreendedores, bem como pelos capitais sobreviventes à feroz concorrência dos tempos difíceis. Após a catástrofe dos anos 1930, ficou claro que eventos desse tipo podiam ser evitados com o Big Bank (Banco Central) e o Big Government, e foi esse tipo de intervenção que evitou grandes crises, administrou recessões, impediu que se transformassem em depressão, baixou o desemprego, ao custo, entretanto, de tensões inflacionárias, especialmente produzidas pelas defesas das margens de lucro que os oligopólios executavam compensatoriamente durante as apatias na atividade econômica.
A grande novidade do liberalismo atual é que as crises são administradas com o propósito específico de defender os patrimônios privados, numa postura cúmplice com a especulação e a riqueza financeira fictícia.
Se o Big Government, num certo sentido, saiu de cena com as reformas liberalizantes, o contrário acontece com o Big Bank. Em todo o período que antecedeu a atual crise sistêmica, a partir de 2007, relativamente saíram de cena os dispêndios governamentais de caráter produtivo, de geração de infraestrutura, de gasto fiscal anticíclico, antidesemprego. Mas os bancos centrais e instituições multilaterais sustentadas com dinheiro público estão permanentemente presentes para garantir a interminável valorização da riqueza privada.
Num processo como esse, uma certa discussão do moral hazard5 relacionado à intervenção salvadora dos bancos centrais beira a hipocrisia, já que nas atuais condições eles não têm como se omitir. Os Bancos Centrais e os Tesouros tornaram-se reféns dos mercados, e assim permanecerão enquanto não mudar o padrão sistêmico de riqueza. Sabedores disso, os decisores privados se lançam velozmente aos ganhos especulativos, e, apoiados na premissa too big to fail (grande demais para desaparecer), a grande maioria acaba exitosa, contando, em último caso, com o resgate público do mercado. O risco microeconômico obviamente não desaparece, é uma questão privada; já o "risco sistêmico" é questão pública enfrentada, entretanto, precipuamente do ângulo dos detentores da riqueza e apenas marginalmente do ângulo da maioria da população, para a qual, se tanto, caberão os programas de renda mínima, de seguro-desemprego, de assistência social, quando vitimizada pelas intempéries da atividade econômica.
Como, porém, já salientamos, não se trata apenas da função de prestamista de última instância que protege os ilíquidos mas não os insolventes, como queria Bagehot há séculos. É muito mais: o Estado passa em pleno auge neoliberal a ser o garantidor, o corregulador, o orquestrador da macroeconomia da riqueza financeira por meio da macroestrutura financeira público-privada.6 Antes, o Estado assegurava os lucros produtivos codinamizando a demanda efetiva. Agora, com a fiscalidade aprisionada, afastada daquela função, as finanças públicas, a gestão fiscal e a gestão monetária passam a ser elementos públicos fundamentais da própria reprodução da macroeconomia da riqueza financeira. Não é o Estado mínimo, é o Estado máximo ou pleno na reprodução da riqueza financeira, da riqueza abstrata. Prática radicalmente antiliberal. Parecia que se tornaria, mais cedo ou mais tarde, politicamente insustentável esse "liberalismo das elites", cujas leis férreas de mercado valem apenas para os indivíduos sem riqueza, para as periferias "desgovernadas", enquanto para os indivíduos, empresas e países de "elite" valem as garantias do Estado improdutivo, mas gestor da reprodução da riqueza.
Verificou-se ao longo dos últimos tempos um Estado cada vez menos da macroeconomia do emprego e da renda (nesse caso é o Estado mínimo, vale o liberalismo) para ser um Estado da macroeconomia da riqueza financeira (nesse caso, o Estado máximo, interventor).
O Big Bank7 a partir da crise aberta em 2007
Deflagrada a crise imobiliária americana e tendo ficado claro que ela contagiava os sistemas bancários e financeiros de países importantes, teve início em meados de 2007 o questionamento sobre o que fariam os Bancos Centrais.
O Banco Central da Europa foi o primeiro - seguido, após percalços, pelos Bancos Centrais americano e inglês - a fazer uma demonstração inequívoca. O Big Bank tem o papel intrínseco de resgatar o capitalismo financeiro nas encruzilhadas em que esse dá sinais de que não é capaz de resolver as instabilidades globais que ele mesmo criou. Amplia-se a liquidez, criam-se distintos mecanismos de apoios, reduzem-se as taxas de juros etc. Não só Lender of Last Resort (LLR), mas Market Maker of Last Resort (MMLR). Isto é, não apenas prestamista de última instância, mas também comprador de títulos de agentes privados quando esses não encontram no mercado compradores e estão absolutamente necessitados de liquidez, e a conseguem trocando os títulos que possuem por títulos públicos que então serão convertidos em cash - em dinheiro.
Por isso, naquele momento, segundo semestre de 2007, as três decisões tomadas foram coerentes e compreensíveis, ainda que duas delas tenham sido antecedidas de dúvidas, polêmicas e condenações morais. A questão seguiu atiçando argumentos e interesses. Na Europa, a imprensa comentava o surgimento das novas bolhas financeiras nos países emergentes originadas supostamente pelas decisões adotadas.
A verdade é que, quem quer que seja o "comandante" de Bancos Centrais relevantes, estará obrigado a tomar esta decisão: impedir que a desvalorização da riqueza financeira se agrave, que se torne pó a riqueza de papel acumulada no "boom financeiro".
Sem a alta finança moderna não se entende o significado de capitalismo financeiro nos dias de hoje. Ela é formada também, e aqui há uma importante novidade da globalização, pela tesouraria ou pelos departamentos financeiros das próprias corporações produtivas. Para elas as finanças são um objetivo específico e, assim, o valor de seus ativos financeiros. Os interesses delas juntam-se aos dos bancos e das demais organizações monetárias, bem como aos de grandes poupadores financeiros, para forjar o núcleo duro - a alta finança - do capitalismo financeiro atual.
Desde a catástrofe da década de 1930, iniciada com o crash de 1929 na Bolsa de Nova York, a alta finança e os governos sabem como fazer que a direção do Big Bank, eventualmente recalcitrante, tome o "rumo certo".
Toda a fala e a escrita que antecederam as decisões salvadoras dos Bancos Centrais sobre os estilos dos seus presidentes, as análises de seus discursos, o palavrório sobre moral hazard não passavam de conversa de quem queria turvar a água ou de quem ainda não entendeu do que se trata nesse capitalismo financeiro.
Talvez, a presente crise imobiliária americana tenha sido, dentre as crises financeiras do pós-Segunda Guerra Mundial, aquela mais previamente anunciada. A surpresa não foi sua ocorrência, mas a extensão com que ela penetrou os sistemas financeiros nacionais e os mais distintos atores, e a forma insinuante e insidiosa de inovações financeiras. Viu-se a omissão das autoridades monetárias, supervisoras, fiscalizadoras etc.
Como se sabe, os empréstimos imobiliários feitos por instituições americanas do ramo foram revendidos para financistas organizados em fundos de investimento, fundos de pensão e hedge funds que encontravam garantia nas prestações dos imóveis e, em último caso, no próprio valor dos mesmos imóveis, que passaram a se elevar consideravelmente com a especulação que se armava. Uma perversa "inovação", sabe-se, teve lugar quando semelhante operação passou a ocorrer com hipotecas para tomadores de "alto risco" - "subprime borrowers".
A partir daí, o percurso da inovação financeira tomou o rumo da geografia mundial sob o comando de grandes atores do mercado, e por isso engendrou-se uma turbulência global. Os empréstimos inicialmente eram reagrupados em títulos caucionados em hipotecas (Mortgage-Backed Securities - MBS) que possuem um mercado secundário altamente líquido e dinâmico nos Estados Unidos. Em seguida, esses MBS eram adicionados a outros títulos (débitos de cartões de crédito, aluguéis de automóveis, "recebíveis" de corporações etc.) e reagrupados em outros títulos hipotecários caucionados. Eis mais uma operação de inovação financeira, cujo produto denominou-se Collateralized Debit Obligations Securities, as CDO securities. Traduzindo: títulos de créditos estruturados (para os aplicadores), denominados Obrigações de Débito Caucionadas, para, evidentemente, os devedores.
Essas invenções financeiras dos bancos de investimento, segundo o Financial Times, "eram confeccionadas para clientes específicos [...] nunca comercializadas [...] não eram continuamente validadas através de um mercado secundário ativo". Compreende-se, segundo Richard Beales (2007), que "se tenha colocado a questão sobre se de fato hedge funds, investment banks e até fundos de pensão e grupos de seguro sabiam o quanto valiam os títulos que eles detinham". As autoridades monetárias e as relacionadas ao setor deixaram correr solto. Nada de fiscalização, intervenção ou prevenção foi feito, a despeito de todo o debate que anunciava o que estava por vir.
