|
segunda-feira, 31 de dezembro de 2012
MAIS UMA PROVA DA BARBÁRIE QUE GOVERNA O ESTADO DE ISRAEL
Na luta pela mudança do padrão de produção
“O importante é saber de quem é a responsabilidade pelo rejeito que vai parar no lixão ou no aterro. Quem paga pelo rejeito ir até lá? Somos nós ou o fabricante tem a sua responsabilidade?”, questiona Elisabeth Grimberg
Graziela Wolfart e Márcia Junges
Graziela Wolfart e Márcia Junges
Elisabeth Grimberg é coordenadora executiva do Instituto Pólis e da área de resíduos sólidos. Também compõe a coordenação do Fórum Lixo eCidadania da Cidade da Cidade de São Paulo e a coordenação da Coalizão Nacional contra a Incineração de Lixo. É mestre em Sociologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – UFRGS.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual sua opinião sobre a captação de biogás como uma das possibilidades de se lucrar com o lixo, que o mercado de carbono abre para as empresas do setor?
Elisabeth Grimberg – O uso do biodigestor para captar metano pode ser uma boa solução para o resíduo úmido, tendo como subproduto – ao aproveitar o processamento desse resíduo – a geração tanto de adubo quanto da captura do metano, gerando energia. Esse é o aspecto central. Trata-se de uma boa solução tecnológica para o resíduo úmido, sobras de alimentos, e tem esse subproduto, que é a captação do metano para a geração de energia. Será preciso, sim, implantar um sistema de coleta domiciliar diferenciada eficiente, em que não se misture resíduos secos (recicláveis), úmidos e rejeitos no momento do descarte.
IHU On-Line – De forma geral, qual sua avaliação sobre a Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS? Quais os principais avanços e limites?
Elisabeth Grimberg – O fato da PNRS ter sido aprovada e já regulamentada em 2010 por si só já é uma conquista em termos de construção compartilhada com atores da sociedade civil. Foram 19 anos de luta para que isso se efetivasse. Além disso, há avanços em termos de gestão e destinação de resíduos: a introdução de novos atores na questão da responsabilidade pela gestão dos resíduos. Aqui me refiro a responsabilização do fabricante, do importador, do distribuidor e do comerciante pelo custeio da coleta seletiva dos resíduos secos domiciliares, além dos seis resíduos especiais tais como pilhas, baterias, eletroeletrônicos, lâmpadas fluorescentes, pneus etc. Outro avanço é que os municípios que construírem políticas e formas de estruturar a rede de catadores terão acesso a recursos da União em função dessa integração dos catadores, outro ator central para a implantação de um novo padrão de destinação de resíduos sólidos, reconhecido pela nova lei como estratégico.
IHU On-Line – Como vê a possibilidade de adiar as metas da Política Nacional de Resíduos Sólidos – PNRS, anunciada recentemente pelo governo federal (http://bit.ly/UTd6yV)?
Elisabeth Grimberg – Essa possibilidade de adiamento das metas envolvendo a erradicação dos lixões até 2014 é bastante grave, porque eu considero um desestímulo à busca da capacitação e de todos os mecanismos que viabilizariam a implementação de um novo paradigma de gestão, que a política traz claramente indicado e instituído. Adiar as metas torna lento o processo, fazendo com que tanto o setor privado como o setor público não se apresse mais em implantar um modelo tecnológico voltado para a recuperação integral dos resíduos passíveis de reaproveitamento, que representa 90% do total gerado.
IHU On-Line – Menos de 10% das cidades entregaram seus Planos Municipais de Gestão Integrada de Resíduos – PMGIRS e, por consequência, segundo a lei, não podem receber verbas federais. Qual é a alternativa?
Elisabeth Grimberg – O PMGIRS é realmente importante, pois traz uma série de elementos estruturantes de uma política que permitirá uma ação planejada, otimizando recursos e integrando o conjunto de atores envolvidos na cadeia – a administração municipal, o setor empresarial, os catadores e a própria população, o que deverá garantir resultados positivos. No entanto, o fato de apenas 10% dos municípios terem feito seus planos não pode ser uma razão suficiente para suspender a meta para o fechamento de lixões e para só serem destinados rejeitos nos aterros sanitários até 2014, porque os outros 90% de resíduos podem ser aproveitados na cadeia da compostagem, da biodigestão, da reciclagem, como dito acima. Não ter acesso aos recursos da União pode ser interessante para os municípios se agilizarem, se movimentarem e procurarem formas de fazer a “lição de casa” e, então, receber esses valores.