Na "alta", insistamos nesse ponto, só há o mercado; na "baixa", todos os "entendidos" querem o Estado. Nesse processo, a discussão do moral hazard, ou seja, o risco de que os gestores privados de riqueza operem de maneira indisciplinada financeiramente ao terem como certa a intervenção pública para evitar um crash financeiro beira a hipocrisia, já que nas atuais condições não há alternativa. Os Bancos Centrais e os Tesouros tornaram-se reféns dos mercados, e assim permanecerão enquanto não mudar o padrão sistêmico de riqueza. Não são as intervenções públicas para evitar catástrofes que insuflam as incorretamente denominadas bolhas. É o capitalismo financeiro atual que engendra uma instabilidade financeira estrutural.
A regulação necessária e os obstáculos para um capitalismo regulado 8
Esse capitalismo fez eclodir uma crise sistêmica no capitalismo "global" desregulado, como se sabe, a partir de 2007/2008. A importância das organizações afetadas, a quebra e centralização de capitais no sistema financeiro - Bank of America + Merril Lynch, como um dos exemplos apenas -, bem como as características das ações dos bancos centrais são demonstrações suficientes. Quanto a essas, sobretudo as do FED, o Big Bank americano e as do Tesouro não deixam dúvida de que eles viram a máscara feia do risco sistêmico. As evidências se sucedem: magnitude de recursos oficiais mobilizados, novidades intervencionistas, tipos de instituições apoiadas, número de países importantes envolvidos, afundamento dos cânones da desregulamentação, suprimentos de liquidez, apoios financeiros e reduções de taxa de juros, "estatizações brancas" etc.
O mundo vive há 38 anos, desde o início dos 1970, sem o dólar-ouro, com câmbio flexível e reformas liberalizantes, sob um padrão sistêmico de riqueza, em que ocorre, como já ressaltado, a dominância financeira, o capitalismo liderado pelas finanças. Nesses 38 anos instabilidades e crises ocorreram. Porém, nenhuma se tornou profunda e "global". Agora sim. Os processos que têm sustentado os movimentos financeiros de valorização da riqueza emperram e produzem internacionalmente uma tendência à desvalorização da riqueza de duração indeterminada.
A esse ponto se chegou com a globalização financeira e o movimento de financeirização do capitalismo pelo qual a riqueza de papel se multiplica relativamente independente da valorização dos ativos produtivos, das variáveis reais. É um processo em que todos os atores estão envolvidos, até a corporação produtiva que incorporou a meta financeira em seus objetivos - nunca é demais ressaltar como já assinalado. Interpretações mais recentes e abundantes, sobretudo na mídia, põem ênfase nos descuidos da regulamentação, nos desvios de conduta etc. Esses claramente existiram e foram responsáveis, mas é necessário penetrar nas raízes e ver como se moviam as estruturas desse capitalismo.
Preponderavam as operações privadas em altos níveis de alavancagem e os Bancos Centrais e Tesouros que viraram reféns, repitamos, dessa dinâmica. Na alta da especulação o império do mercado; e na baixa, o socorro do Estado. Assim tem sido em todas as turbulências que ocorreram nesses 38 anos.
Lembremo-nos de que o ambiente regulatório ao longo desses anos inspirou-se nos Acordos da Basileia, compostos por índices de capital em relação aos ativos, segundo tipos de riscos, por agências de classificação de risco, por modelos de autogestão "armados" pelos grandes players bancários, pela supervisão "a distância" por parte dos bancos centrais, e pela suposta disciplina de mercado na prática da transparência das informações etc.
Os bancos centrais deixaram solta a capacidade do sistema em criar riqueza fictícia em escala "global" e com significativa participação direta e indireta dos bancos via organizações paralelas que criaram. Essas organizações "especiais", os instrumentos financeiros exóticos, as práticas correspondentes ficaram conhecidas, sabem os "entendidos", como "sistema financeiro sombra" - "shadow financial system". Um mundo de capital fictício a operar, fora dos balanços dos bancos, fora da vista das autoridades reguladoras e monetárias, em autoexpansão descontrolada.
Esclarecem Cintra & Farhi (2008):
Segundo Paul McCulley, diretor executivo da maior gestora de recursos do mundo, a Pimco, o global shadow banking system inclui todos os agentes envolvidos em empréstimos alavancados que não têm (ou não tinham, pela norma vigente antes da eclosão da crise) acesso aos seguros de depósitos e/ou às operações de redesconto dos bancos centrais. Esses agentes tampouco estão sujeitos às normas prudenciais dos Acordos de Basiléia. Nessa definição, enquadram-se os grandes bancos de investimentos independentes (brokers-dealers), os hedge funds, os fundos de investimentos, os fundos private equity, os diferentes veículos especiais de investimento, os fundos de pensão e as seguradoras. Nos Estados Unidos, ainda se somam os bancos regionais especializados em crédito hipotecário (que não têm acesso ao redesconto) e as agências quase-públicas (Fannie Mae e Freddie Mac), criadas com o propósito de prover liquidez ao mercado imobiliário Americano.
Desde 1980, segundo esses autores, os mercados de balcão foram amplamente utilizados para a negociação de derivativos financeiros com o que as instituições financeiras buscavam cobertura de riscos de câmbio, de juros e de preços de mercado de outros ativos. Especulavam também sobre a tendência desses preços ou efetuavam operações de arbitragem.
As relações entre o sistema bancário e o shadow banking system passam desde o final dos 1990, segundo os autores citados, e ultrapassam a mera concessão de créditos do primeiro ao "sistema sombra". Os mercados de balcão passaram a negociar derivativos de crédito e títulos outros que recebem a denominação ampla de "produtos estruturados". Desde então o sistema bancário e o shadow banking system se interpenetram de forma quase inextricável.
Tais conexões têm - a nosso juízo, é uma das que têm, entre outras - grande força explicativa para o contágio, difusão intermercados e atores e generalização internacional que a chamada "crise do subprime", um problema norte-americano, em princípio, veio a alcançar.
O ex-presidente do FED, Paul Volcker, no The Economic Club of New York, em 8 de abril de 2008, comentou:
Hoje, muito da intermediação financeira verifica-se em mercados distantes da capacidade supervisora podendo implicar descuidos, tudo envolvido em desconhecidos instrumentos derivativos estimados em trilhões. Tem sido um negócio altamente lucrativo, indicando a contabilidade financeira recente algo como 35 a 40 por cento de todos os lucros corporativos.
Quando se inicia a desvalorização, aparece o Banco Central, que se torna ativo em vez de omisso. É ao que temos assistido em suas operações como prestamista de última instância - até mesmo para bancos de investimento, o que não é de sua competência - e "market maker" - quando assegura liquidez diante de um mercado travado. Aceita títulos sem compradores e os troca por títulos do Tesouro que podem em seguida ser transformados em dinheiro.
Ainda assim a crise persiste e há os que acreditam que ela poderá se aprofundar severamente. A rigor, ninguém sabe o quanto, pois uma das facetas do momento é justamente a sombra sobre as informações relevantes! Mesmo que daqui a 12/18 meses - número "mágico" citado por muitos - ou até em menos tempo - o pior já tenha passado, a pergunta relevante é a seguinte: terá começado um processo profundo de redefinição da regulação do sistema? Ou apenas mudanças paliativas ocorrerão e o padrão persistirá o mesmo?
As reformas necessárias demandam limites à concorrência financeira que está na raiz da multiplicação dessa riqueza de papel. Requerem a criação de disciplina financeira internacional. Isso implica impor limites a muito do que aparecia como virtude: autorregulação dos atores e mercados financeiros, securitização, derivativos, altos níveis de alavancagem, organizações como supermercados financeiros, permissividade quanto às inovações financeiras etc.
Os Bancos Centrais e os governos fizeram e farão o que for necessário para salvar suas economias capitalistas em crise sistêmica. Quanto a estabelecer um capitalismo regulado, já é outra conversa difícil, tensa, de duração indeterminada e talvez inconclusa. Foi Paul Volcker que já antecipou, no evento antes mencionado:
Ninguém se beneficiará de uma regulação e supervisão que seja indevidamente intrusa e arbitrária. Venture capital e equity funds têm sido duas partes vitoriosas, criativas e valorosas do mercado de capitais Americano. Por sua natureza elas são dependentes de fortes e sofisticados investidores, portanto implicações sistêmicas de determinados fundos é improvável. Consequentemente o caso seja de um apoio oficial de liquidez seja de uma regulação direta intrusa é insustentável.
Ora, nos acontecimentos recentes muitas barreiras têm sido transpostas com o caráter de emergência, sob a ameaça da ruptura. Conformar um quadro regulatório para ter uma "vida longa" já é uma discussão e uma decisão de outra natureza.
Adverte-se em vão há muito tempo sobre a necessidade de uma nova arquitetura financeira e monetária internacional. Sem uma verdadeira reforma, o cenário é de recorrente ameaça do risco sistêmico e consequentes ônus econômicos e sociais. Problemático nó histórico: desarranjo sob o capitalismo desregulado e capitalismo regulado como miragem.
Com o agravamento econômico-financeiro e social verificado desde o último trimestre de 2008 até o presente - primeiro trimestre de 2009 -, o consenso, nesse momento, pela regulação e pela intervenção estatal é forte.
É evidentemente impossível prever o desenlace diante da complexidade nos planos nacionais e internacional engendrada pela crise dessa financeirização capitalista. Sobretudo, se, daqui a algum tempo, as dinâmicas financeiras e econômica derem sinais de que "o pior já passou".
Por enquanto, até sob a presidência do mesmo Paul Volcker, o Grupo dos 30 acaba de produzir o documento "Reforma financeira - Um sistema para estabilização financeira" com 18 propostas de regulação/regulamentação.9 É um documento para discussão. Comentaristas observam que os banqueiros pedem moderação aos reguladores para que não se destrua o espírito inovador do sistema (sic!). Destacam-se nas recomendações: que os Bancos Centrais assumam maior relevância na prevenção; um único órgão regulador para atividades garantidas por seguro-depósito; maiores exigências de capital dos bancos nos auges para poder melhor enfrentar os momentos recessivos; ênfase na regulação prudencial; exigência de que instituições financeiras assumam parte do risco de crédito que elas estruturam em produtos securitizados e outros etc.
Ao longo das últimas semanas, a crise assumiu contornos mais densos para dizê-lo de uma maneira mais estratégica. Aponto na direção do aprofundamento da revisão das relações entre Estado e mercado, economia e política etc. A mais evidente face do aprofundamento está explícita ou implícita na necessidade de estatização temporária do sistema bancário nos Estados Unidos e na Inglaterra. Bancos americanos têm quebrado antes mesmo que os organismos fiscalizadores tenham sido capazes de examinar as contas deles. Nouriel Roubini, o economista cujo pessimismo revelou-se realismo analítico, estima que os prejuízos das instituições financeiras americanas aproximem-se a US$ 3,6 trilhões, atingindo metade de banco e corretores lá credenciados. Acrescenta que se ele estiver correto, isso implica a insolvência do sistema bancário porque esse começa a funcionar com um capital de US$ 1,4 trilhão.
Outras faces, porém, aparecerão, na medida em que a dimensão dos gastos públicos, a amplitude da política fiscal, o surgimento de uma política financeira muito mais do que uma mera política monetária (de administração de juros), as políticas de renda e de combate ao desemprego, as iniciativas de coordenação governamental aparecerem a partir dos Estados Unidos no governo Barak Obama. Sim, porque, caso elas não apareçam, as possibilidades de desenvolvimento negativo do cenário aumentarão.
Em artigo publicado em 1996, em que analisei a dinâmica desse capitalismo que agora, finalmente, se defronta com sua crise sistêmica, assinalei:
Assim esta nova forma dinâmico-estrutural do capitalismo deixaria as seguintes questões: não terá sido já tão aprofundado o processo de mobilidade, libertação e multiplicação ilusória do valor-capital, mercadoria-fetiche, que sua função como ordenador de uma economia com chances de sociabilidade - convivência democrática e civilizada, acesso ao emprego e à renda, expansão vital e cultural - já esteja experimentando histórica e socialmente seus limites? E dessa forma a regulamentação não será apenas uma tímida aproximação à "ponta do iceberg" cuja totalidade por ela não se deixará "resolver"? Estamos diante de qual transição? Qual reforma, muito mais que re-regulamentação, é necessária? Qual forma de reorganização econômico-social e democrática é almejável? Que tipo de crise-transição é essa que se bem encaminhada não for nos colocará diante de uma "neo-barbárie" da qual a práxis "neo-liberal" e a impotência crítico-propositiva são mero intróito? Pragmaticamente: é possível regulamentar o capital globalizado sem intervir na própria lógica da concorrência e do afã de acumular por acumular, que é contemporaneamente dominado pela riqueza abstrata, monetário-financeira? (Braga, 1996)
No momento em que encerro este artigo, há reações em sua maioria negativas ao primeiro "Programa Barack Obama" de enfrentamento da crise econômico-financeira divulgado dia 10 de fevereiro de 2009. As críticas originam-se de distintas matrizes ideológicas. O editorial do The New York Times no dia seguinte foi ao ponto, a nosso juízo: "Someone should have told Treasure Secretary Timothy Geithner that one thing to avoid at a time of uncertainty is raising more questions".
O núcleo do problema é que grande parte de bancos e instituições financeiras americanas estão insolventes, e o programa não trouxe uma estratégia sólida de resolução do problema que resultasse, na sequência, na tão necessária retomada do crédito aos consumidores e às empresas. Injetar capital adicional e comprar ativos "podres" desse sistema não assegura a saída ainda que se tenha acenado com pelo menos US$ 1 trilhão para essa tarefa.
No âmbito do estímulo à demanda agregada, foi anunciado um programa de US$ 838 bilhões que envolverá gastos com infraestrutura, programas de transferência de renda, auxílios a governos estaduais e locais, cortes de impostos etc.
Por diferentes razões, o governo deixou em aberto pontos e procedimentos a serem definidos proximamente. É evidentemente apenas um primeiro round que envolve uma complexa rede de interesses e uma economia cujo padrão de desenvolvimento precisaria ser redefinido do ângulo da maioria dos membros da sociedade americana e seus respectivos impactos mundiais. Foi um primeiro round que refletiu mais o passado recente desse país do que as esperanças de mudança depositadas no novo presidente. Mas é muito cedo para conclusões.
É pequenez humana, contudo, travar o debate e as iniciativas apenas no plano da regulação e da regulamentação. Tecer "remendos". A esperança segue apoiada na ocorrência de uma reforma que modifique o padrão aqui discutido. Vem à mente o historiador Fernand Braudel e uma referência a ele feita recentemente pelo embaixador Rubens Ricupero (2008):
Braudel comparava os acontecimentos aos vaga-lumes: brilham, mas não iluminam o caminho. Sua luz é fraca, não nos ajudam a distinguir a duração longa, os ciclos seculares. Em horas como as atuais é o que dificulta perceber se a tremenda intensidade dos eventos significa que as coisas mudaram para sempre.
Notas
1 O presente artigo resgata e articula reflexões do autor publicadas "fragmentariamente", nos últimos anos, em artigos no jornal Valor Econômico, na Folha de S.Paulo e nos Indicadores, publicação de conjuntura econômica da Fundação do Desenvolvimento Administrativo (Fundap), do governo de São Paulo.
2 Cf. Braga (2000a).
3 Ampliar dívidas para pagar dívidas é o tipo de finanças Ponzi, segundo H. P. Minsky; enquanto finança especulativa é aquela ditada pela sucessiva rolagem da dívida. Ponzi, aliás, em "homenagem" a um histórico megaespeculador.
4 Dados oriundos de artigo de Maria Clara R. M. do Prado, do jornal Valor Econômico (18.12.2008, p.A13), retirados de pesquisa de Daniela Klingebiel (Banco Mundial) e Patrick Honohan (Depto. de Economia do Trinity College, Dublin/Irlanda).
5 Ou seja, o risco de que os gestores privados de riqueza operem de maneira, digamos, menos disciplinada financeiramente, ao terem como certa a intervenção pública global para evitar um crash financeiro generalizado.
6 Segundo Braga (2000b), na "macroestrutura financeira dão-se as operações monetário-financeiras e patrimoniais de um conjunto de instituições formado pelos bancos centrais relevantes, pelos bancos privados, por diversas organizações financeiras, pelas grandes corporações e pelos proprietários de grandes fortunas. Esses agentes operam, em várias praças financeiras, a valorização e desvalorização das moedas, dos ativos; gerindo os mercados interligados de crédito e de capitais, ampliando as transações cambiais autonomizadas em relação ao comércio internacional, direcionando a 'poupança financeira' e a liquidez internacional".
7 Cf. Braga (2007).
8 Cf. Braga (2008).
9 Ver www.group30.org Financial Reform - A framework for financial stability. Ver Safatle et al. (2009).
Referências bibliográficas
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SAFATLE, C. et al. Proposta de reforma busca evitar nova grande crise. Valor Econômico, 20 jan. 2009. p.C10. [ Links ]
José Carlos Braga é professor livre-docente do Instituto de Economia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi diretor-executivo do Centro de Estudos de Relações Econômicas Internacionais desse Instituto. Pós-doutorado pela University of Califórnia, Berkley (EUA).