IHU On-Line – Quais os desafios que se colocam à adesão dos municípios à coleta seletiva dos resíduos úmidos domiciliares?
Elisabeth Grimberg – A coleta seletiva é a coleta dos resíduos separados em três categorias: úmido, seco e rejeito. Em média, 60% dos resíduos é úmido. É atribuição da prefeitura estabelecer como funcionará o sistema de coleta seletiva de todos os tipos de resíduos, mas não de operar a coleta de todos os resíduos. Sua responsabilidade é a coleta diferenciada do resíduo úmido. Já o custeio da coleta dos resíduos secos é atribuição dos fabricantes, importadores, distribuidores e comerciantes, que poderão remunerar a prefeitura para tal, o que está previsto no parágrafo sétimo do Artigo 33 da lei. Dito isso, a dificuldade dos municípios está na necessidade de uma maior apropriação e conhecimento de modelos tecnológicos existentes, como a combinação da biodigestão e da compostagem. E o rejeito é uma fração dos resíduos que, se submetido a uma análise mais detalhada, pode perfeitamente identificar quem são os fabricantes destes produtos e, portanto, de quem é a responsabilidade pelo rejeito, permitindo também o rateio do custo de sua destinação para aterros sanitários. Quem deve pagar pelo rejeito ir até lá? O munícipe ou o fabricante tem a sua responsabilidade?
IHU On-Line – O que é preciso para as empresas e a sociedade repensarem o chamado “padrão de produção” tendo em conta o problema do lixo? O que está em jogo aqui?
Elisabeth Grimberg – Isso é bem importante. Fala-se muito de que é preciso reduzir o consumo. Mas as pessoas não têm opção de adquirir produtos em recipientes retornáveis, como o vidro, que pode ser reutilizável e para a mesma finalidade. Outra coisa envolvida aqui é a chamada obsoletização programada: os produtos já são feitos para terem uma vida útil curta. Isso tudo começou depois da crise de 1929, afinal era preciso produzir mais, para gerar mais consumo, o que ajudaria a sair da crise. Por questões do sistema capitalista em que vivemos, para se ter lucro, foi preciso mudar o padrão de produção para o padrão descartável a fim de se poder consumir com mais velocidade. Isso teria hoje que ser redefinido, o que não pode ser dissociado de uma discussão muito mais profunda e ampla, envolvendo o próprio modelo de desenvolvimento que temos.
IHU On-Line – O que deve mudar em relação à cultura política que rege a gestão de resíduos? O que é preciso para deixarmos de tratar resíduos reaproveitáveis como lixo?
Elisabeth Grimberg – Não podemos esquecer que a economia não anda separada das decisões políticas. O “padrão de produção” é formado por empresas envolvidas na produção, distribuição etc. que funcionam segundo normas definidas pelo Estado, que por sua vez pode exigir outras formas de atuação do mercado de maneira a garantir uma linha de produção ambientalmente sustentável.
A hora do PT: um ano novo digno desse nome
Os fatos caminham à frente das idéias. Mas é preciso ajudá-los com a materialidade destas para que a história possa girar a sua roda e sancionar os novos sujeitos, que por sua vez vão protagonizar os fatos fundadores do período seguinte. Assim sucessivamente.
O nascimento de um partido -- um verdadeiro partido -- representa de certa forma a fusão desses diferentes momentos. É ao mesmo tempo um fato, uma ideia e um sujeito.
Mas até quando?
A pergunta reverbera o divisor vivido hoje pelo PT. Em que medida o partido ainda persiste como portador do tríplice mandato da história?
Mais que isso: quais forças e que lideranças serão capazes de conduzir hoje a renovação desse mandato no horizonte dos desafios marmorizados na crise da ordem neoliberal?
Fundado em fevereiro de 1980, o PT completa 33 anos em 2013.
Quase um terço de sua existência se deu no comando da Nação. Isso propiciou aos quadros dirigentes um acervo único de experiência nas condições da política brasileira.
Com Dilma, o PT completa o terceiro mandato presidencial.Não se pode dizer mais, como se dizia em 2002, que esse partido não sabia governar o capitalismo brasileiro.
O aprendizado teve um preço e marcou o rosto e a alma petista. Ademais da experiência ímpar, ele gerou, também, um escopo de responsabilidades e compromissos cujo peso tende a frear o ímpeto renovador da legenda.
A frase 'o interesse dos gabinetes passa a predominar sobre as inquietações das bases' serve indistintamente a legendas progressistas que ascenderam ao poder.