Maioria dos judeus em Israel é a favor de apartheid na Palestina



A três meses das eleições em Israel, pesquisa mostra acirramento da polarização na sociedade do país

Susana Mendoza

A maioria dos judeus de Israel é favorável à sua separação total com os árabes que vivem no país e representam 20% da população. A defesa, por essa parcela da sociedade local, de um apartheid na Palestina foi a conclusão de uma pesquisa realizada neste mês pelo grupo Dialog e publicada no diário Haaretz.

A três meses das eleições gerais no país, o levantamento, feito com 550 israelenses judeus, aponta os problemas da polarização da sociedade de Israel e seu rebaixamento em direção ao ultranacionalismo.

Segundo a pesquisa, 59% dos entrevistados são favoráveis aos judeus terem preferência em relação aos árabes para ocupar cargos da administração civil e governamental. Além disso, 42% dos israelenses judeus querem que o Estado os trate de forma melhor que o restante da população e dizem que não viveriam em um prédio com vizinhos árabes, nem matriculariam seus filhos em escolas mistas.

Os números não são uma novidade para a população árabe de cidadania israelense. Para a ONG Adalah, de proteção dos direitos da minoria árabe no país, o principal problema é a coalizão de direita do primeiro-ministro Benjamín Netanyahu e a falta de ações do governo para prevenir o racismo.

“Não é nenhuma surpresa que Israel esteja se convertendo em um Estado cada vez mais racista. No momento, não há nenhum tipo de conscientização da população judia sobre os árabes israelenses”, afirma Saleh, um dos porta-vozes da entidade que preferiu não dizer seu nome completo.

“O governo fomenta um clima de rejeição aos palestinos, começando pelo ministro de Relações Exteriores, Avigdor Lieberman, e seu racismo recalcitrante. O governo israelense está se movendo em direção ao apartheid, não apenas na Cisjordânia, mas também dentro de Israel, com diversas leis para discriminar a minoria árabe”, analisa Saleh.
Entre as leis que considera prejudiciais aos árabes, o porta-voz cita o favorecimento à compra de terrenos por parte dos judeus e a proibição de conceder cidadania a um cônjuge que tenha nascido nos territórios palestinos.

Anexação da Cisjordânia

Caso Israel tente anexar a Cisjordânia, hipótese pouco provável, os números em favor de um apartheid disparam entre os judeus israelenses. A criação de estradas separadas é apoiada por 74% dos entrevistados e 69% proibiria os árabes de votar para o Parlamento.

Quase metade (47%) dos judeus israelenses seriam favoráveis ao envio dos cidadãos árabes à Cisjordânia e 36% apoiam um intercâmbio de árabes em troca de assentamentos na região.

“Jamais me mudaria para a Cisjordânia. Esta é a minha casa e nunca a deixaria sob nenhum aspecto, mas não acredito que a gente chegue a esta situação”, afirma Saleh.

A pesquisa também aponta que os ultraortodoxos têm a opinião mais radical sobre os árabes, com 80% deles sendo favoráveis ao envio dessas pessoas à Cisjordânia e 95% defendem o apartheid em Israel. 

A escolha é sua: socialismo ou depressão



O que é comum a todos os atuais dirigentes capitalistas é que, mesmo compreendendo a gravidade da situação, são incapazes de mudar o curso dos acontecimentos.

TOMI MORI

Vivemos, provavelmente, o período mais complexo da história humana. Neste exato momento, são necessárias respostas para nada menos que 7 mil milhões de pessoas que formam a população do planeta. Ao chegarmos neste ponto, o que encontramos é uma fenomenal crise, social, económica e política. Isso é um facto compreensível para qualquer adulto. Estamos perplexos diante de uma realidade que nos aflige, assusta e, em muitos casos, desespera. A questão é escolher como sair de um lugar onde a maioria se encontra desconfortável, indignada, revoltada e, muitas vezes, anestesiada pelas diversas formas que se apresenta o conformismo, mesmo aquele aparentemente radical.
A Europa cumpriu o papel principal no desenvolvimento da sociedade atual. Foi nessas terras que se iniciou a queda do sistema feudal, cujos resquícios permanecem sob a forma de asquerosas monarquias, que ainda sobrevivem à sua morte histórica (Inglaterra, Japão, Espanha, Arábia Saudita, Butão...). Foi a Europa o motor da revolução industrial e do desenvolvimento do capitalismo, revolucionário no seu início. Mas foi também a Europa que arrastou a humanidade para duas guerras mundiais, surgindo desse processo a ordem mundial que impera até hoje. E agora, mais uma vez, a Europa cumpre um papel fundamental no desenvolvimento histórico. Todos sabemos que existe uma crise mundial, mas, objetivamente, é a Europa que está a arrastar todo o planeta para uma crise sem precedentes na história humana. Para uma penúria e sofrimento que nem os mais ousados e agudos pensadores são capazes de imaginar.
A depressão económica na Europa não é mais uma possibilidade teórica, difundida por economistas que apenas querem provocar polémicas ou por radicais dos mais variados matizes. A depressão económica já faz parte da realidade na Grécia. Está a bater às portas de Portugal, da Espanha e de outros países, do Leste europeu. Ou será que já entrou por essa porta? Onde se encontra a linha divisória entre crise económica, agudização da crise económica, crise económica grave, crise económica brutal, início da depressão, depressão grave, depressão insuportável?
Nós podemos debater essas nuances, mas, para aqueles que não tem trabalho; para aqueles que não conseguem pagar as suas prestações de moradia, as suas contas de água e de luz e são despejados; para aqueles que não têm mais o que comer, não se trata de polémicas teóricas, mas sim de uma realidade muito sofrida e dura.
No início de 2011 escrevi um artigo onde descrevia o ano de 2010 como o ano das greves gerais. Este ano de 2012 ainda não acabou, mas não fica atrás com a quantidade de greves gerais realizadas ou por realizar. Por que as greves gerais continuam a ocorrer? A resposta é simples: porque a crise mundial se aprofunda. Essas greves gerais resolveram alguma coisa? Não, mas, certamente, impediram que as coisas ficassem piores, em certo sentido, apenas em certo sentido.
A questão agora não é apenas defender-se de ataques dos governos ou da troika. Todos os dirigentes capitalistas, Obama, Merkel, Rajoy, Passos Coelho, Monti, Hu, Noda, Singh, e os seus aliados, como o socialista Hollande ou Dilma, têm plena consciência de que a situação já passou dos limites. Mesmo o FMI é obrigado a reconhecer que a política de cortes foi catastrófica, foi receitar veneno para a cura do paciente.
Os dirigentes capitalistas, em particular a senhora Merkel, querem que acreditemos que é possível que uma baleia, a baleia da Comunidade Europeia, voe. Mas, mesmo que tomasse uma garrafa inteira de tequila, espremendo até a última gota, não sei se seria capaz de acreditar nesse disparate. O que é comum a todos os atuais dirigentes capitalistas é que, mesmo compreendendo a gravidade da situação, todos são incapazes de mudar o curso dos acontecimentos. Não me refiro apenas aos problemas europeus, mas, também aos 7 mil milhões de pessoas, a maioria delas vivendo na pobreza, miséria e, inclusive, na indigência. O capitalismo está a empurrar-nos para uma catástrofe bárbara, é a expressão mais reacionária de um sistema que esgotou as suas possibilidades históricas. As fotos de todas as manifestações no globo mostram a violenta repressão das polícias anti-distúrbios. Sem prestígio político, sem nada a oferecer além da miséria crescente, a única forma de defender os seus interesses é através da repressão brutal sobre os manifestantes, ou das guerras, como vemos, em particular, no mundo árabe.
A greve geral ibérica, marcada para o próximo 14 de novembro, absolutamente necessária, justificada, só pode ser um passo. Um passo importante, diga-se desde já. Mas não podemos deixar de analisar a situação na Grécia, onde, depois do início da recessão, que se tornou depressão económica, já foram realizadas 20 greves gerais. O exemplo grego, lamentavelmente, mostra que meias respostas não resolvem os problemas, apenas esticam o prazo do nosso sofrimento.
O tempo já se esgotou. Ou lutamos nas ruas, com manifestações gigantes ou greves gerais, que não sejam apenas de um dia, com o objetivo concreto de derrubar os governos da troika e barrar a crise, formando governo socialistas, organizados pelas bases, ou aceitamos as consequências de fazer as coisas pela metade. Podemos fazer a nossa história, agora!
Tomi Mori

Círculos Conservadores ameaçam tendências incipientes de melhoria na distribuição de renda



Recebo algumas indicações editoriais, às vezes freqüentes, para comparar a situação econômica do Brasil com países do Centro em crise - Europa e Estados Unidos. Há nessas indicações uma pergunta, sugestão ou afirmação indireta, de que o Brasil vai bem ou melhor que o resto do mundo. Agora a sugestão que recebo, após divulgação dos dados da PNAD-2011, é de explicar ‘por que o desemprego diminuiu e a renda média do trabalho aumentou'.

GUILHERME C. DELGADO
Vou enfrentar essa sugestão editorial, desde logo fazendo duas pequenas emendas - tratemos do mundo do trabalho, e não apenas do mercado de trabalho, e de um período maior que o último ano, confrontando o que se passou na última década com o que está por vir. Tudo evidentemente tratado de forma ultra-sintética, de maneira a caber nos limites de um artigo jornalístico.

Na primeira década deste século, a que o ano de 2011 se agrega por similaridade, o emprego cresceu (e o desemprego diminuiu) de maneira muito mais significativa do que os próprios protagonistas da política econômica poderiam suspeitar. Basta lembrar um fato eleitoral significativo da campanha presidencial de 2002. Serra e Lula anunciavam, respectivamente, metas ambiciosas de 7,0 e 10,0 milhões de empregos a serem criados no período do mandato em disputa (2003-2006). Mas os resultados do quadriênio e, principalmente, da década foram substancialmente mais elevados que a meta mais ambiciosa.

Dobra o número de segurados contribuintes do INSS, atingindo no final da década 60,0 milhões de pessoas. E a remuneração da base da pirâmide (salários de um a três salários mínimos), sobre a qual se concentram pouco mais de 80% dos empregos criados, melhorou por duas razões: o mercado de trabalho foi expansivo e os direitos sociais, sob a forma de ‘benefícios sociais monetários' e salário mínimo, exerceram o papel mais relevante na expansão da renda do trabalho. De 2000 a 2009, a renda do trabalho pula de 45,85% para 51,7 % da Renda Interna Bruta (que é igual ao PIB), segundo os dados já publicados pelo IBGE - Contas Nacionais. No mesmo período, o agregado "Salários e Ordenados" vai de 32,2% a 35,6 % da Renda Interna Bruta.

Observe o leitor o peso significativo da política social na determinação da renda do trabalho e ainda o caráter concentrado na base da pirâmide para o fenômeno da expansão do emprego. Isto é de certa forma uma boa notícia, mas também é problemático, porque, para os níveis de escolaridade mais altos e níveis de remuneração também mais elevados (maior que três até seis salários mínimos e maior que seis até dez salários mínimos), o ritmo da expansão dos empregos foi bem menor.

Como o espaço de um artigo é restrito para me alongar explicativamente sobre as causas do desempenho recente, vou direto ao segundo ponto. E daqui para frente, quais são as tendências mais prováveis do emprego e da renda do trabalho.

Responder a esta segunda indagação, também de forma muito sintética, requer que nos concentremos em três vetores codeterminantes: demografia, crescimento econômico e política social, com função distributiva.

O fator demográfico conta pontos em favor do ‘pleno emprego' e até mesmo da ampliação do leque de inclusão em faixas salariais mais altas, porque o incremento de população em idade ativa (dos 16 aos 60 ou 65 anos) deve se reduzir, ainda que lentamente na atual década.
O sistema econômico criando cerca de l,5 milhão de empregos novos ao ano, que é relativamente pouco, se considerarmos o tamanho da População Economicamente Ativa atual - pouco mais de 100,0 milhões de trabalhadores -, daria conta de manter o nível de emprego alto, como o temos no momento.

Mas precisamos ter a atenção voltada para políticas que são muito importantes para perscrutar as tendências futuras do mercado de trabalho e das remunerações dos trabalhadores: a) o crescimento econômico que se projeta e persegue para o futuro próximo; b) a política de imigração de mão de obra que se venha a adotar, preventivamente à alegada escassez demográfica; e c) o financiamento da política social. Essas determinações de política econômica e social estão sendo miradas em certos círculos conservadores, como vias de reversão das tendências muito incipientes de melhoria da distribuição funcional da renda. Este é o jogo político em curso, nitidamente de caráter distributivo, mas que infelizmente jamais será tratado de maneira objetiva nos grandes veículos de comunicação de massa.

Guilherme Costa Delgado é doutor em Economia pela UNICAMP e consultor da Comissão Brasileira de Justiça e Paz.

Atualidade da Grécia Antiga



Estudo de textos de Aristóteles e Platão revela origens de conceitos científicos contemporâneos