Tampouco é estranha ao PT.
O quanto predominará no enfretamento da pauta pre-agendada para 2013 e 2014 é a interrogação que paira não apenas sobre o destino do partido.
Não se trata de questão particular aos petistas. Ela fala à democracia e ao destino do desenvolvimento na próxima década. Nesse sentido à presente e futura geração de brasileiros.
O PT enfrentará de agora em diante uma situação singular.
Seu peso específico na sociedade nunca foi tão relevante. A disjuntiva é única na história nacional: se esse partido progressista souber avançar à contrapelo da estagnação inerente à passagem pelo poder, mudar o horizonte brasileiro; se tropeçar ou se acanhar, seu fracasso será também em grande medida o fracasso da Nação.
A calcificação tem sido a regra histórica. Mas a história não é fatalidade. E o PT decide sua sorte em meio a contrapesos poderosos.
De alguma forma a trajetória do partido e a das forças progressistas reordenadas ao seu redor foi condicionada nessa última década por dois impulsos.
Um primeiro, de predominância defensiva, pode ser arbitrariamente delimitado entre a chegada ao governo, em 2002, até a reeleição, em 2006. O segundo, de transição, respondeu ao colapso da ordem neoliberal, partir de 2008, até os nossos dias.
Colapso cambial e cerco conservador marcaram o primeiro ciclo, de natureza quase reflexa, encerrado na reeleição de 2006, em meio às denúncias do chamado mensalão.
Inicia-se, então, e de novo com a ressalva da demarcação rudimentar, a travessia de uma agenda econômica defensiva para um registro de maior margem de manobra ideológica, ofertado ao partido pela desordem neoliberal capitalista.
A condenação sem provas de algumas de suas mais expressivas lideranças na Ação Penal 470, num grotesco episódio do Direito que maculou o Judiciário e anexou o STF ao ativismo midiático conservador, adiciona um complicador e uma ruptura a esse percurso,a partir de 2013.
Em que medida o partido saberá andar no trilho duplo, que permitirá encadear a reação ao arbítrio ao impulso renovador de sua agenda? Sem se perder na batalha do dia anterior, tampouco sacrificar e desguarnecer sua estrutura de quadros que ainda lhe são imprescindíveis?
Trata-se de um teste de superação da máquina e dos dirigentes petistas. Um teste único na história da esquerda brasileira. Vale a pena vivenciá-lo de forma engajada.
Nem de longe é um teste para ser travado exclusivamente em acertos de conta internos.
Seu êxito requer um aggionamento da vida democrática do partido, desde a base, até a reativaçao da caldeira intelectual, capaz --juntos-- de sacudir a modorra percolada dos gabinetes.
A questão é saber quem conseguirá catalisar essas transformações para dar um rosto novo ao PT.
Essa liderança não está pronta. O que pode ser dramático: temos agendas sem um núcleo porta-voz de peso. Mas também pode ser auspicioso:abre-se um espaço de renovação programática e militante.
Decorre daí a questão que nos leva de volta ao começo da conversa: em que medida o PT reúne energias e inquietações para voltar a ser, ao mesmo tempo, um fato, uma ideia e um sujeito do próximo ciclo do desenvolvimento brasileiro?
Se os desafios são imensos --emersos em um vale tudo do desespero midiático conservador- os trunfos de partida não são menores.
A consciência do divisor histórico sacode a modorra partidária em múltiplas frentes. O novo desponta em distintas dimensões.
O novo é Márcio Pochmann na direção da Fundação Perseu Abramo, que tem garra e talento para fazer desse tink thank petista, finalmente, um centro de reflexão da agenda da esquerda brasileira no século 21.
O novo é a caravana da cidadania de Lula, que deve percorrer e galvanizar o país --e afrontar o conservadorismo-- a partir de fevereiro próximo.
O novo é a mídia alternativa ser reconhecida de uma vez por todas --como já faz a direção atual do PT,sob o comando de Rui Falcão- como parceira indispensável na transição para um desenvolvimento que o país urge e pode construir, em meio ao colapso neoliberal e a sabotagem conservadora.
O novo é Fernando Haddad em SP ecoando o desassombro de administrações progressistas em todo o Brasil.
O novo é fazer da maior metrópole brasileira um laboratório de renovação de políticas e práticas públicas de abrangência e ousadia equivalentes ao tamanho do anseio brasileiro por democracia e justiça social.
O novo recobre de sentido histórico a virada mecânica do calendário.
Que 2013 seja um Ano Novo digno desse nome.
O nascimento de um partido -- um verdadeiro partido -- representa de certa forma a fusão desses diferentes momentos. É ao mesmo tempo um fato, uma ideia e um sujeito.
Mas até quando?
A pergunta reverbera o divisor vivido hoje pelo PT. Em que medida o partido ainda persiste como portador do tríplice mandato da história?
Mais que isso: quais forças e que lideranças serão capazes de conduzir hoje a renovação desse mandato no horizonte dos desafios marmorizados na crise da ordem neoliberal?
Fundado em fevereiro de 1980, o PT completa 33 anos em 2013.
Quase um terço de sua existência se deu no comando da Nação. Isso propiciou aos quadros dirigentes um acervo único de experiência nas condições da política brasileira.
Com Dilma, o PT completa o terceiro mandato presidencial.Não se pode dizer mais, como se dizia em 2002, que esse partido não sabia governar o capitalismo brasileiro.
O aprendizado teve um preço e marcou o rosto e a alma petista. Ademais da experiência ímpar, ele gerou, também, um escopo de responsabilidades e compromissos cujo peso tende a frear o ímpeto renovador da legenda.
A frase 'o interesse dos gabinetes passa a predominar sobre as inquietações das bases' serve indistintamente a legendas progressistas que ascenderam ao poder.
Tampouco é estranha ao PT.
O quanto predominará no enfretamento da pauta pre-agendada para 2013 e 2014 é a interrogação que paira não apenas sobre o destino do partido.
Não se trata de questão particular aos petistas. Ela fala à democracia e ao destino do desenvolvimento na próxima década. Nesse sentido à presente e futura geração de brasileiros.
O PT enfrentará de agora em diante uma situação singular.
Seu peso específico na sociedade nunca foi tão relevante. A disjuntiva é única na história nacional: se esse partido progressista souber avançar à contrapelo da estagnação inerente à passagem pelo poder, mudar o horizonte brasileiro; se tropeçar ou se acanhar, seu fracasso será também em grande medida o fracasso da Nação.
A calcificação tem sido a regra histórica. Mas a história não é fatalidade. E o PT decide sua sorte em meio a contrapesos poderosos.
De alguma forma a trajetória do partido e a das forças progressistas reordenadas ao seu redor foi condicionada nessa última década por dois impulsos.
Um primeiro, de predominância defensiva, pode ser arbitrariamente delimitado entre a chegada ao governo, em 2002, até a reeleição, em 2006. O segundo, de transição, respondeu ao colapso da ordem neoliberal, partir de 2008, até os nossos dias.
Colapso cambial e cerco conservador marcaram o primeiro ciclo, de natureza quase reflexa, encerrado na reeleição de 2006, em meio às denúncias do chamado mensalão.
Inicia-se, então, e de novo com a ressalva da demarcação rudimentar, a travessia de uma agenda econômica defensiva para um registro de maior margem de manobra ideológica, ofertado ao partido pela desordem neoliberal capitalista.
A condenação sem provas de algumas de suas mais expressivas lideranças na Ação Penal 470, num grotesco episódio do Direito que maculou o Judiciário e anexou o STF ao ativismo midiático conservador, adiciona um complicador e uma ruptura a esse percurso,a partir de 2013.
Em que medida o partido saberá andar no trilho duplo, que permitirá encadear a reação ao arbítrio ao impulso renovador de sua agenda? Sem se perder na batalha do dia anterior, tampouco sacrificar e desguarnecer sua estrutura de quadros que ainda lhe são imprescindíveis?
Trata-se de um teste de superação da máquina e dos dirigentes petistas. Um teste único na história da esquerda brasileira. Vale a pena vivenciá-lo de forma engajada.
Nem de longe é um teste para ser travado exclusivamente em acertos de conta internos.
Seu êxito requer um aggionamento da vida democrática do partido, desde a base, até a reativaçao da caldeira intelectual, capaz --juntos-- de sacudir a modorra percolada dos gabinetes.
A questão é saber quem conseguirá catalisar essas transformações para dar um rosto novo ao PT.
Essa liderança não está pronta. O que pode ser dramático: temos agendas sem um núcleo porta-voz de peso. Mas também pode ser auspicioso:abre-se um espaço de renovação programática e militante.
Decorre daí a questão que nos leva de volta ao começo da conversa: em que medida o PT reúne energias e inquietações para voltar a ser, ao mesmo tempo, um fato, uma ideia e um sujeito do próximo ciclo do desenvolvimento brasileiro?