MARIA GUIMARÃES

Quando confrontada a duas teorias – uma simples e outra complexa – para explicar um problema, a maior parte das pessoas não hesita em favorecer a primeira, também qualificada como elegante. “Em muitos casos, porém, a complexa pode ser mais interessante”, lembra o filósofo Marco Zingano, da Universidade de São Paulo (USP). Segundo ele, a escolha é de tal forma natural na cultura ocidental contemporânea porque o pensamento dessas civilizações foi moldado por Aristóteles e Platão, os filósofos de maior destaque na Grécia Antiga, para quem a metafísica da unidade tinha como paradigma a simplicidade. Entender até que ponto as ideias desenvolvidas há cerca de 2.400 anos ainda hoje balizam a forma de ver o mundo é o que mantém Zingano imerso em textos antigos. E está longe de fazer isso sozinho. Numa sucessão de projetos que já duram 10 anos, ele vem reunindo um grupo rico e diverso de pesquisadores de várias universidades brasileiras e estrangeiras em seminários para discussão de textos e ideias.
A linha mestra do grupo consiste em reconhecer a influência de Aristóteles e de Platão, seu professor por 20 anos, no pensamento contemporâneo. “Quando se estuda os gregos, encontram-se temas atuais”, diz o filósofo da USP Luiz Henrique Lopes dos Santos, um dos pesquisadores associados ao projeto. “Fazer história da filosofia já é fazer filosofia”, completa. “O tempo da ciência é cumulativo, o da filosofia é mítico, caracterizado pela retomada contínua, de diferentes perspectivas históricas, dos mesmos temas fundamentais.” O enfoque do estudo diverge dos olhares mais comuns sobre os escritos da Grécia Antiga, que ora envolvem historiografia pura, ora consideram que Aristóteles continuaria hoje na fronteira do pensamento, caso fosse possível ressuscitá-lo. “Seria ingênuo tanto limitá-lo ao passado como trazê-lo para nos corrigir”, afirma Zingano.
Levado ao pé da letra, o resgate puramente historiográfico das contribuições da Antiguidade pode parecer folclórico, até risível, diante do conhecimento atual. Exemplos interessantes estão na biologia, que representa um terço dos escritos de Aristóteles remanescentes hoje. Ele descreveu uma série de espécies, como peixes e corais, mas também ia além e buscava explicar padrões que via na natureza. Por que, por exemplo, certos animais têm casco fendido? A explicação do filósofo grego partia do princípio de que cada organismo tem uma determinada cota de matéria óssea a ser usada em sua construção. Por necessidade de se defender, veados, por exemplo, desviariam parte dessa matéria para os chifres e não teriam o suficiente para as patas, que ficariam incompletas. Uma explicação completamente desbancada pelo conhecimento atual, mas não necessariamente irrelevante de todo.
Pensando na permanência das ideias, Zingano cita a busca de Aristóteles por entender o que faz com que homens gerem homens e plantas, plantas – uma observação aparentemente óbvia, mas que em sua época guiava uma investigação que contrariava antecessores. Os organismos, o grego definia, são feitos de matéria e forma. O que confere estrutura a um ser vivo é a forma, transmitida de uma geração para outra e que governa a matéria. “A ideia de que a forma não provém da matéria, mas a governa, se tornou familiar a tal ponto que o conceito de DNA de certo modo ainda hoje a reflete”, explica o filósofo da USP, numa analogia do conceito antigo com o que hoje se sabe controlar a hereditariedade.
Outra teoria que à primeira vista não parece aproveitável diz respeito ao cosmos, que para os gregos antigos era único, com um sol apenas e todos os planetas girando em torno da Terra. Além dos quatro elementos básicos que compõem a matéria – terra, ar, água e fogo –, tudo o que parece vazio no espaço seria formado por um quinto elemento: o éter. Invisível, inalterável e com seu movimento circular uniforme, o éter definiria o chamado mundo supralunar. Aparentemente divorciado por completo da compreensão cosmológica moderna, o conceito de éter no entanto foi retomado pelo físico Albert Einstein cerca de 23 séculos depois na construção de seu modelo do espaço-tempo, hoje central na astrofísica.
Aristóteles está portanto presente, mesmo que oculto, na forma como o pensamento governa os hábitos intelectuais da civilização atual. Se isso já é verdade para disciplinas mais específicas como biologia e física, é mais ainda para as bases mais amplas tanto da ciência como do pensamento em geral – a lógica, a ética e a metafísica.
Um dos problemas que ocuparam Platão e Aristóteles foi a acrasia, que leva uma pessoa a tomar uma atitude contrária à que sabe ser a correta. Se está claro, por exemplo, que uma moderada dose diária de exercício é suficiente para prevenir uma série de doenças graves e trazer benefícios sensíveis à saúde, por que alguém optaria por passar horas a fio deitado no sofá, se locomover apenas de carro e deixar a academia de lado? Para Sócrates, que foi professor de Platão, a resposta era simples: guiado pela razão, o ser humano só deixa de fazer o que é melhor se lhe faltar o conhecimento.
Platão discordava, e resolveu o dilema dividindo a alma em três partes, representadas por um par de cavalos alados conduzidos por um cocheiro que representa uma delas, a razão. Um dos cavalos, arredio, só pode ser controlado a chicotadas e representa a parte dos apetites. O outro, mais dócil, é a porção irascível da alma. É o impulso, em geral obediente à razão, mas que pode levar a decisões impetuosas em determinadas situações. “O que determina as ações seriam fontes distintas de motivação”, observa Zingano. Platão pensou o conflito como interno à alma, dando lugar à acrasia. Já Aristóteles dedicou um livro de sua Ética ao fenômeno. O embate entre paixão e razão, tão familiar hoje, tem sua matriz nas reflexões dos dois gregos sobre as fontes de motivação para a ação.
Algumas das contribuições do pensamento antigo são essenciais ao desenvolvimento científico. “Aristóteles deixou um conjunto de textos sobre como argumentar, e como essas formas argumentativas podem ser usadas de maneira geral”, conta Roberto Bolzani, também do Departamento de Filosofia da USP. O foco de seu estudo são os diálogos socráticos de Platão, sobretudo no que diz respeito a refutação e persuasão. No grupo de pesquisa, ele compara as ideias do mestre aos modos de argumentação descritos por Aristóteles em seus tópicos. Entre eles estão a indução e a dedução, que se tornaram elementos centrais do método científico aplicado até hoje. “Antes de Aristóteles e Platão não havia um sentido de conhecimento”, explica, “que eles definiram como algo imutável, eternamente verdadeiro e que pode ser demonstrado”. A definição serviu como base para a concepção moderna, que leva em conta o uso de experimentos para testar hipóteses.
Para Bolzani, o encontro entre ética, lógica, metafísica e teoria do conhecimento é natural na busca por apreender o pensamento de Platão e Aristóteles. “A visão de mundo dos dois autores gregos faz com que as coisas estejam ligadas”, afirma. “A busca pelo conhecimento, para eles, é uma busca ética.” Hoje a ciência se tornou cada vez mais compartimentalizada, uma característica que também acaba por definir a filosofia moderna. “Ao contrário do que acontecia na Antiguidade, hoje é possível estudar física sem um sentido moral.”
A relação com o pensamento moderno confere ao projeto, segundo Bolzani, uma certa vivacidade. “Não é um estudo apenas de erudição.” Aristóteles e Platão tiveram um papel importante – e persistente – porque foram grandes sistematizadores do conhecimento. Eles procuraram domar os conceitos mais diversos do Universo, do corpo e da mente, entender seu funcionamento e deixar registrado para uso futuro. Resgatar esses textos, explica Zingano, além de atuar na manutenção da erudição, é uma busca da compreensão de como a cultura ocidental descreve o mundo e enxerga a si mesma. Para isso, ele mantém um calendário rigoroso de seminários que todas as semanas reúnem os integrantes do projeto em torno da análise de um texto. Alguns integrantes do grupo vieram de longe, como um pós-doutorando venezuelano, um italiano, um norte-americano e um francês. Além disso, a estrutura de um grande projeto lhe permite trazer pesquisadores de outros países para apresentar e discutir trabalho em curso, além de mandar estudantes para temporadas de aprendizado e discussão fora de São Paulo e mesmo do Brasil.
A tradução é, de fato, uma parte central do grupo de estudos e acaba sendo indissociável das questões filosóficas. Daniel Lopes, professor de língua e literatura grega na USP, é pesquisador associado do projeto e concentrou sua carreira na tradução de textos gregos, embora tenha formação em filosofia. Nos seminários ele contribui para a discussão de aspectos de tradução e interpretação dos textos, mas sua pesquisa particular diz respeito a um problema filosófico específico: o hedonismo nos diálogos Górgias e Protágoras, de Platão. Ele publicou no ano passado a tradução do primeiro pela editora Perspectiva e está traduzindo o segundo. “No Górgias a personagem Sócrates condena o prazer e noProtágoras ele parece considerar prazeres e dores como o critério para ação”, explica. Lopes ainda não terminou a análise dos textos, mas por enquanto acredita que a contradição é apenas aparente, pois Sócrates não se compromete com a tese hedonista do Protágoras. “As opções do tradutor na interpretação do texto fazem toda a diferença”, conclui.À medida que cria um ambiente de investigação e torna a USP um centro reconhecido no estudo de filosofia antiga, Zingano cria uma cultura no departamento. Num primeiro momento, os alunos acharam estranho ver um professor encher o quadro de escrita grega durante as aulas. “Hoje já ficou natural”, afirma o filósofo, que considera essencial integrar a expressão da língua ao pensamento.
Para quem acha estranha a ideia de um grupo internacional constantemente debruçado sobre textos escritos há mais de 20 séculos numa língua morta, fica o recado: seu conteúdo está longe de ultrapassado, quando se olha a fundo.

“Decretem nossa extinção e nos enterrem aqui”


A declaração de morte coletiva feita por um grupo de Guaranis Caiovás demonstra a incompetência do Estado brasileiro para cumprir a Constituição de 1988 e mostra que somos todos cúmplices de genocídio – uma parte de nós por ação, outra por omissão