Se os desafios são imensos --emersos em um vale tudo do desespero midiático conservador- os trunfos de partida não são menores.
A consciência do divisor histórico sacode a modorra partidária em múltiplas frentes. O novo desponta em distintas dimensões.
O novo é Márcio Pochmann na direção da Fundação Perseu Abramo, que tem garra e talento para fazer desse tink thank petista, finalmente, um centro de reflexão da agenda da esquerda brasileira no século 21.
O novo é a caravana da cidadania de Lula, que deve percorrer e galvanizar o país --e afrontar o conservadorismo-- a partir de fevereiro próximo.
O novo é a mídia alternativa ser reconhecida de uma vez por todas --como já faz a direção atual do PT,sob o comando de Rui Falcão- como parceira indispensável na transição para um desenvolvimento que o país urge e pode construir, em meio ao colapso neoliberal e a sabotagem conservadora.
O novo é Fernando Haddad em SP ecoando o desassombro de administrações progressistas em todo o Brasil.
O novo é fazer da maior metrópole brasileira um laboratório de renovação de políticas e práticas públicas de abrangência e ousadia equivalentes ao tamanho do anseio brasileiro por democracia e justiça social.
O novo recobre de sentido histórico a virada mecânica do calendário.
Que 2013 seja um Ano Novo digno desse nome.
Postado por Saul Leblon às 12:24
E a modernização voltou ...(sobre a nova diretoria do Flamengo)
DEIXA FALAR: O MEGAFONE DO ESPORTE
E a modernização voltou ...(sobre a nova diretoria do Flamengo)
A eleição da nova diretoria do Flamengo fez reaparecer o velho discurso da modernidade. O presidente eleito, Eduardo Bandeira de Mello (ex-diretor BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento), montou uma equipe composta de pesos pesados do empresariado nacional.
Luiz Carlos Ribeiro
(*) Ilustração Zuca Sardan
O entusiasmo do jornalista Juca Kfouri em relação à eleição da nova diretoria do Flamengo, ocorrida em três de dezembro último, dá alguma mostra de como o conceito de “modernização” tornou-se banal no futebol brasileiro.
Juca foi um dos primeiros jornalistas profissionais a levantar a bandeira da modernização do nosso macunaímico futebol.
A conjuntura era o final dos anos 80 quando alguns diretores de clubes, aproveitando a crise financeira e política que passava a CBF, resolveram organizar por conta própria o campeonato brasileiro e, por extensão, fundar uma liga independente, que ficou conhecida como Clube dos 13. Na ocasião Juca era diretor de uma das mais influentes mídias esportivas, a revista Placar (Grupo Abril) e não apenas apoiou a “Copa União”, como via na embrionária liga um sinal de rompimento com a arcaica e corrupta CBF, bem como a perspectiva de alcançar a desejada modernização do futebol brasileiro.
Quando em 2011 uma nova crise atingiu no Clube dos 13 – que acabou resultando no seu fim trágico – Juca Kfouri (em tom melancólico, como exigia a ocasião), vaticinou a morte da modernidade que a liga, afinal, nunca havia completada. O título de sua crônica era emblemático: “Nascimento e agonia do Clube dos 13”.
Conto aqui o que vi, e poucas coisas vi tão por dentro em minha vida de jornalista como o nascimento do Clube dos 13 e da Copa União.
Como vi o começo lento e gradual de sua decadência.
Curiosa e dramaticamente, sua implosão se dá quando parecia ressurgir, embora, agora, pareça mais que tenha sido aquela famosa melhora do doente antes de morrer. [1]
Agora, quando eleita a nova diretoria do Flamengo, reaparece o velho discurso da modernidade. O presidente eleito, Eduardo Bandeira de Mello (ex-diretor BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento), montou uma equipe composta de pesos pesados do empresariado nacional. De acordo com o noticiado pela imprensa, nomes como Flavio Godinho, executivo da MPX; Rodolfo Landim, ex-executivo da BR Distribuidora e OGX; Luiz Eduardo Baptista, presidente da Sky e Carlos Geraldo Langoni, ex-presidente do Banco Central do Brasil serão os arquitetos da neomodernidade flamenguista.
Perguntado em entrevista ao LANCE!Net sobre qual o carro-chefe da sua proposta, Bandeira de Mello afirma entusiasmado:
É a equipe que nós temos e a proposta de modernidade e foco na gestão. Queremos a profissionalização do clube. Temos uma equipe de executivos bem-sucedidos na vida empresarial. Ao anunciar um vice-presidente eu me sinto como se fosse o Presidente da República anunciando um ministro.