Eliane Brum
Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista (Foto: ÉPOCA)
- Pedimos ao Governo e à Justiça Federal para não decretar a ordem de despejo/expulsão, mas decretar nossa morte coletiva e enterrar nós todos aqui. Pedimos, de uma vez por todas, para decretar nossa extinção/dizimação total, além de enviar vários tratores para cavar um grande buraco para jogar e enterrar nossos corpos. Este é o nosso pedido aos juízes federais. 
O trecho pertence à carta de um grupo de 170 indígenas que vivem à beira de um rio no município de Iguatemi, no Mato Grosso do Sul, cercados por pistoleiros. As palavras foram ditadas em 8 de outubro ao conselho Aty Guasu (assembleia dos Guaranis Caiovás), após receberem a notícia de que a Justiça Federal decretou sua expulsão da terra. São 50 homens, 50 mulheres e 70 crianças. Decidiram ficar. E morrer como ato de resistência – morrer com tudo o que são, na terra que lhes pertence.
Há cartas, como a de Pero Vaz de Caminha, de 1º de maio de 1500, que são documentos de fundação do Brasil: fundam uma nação, ainda sequer imaginada, a partir do olhar estrangeiro do colonizador sobre a terra e sobre os habitantes que nela vivem. E há cartas, como a dos Guaranis Caiovás, escritas mais de 500 anos depois, que são documentos de falência. Não só no sentido da incapacidade do Estado-nação constituído nos últimos séculos de cumprir a lei estabelecida na Constituição hoje em vigor, mas também dos princípios mais elementares que forjaram nosso ideal de humanidade na formação do que se convencionou chamar de “o povo brasileiro”. A partir da carta dos Guaranis Caiovás, tornamo-nos cúmplices de genocídio. Sempre fomos, mas tornar-se é saber que se é. 
Os Guaranis Caiovás avisam-nos por carta que, depois de tantas décadas de luta para viver, descobriram que agora só lhes resta morrer. Avisam a todos nós que morrerão como viveram: coletivamente, conjugados no plural. 
Nos trechos mais pungentes de sua carta de morte, os indígenas afirmam: 
- Queremos deixar evidente ao Governo e à Justiça Federal que, por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso território antigo. Não acreditamos mais na Justiça Brasileira. A quem vamos denunciar as violências praticadas contra nossas vidas? Para qual Justiça do Brasil? Se a própria Justiça Federal está gerando e alimentando violências contra nós. Nós já avaliamos a nossa situação atual e concluímos que vamos morrer todos, mesmo, em pouco tempo. Não temos e nem teremos perspectiva de vida digna e justa tanto aqui na margem do rio quanto longe daqui. Estamos aqui acampados a 50 metros do rio Hovy, onde já ocorreram 4 mortes, sendo que 2 morreram por meio de suicídio, 2 em decorrência de espancamento e tortura de pistoleiros das fazendas. Moramos na margem deste rio Hovy há mais de um ano. Estamos sem assistência nenhuma, isolados, cercados de pistoleiros e resistimos até hoje. Comemos comida uma vez por dia. Tudo isso passamos dia a dia para recuperar o nosso território antigo Pyleito Kue/Mbarakay. De fato, sabemos muito bem que no centro desse nosso território antigo estão enterrados vários de nossos avôs e avós, bisavôs e bisavós, ali está o cemitérios de todos os nossos antepassados. Cientes desse fato histórico, nós já vamos e queremos ser mortos e enterrados junto aos nossos antepassados aqui mesmo onde estamos hoje. (…) Não temos outra opção, esta é a nossa última decisão unânime diante do despacho da Justiça Federal de Navirai-MS.
Como podemos alcançar o desespero de uma decisão de morte coletiva? Não podemos. Não sabemos o que é isso. Mas podemos conhecer quem morreu, morre e vai morrer por nossa ação – ou inação. E, assim, pelo menos aproximar nossos mundos, que até hoje têm na violência sua principal intersecção.
Desde o ínicio do século XX, com mais afinco a partir do Estado Novo (1937-45) de Getúlio Vargas, iniciou-se a ocupação pelos brancos da terra dos Guaranis Caiovás. Os indígenas, que sempre viveram lá, começaram a ser confinados em reservas pelo governo federal, para liberar suas terras para os colonos que chegavam, no que se chamou de “A Grande Marcha para o Oeste”. A visão era a mesma que até hoje persiste no senso comum: “terra desocupada” ou “não há ninguém lá, só índio”.  
Era de gente que se tratava, mas o que se fez na época foi confiná-los como gado, num espaço de terra pequeno demais para que pudessem viver ao seu modo – ou, na palavra que é deles, Teko Porã (“o Bem Viver”). Com a chegada dos colonos, os indígenas passaram a ter três destinos: ou as reservas ou trabalhar nas fazendas como mão de obra semiescrava ou se aprofundar na mata. Quem se rebelou foi massacrado. Para os Guaranis Caiovás, a terra a qual pertencem é a terra onde estão sepultados seus antepassados. Para eles, a terra não é uma mercadoria – a terra é. 
Na ditadura militar, nos anos 60 e 70, a colonização do Mato Grosso do Sul se intensificou. Um grande número de sulistas, gaúchos mais do que todos, migrou para o território para ocupar a terra dos índios. Outros despacharam peões e pistoleiros, administrando a matança de longe, bem acomodados em suas cidades de origem, onde viviam – e vivem até hoje – como “cidadãos de bem”, fingindo que não têm sangue nas mãos.
Com a redemocratização do país, a Constituição de 1988 representou uma mudança de olhar e uma esperança de justiça. Os territórios indígenas deveriam ser demarcados pelo Estado no prazo de cinco anos. Como sabemos, não foi. O processo de identificação, declaração, demarcação e homologação das terras indígenas tem sido lento, sensível a pressões dos grandes proprietários de terras e da parcela retrógrada do agronegócio. E, mesmo naquelas terras que já estão homologadas, em muitas o governo federal não completou a desintrusão – a retirada daqueles que ocupam a terra, como posseiros e fazendeiros –, aprofundando os conflitos.

Nestas últimas décadas testemunhamos o genocídio dos Guaranis Caiovás. Em geral, a situação dos indígenas brasileiros é vergonhosa. A dos 43 mil Guaranis Caiovás, o segundo grupo mais numeroso do país, é considerada a pior de todas. Confinados em reservas como a de Dourados, onde cerca de 14 mil, divididos em 43 grupos familiares, ocupam 3,5 mil hectares, eles encontram-se numa situação de colapso. Sem poder viver segundo a sua cultura, totalmente encurralados, imersos numa natureza degradada, corroídos pelo alcoolismo dos adultos e pela subnutrição das crianças, os índices de homicídio da reserva são maiores do que em zonas em estado de guerra.  
A situação em Dourados é tão aterradora que provocou a seguinte afirmação da vice-procuradora-geral da República, Deborah Duprat: “A reserva de Dourados é talvez a maior tragédia conhecida da questão indígena em todo o mundo”. Segundo um relatório do Conselho Indigenista Missionário (CIMI), que analisou os dados de 2003 a 2010, o índice de assassinatos na Reserva de Dourados é de 145 para cada 100 mil habitantes – no Iraque, o índice é de 93 assassinatos para cada 100 mil. Comparado à média brasileira, o índice de homicídios da Reserva de Dourados é 495% maior.  
A cada seis dias, um jovem Guarani Caiová se suicida. Desde 1980, cerca de 1500 tiraram a própria vida. A maioria deles enforcou-se num pé de árvore. Entre as várias causas elencadas pelos pesquisadores está o fato de que, neste período da vida, os jovens precisam formar sua família e as perspectivas de futuro são ou trabalhar na cana de açúcar ou virar mendigos. O futuro, portanto, é um não ser aquilo que se é. Algo que, talvez para muitos deles, seja pior do que a morte. 
Um relatório do Ministério da Saúde mostrou, neste ano, o que chamou de “dados alarmantes, se destacando tanto no cenário nacional quanto internacional”. Desde 2000, foram 555 suicídios, 98% deles por enforcamento, 70% cometidos por homens, a maioria deles na faixa dos 15 aos 29 anos. No Brasil, o índice de suicídios em 2007 foi de 4,7 por 100 mil habitantes. Entre os indígenas, no mesmo ano, foi de 65,68 por 100 mil. Em 2008, o índice de suicídios entre os Guaranis Caiovás chegou a 87,97 por 100 mil, segundo dados oficiais. Os pesquisadores acreditam que os números devem ser ainda maiores, já que parte dos suicídios é escondida pelos grupos familiares por questões culturais. 
As lideranças Guaranis Caiovás não permaneceram impassíveis diante deste presente sem futuro. Começaram a se organizar para denunciar o genocídio do seu povo e reivindicar o cumprimento da Constituição. Até hoje, mais de 20 delas morreram assassinadas por ferirem os interesses privados de fazendeiros da região, a começar por Marçal de Souza, em 1983, cujo assassinato ganhou repercussão internacional. Ao mesmo tempo, grupos de Guaranis Caiovás abandonaram o confinamento das reservas e passaram a buscar suas tekohá, terras originais, na luta pela retomada do território e do direito à vida. Alguns grupos ocuparam fundos de fazendas, outros montaram 30 acampamentos à beira da estrada, numa situação de absoluta indignidade. Tanto nas reservas quanto fora delas, a desnutrição infantil é avassaladora. 
A trajetória dos Guaranis Caiovás que anunciaram sua morte coletiva ilustra bem o destino ao qual o Estado brasileiro os condenou. Homens, mulheres e crianças empreenderam um caminho em busca da terra tradicional, localizada às margens do Rio Hovy, no município de Iguatemi (MS). Acamparam em sua terra no dia 8 de agosto de 2011, nos fundos de fazendas. Em 23 de agosto foram atacados e cercados por pistoleiros, a mando dos fazendeiros. Em um ano, os pistoleiros já derrubaram dez vezes a ponte móvel feitas por eles para atravessar um rio com 30 metros de largura e três de fundura. Em um ano, dois indígenas foram torturados e mortos pelos pistoleiros, outros dois se suicidaram.  
Em tentativas anteriores de recuperação desta mesma terra, os Guaranis Caiovás já tinham sido espancados e ameaçados com armas de fogo. Alguns deles tiveram seus olhos vendados e foram jogados na beira da estrada. Em outra ocasião, mulheres, velhos e crianças tiveram seus braços e pernas fraturados. O que a Justiça Federal fez? Deferiu uma ordem de despejo. Em nota, a FUNAI (Fundação Nacional do Índio) afirmou que “está trabalhando para reverter a decisão”. 
Os Guaranis Caiovás estão sendo assassinados há muito tempo, de todas as formas disponíveis, as concretas e as simbólicas. “A impunidade é a maior agressão cometida contra eles”, afirma Flávio Machado, coordenador do CIMI no Mato Grosso do Sul. Nas últimas décadas, há pelo menos duas formas interligadas de violência no processo de recuperação da terra tradicional dos indígenas: uma privada, das milícias de pistoleiros organizadas pelos fazendeiros; outra do Estado, perpetrada pela Justiça Federal, na qual parte dos juízes, sem qualquer conhecimento da realidade vivida na região, toma decisões que não só compactuam com a violência , como a acirram.  
“Quando os pistoleiros não conseguem consumar os despejos e massacres truculentos dos indígenas, os fazendeiros contratam advogados para conseguir a ordem de despejo na Justiça”, afirma Egon Heck, indigenista e cientista político, num artigo publicado em relatório do CIMI. “No momento em que ocorre a ordem de despejo, os agentes policiais agem de modo similar ao dos pistoleiros, visto que utilizam armas pesadas, queimam as ocas, ameaçam e assustam as crianças, mulheres e idosos.”  
Ao fundo, o quadro maior: os sucessivos governos que se alternaram no poder após a Constituição de 1988 foram incompetentes para cumpri-la. Ao final de seus dois mandatos, Lula reconheceu que deixava o governo com essa dívida junto ao povo Guarani Caiová. Legava a tarefa à sua sucessora, Dilma Rousseff. Os indígenas escreveram, então, uma carta: “Presidente Dilma, a questão das nossas terras já era para ter sido resolvida há décadas. Mas todos os governos lavaram as mãos e foram deixando a situação se agravar. Por ultimo, o ex-presidente Lula prometeu, se comprometeu, mas não resolveu. Reconheceu que ficou com essa dívida para com nosso povo Guarani Caiová e passou a solução para suas mãos. E nós não podemos mais esperar. Não nos deixe sofrer e ficar chorando nossos mortos quase todos os dias. Não deixe que nossos filhos continuem enchendo as cadeias ou se suicidem por falta de esperança de futuro (…) Devolvam nossas condições de vida que são nossos tekohá, nossas terras tradicionais. Não estamos pedindo nada demais, apenas os nossos direitos que estão nas leis do Brasil e internacionais”. 
A declaração de morte dos Guaranis Caiovás ecoou nas redes sociais na semana passada. Gerou uma comoção. Não é a primeira vez que indígenas anunciam seu desespero e seu genocídio. Em geral, quase ninguém escuta, para além dos mesmos de sempre, e o que era morte anunciada vira morte consumada. Talvez a diferença desta carta é o fato de ela ecoar algo que é repetido nas mais variadas esferas da sociedade brasileira, em ambientes os mais diversos, considerado até um comentário espirituoso em certos espaços intelectualizados: a ideia de que a sociedade brasileira estaria melhor sem os índios. 
Desqualificar os índios, sua cultura e a situação de indignidade na qual vive boa parte das etnias é uma piada clássica em alguns meios, tão recorrente que se tornou quase um clichê. Para parte da elite escolarizada, apesar do esforço empreendido pelos antropólogos, entre eles Lévi-Strauss, as culturas indígenas ainda são vistas como “atrasadas”, numa cadeia evolutiva única e inescapável entre a pedra lascada e o Ipad – e não como uma escolha diversa e um caminho possível. Assim, essa parcela da elite descarta, em nome da ignorância, a imensa riqueza contida na linguagem, no conhecimento e nas visões de mundo das 230 etnias indígenas que ainda sobrevivem por aqui. 
Toda a História do Brasil, a partir da “descoberta” e da colonização, é marcada pelo olhar de que o índio é um entrave no caminho do “progresso” ou do “desenvolvimento”. Entrave desde os primórdios – primeiro, porque teve a deselegância de estar aqui antes dos portugueses; em seguida, porque se rebelava ao ser escravizado pelos invasores europeus. A sociedade brasileira se constituiu com essa ideia e ainda que a própria sociedade tenha mudado em muitos aspectos, a concepção do índio como um entrave persiste. E persiste de forma impressionante, não só para uma parte significativa da população, mas para setores do Estado, tanto no governo atual quanto nas gestões passadas.  
 “Entraves” precisam ser removidos. E têm sido, de várias maneiras, como a História, a passada e a presente, nos mostra. Talvez essa seja uma das explicações possíveis para o impacto da carta de morte ter alcançado um universo maior de pessoas. Desta vez, são os índios que nos dizem algo que pode ser compreendido da seguinte forma: “É isso o que vocês querem? Nos matar a todos? Então nós decidimos: vamos morrer”. Ao devolver o desejo a quem o deseja, o impacto é grande.  
É importante lembrar que carta é palavra. A declaração de morte coletiva surge como palavra dita. Por isso precisamos compreender, pelo menos um pouco, o que é a palavra para os Guaranis Caiovás. Em um texto muito bonito, intitulado Ñe'ẽ – a palavra alma, a antropóloga Graciela Chamorro, da Universidade Federal da Grande Dourados, nos dá algumas pistas: 
“A palavra é a unidade mais densa que explica como se trama a vida para os povos chamados guarani e como eles imaginam o transcendente. As experiências da vida são experiências de palavra. Deus é palavra. (...) O nascimento, como o momento em que a palavra se senta ou provê para si um lugar no corpo da criança. A palavra circula pelo esqueleto humano. Ela é justamente o que nos mantém em pé, que nos humaniza. (...) Na cerimônia de nominação, o xamã revelará o nome da criança, marcando com isso a recepção oficial da nova palavra na comunidade. (...) As crises da vida – doenças, tristezas, inimizades etc. – são explicadas como um afastamento da pessoa de sua palavra divinizadora. Por isso, os rezadores e as rezadoras se esforçam para ‘trazer de volta’, ‘voltar a sentar’ a palavra na pessoa, devolvendo-lhe a saúde.(...) Quando a palavra não tem mais lugar ou assento, a pessoa morre e torna-se um devir, um não-ser, uma palavra-que-não-é-mais. (...) Ñe'ẽ e ayvu podem ser traduzidos tanto como ‘palavra’ como por ‘alma’, com o mesmo significado de ‘minha palavra sou eu’ ou ‘minha alma sou eu’. (...) Assim, alma e palavra podem adjetivar-se mutuamente, podendo-se falar em palavra-alma ou alma-palavra, sendo a alma não uma parte, mas a vida como um todo.” 
A fala, diz o antropólogo Spensy Pimentel, pesquisador do Centro de Estudos Ameríndios da Universidade de São Paulo, é a parte mais sublime do ser humano para os Guaranis Caiovás. “A palavra é o cerne da resistência. Tem uma ação no mundo – é uma palavra que age. Faz as coisas acontecerem, faz o futuro. O limite entre o discurso e a profecia é tênue.”
Se a carta de Pero Vaz de Caminha marca o nascimento do Brasil pela palavra escrita, é interessante pensar o que marca a carta dos Guaranis Caiovás mais de 500 anos depois. Na carta-fundadora, é o invasor/colonizador/conquistador/estrangeiro quem estranha e olha para os índios, para sua cultura e para sua terra. Na dos Guaranis Caiovás, são os índios que olham para nós. O que nos dizem aqueles que nos veem? (Ou o que veem aqueles que nos dizem?)
A declaração de morte dos Guaranis Caiovás é “palavra que age”. Antes que o espasmo de nossa comoção de sofá migre para outra tragédia, talvez valha a pena uma última pergunta: para nós, o que é a palavra?
Eliane Brum, jornalista, escritora e documentarista. Ganhou mais de 40 prêmios nacionais e internacionais de reportagem. É autora de um romance - Uma Duas (LeYa) - e de três livros de reportagem: Coluna Prestes – O Avesso da Lenda (Artes e Ofícios), A Vida Que Ninguém Vê (Arquipélago Editorial, Prêmio Jabuti 2007) e O Olho da Rua (Globo). E codiretora de dois documentários: Uma História Severina e Gretchen Filme Estrada