Esse nosso time poderia compor um ministério da República ou secretariado importante. O Flamengo nunca teve em sua administração pessoas do calibre, da competência e da credibilidade desses vice-presidentes que estamos anunciando aos poucos. [2]
Sobre a dívida financeira que acumula o clube, Bandeira de Mello não é menos modesto: “Nosso homem da reestruturação da dívida será o professor Carlos Langoni, ex-presidente do Banco Central e que lidou com a dívida externa na época mais barra pesada que remonta às negociações com o FMI e o Clube de Paris.”
Sobre essa postura de modernidade e profissionalização, Juca é mais reticente que entusiasmado. Afinal, não seria esse apenas mais um discurso?
Eduardo Bandeira de Mello é o nome da nova esperança da maior torcida do Brasil, a do Flamengo. (...) Bandeira de Mello, ex-diretor do BNDES, ganhou com facilidade com 1.414 votos do total de 2.675 eleitores, e promete profissionalizar o Flamengo, com apoio do ídolo Zico. Tomara que cumpra e que não seja mais uma decepção, como a própria Patrícia Amorim (...) [3]
De forma diversa, chama atenção o entusiasmo de um personagem chave nessa curta e mal-aventurada modernização do futebol brasileiro, o empresário e escritor da área de marketing, João Henrique Areias:
As entidades esportivas brasileiras (clubes, federações e confederações) precisam rever e modernizar seus sistemas de gestão para fazer frente aos novos desafios da indústria do esporte. Profissionalização, boa governança, credibilidade, são mais que atributos, são fatores críticos de sucesso para o desenvolvimento do esporte nacional.
Por esta razão, não tive dúvidas em apoiar e ajudar na coordenação do Eduardo Bandeira de Mello, de forma voluntária.
Ele e o grupo formado por empresários de reconhecida competência, são uma benção não só para nosso Flamengo, mas com capacidade de influenciar e modificar usos e costumes viciados do nosso esporte. [4]
Areias, para quem não lembra, foi figura decisiva, anos de 80, na construção do sistema de venda dos jogos para as redes de TV, em especial a Rede Globo. Era uma parceria que fazia parte do pacote da modernização, pois teoricamente possibilitaria aos clubes aumentar suas rendas e sair da miséria e do endividamento.
Desse então, muita coisa mudou, mas a divisão entre o arcaico e o moderno continua uma linha tênue e quase invisível. Os ventos que sopram da CBF, sob a presidência de José Maria Marin, e as promíscuas relações entre público e privado, envolvendo os gastos com Copa de 14, entusiasmam menos ainda. Nesse sentido, acompanho o ceticismo de Juca Kfouri.
NOTAS
[1] Folha de S.Paulo. 1º mar. 2011. Disponível em: <http://blogdojuca.uol.com.br/2011/03/nascimento-e-agonia-do-clube-dos-13/>. Acesso em 13 abr. 2011
[2] http://www.lancenet.com.br/flamengo/Eduardo-Bandeira-Mello-time-executivos_0_817118384.html#ixzz2ECoKeSR5
[3] UOL, 04.12.2012. Disponível em: http://blogdojuca.uol.com.br/2012/12/a-nova-esperanca-do-flamengo-e-o-novo-desafio-do-corinthians/
[4] Areias, João Henrique. Por que votar na Chapa Azul nas eleições do Flamengo. Blog do Juca Kfouri, 30.11.2012.
(*) Deixa Falar: o megafone do esporte, espaço de debates idealizado e editado por Raul Milliet Filho
(*) Professor de História da Universidade Federal do Paraná e coordenador do Núcleo de Estudos Futebol e Sociedade.
Salada mista
DEBATE ABERTO
Salada mista
Cinco pequenas anotações para encerrar o ano. Um filme, a história de Dorothy Counts, a relação de Nelson Rodrigues com a gastronomia e um fragmento do humor judaico. Esperança, liberdade, luta, prazer, bom humor, poesia. Vida. Que todos tenham um excelente 2013.
Jacques Gruman
Com quase vinte anos de atraso, assisti um grande filme. Conhecido em português como Asas da liberdade, prefiro o original em inglês: The Shawshank redemption. Reflete melhor a história. Interpretações inesquecíveis de Morgan Freeman e Tim Robbins. Shawshank é uma prisão, dessas que assombram nosso ministro da Justiça, que prefere morrer a estar numa delas. Não vou entrar em detalhes, para não estragar o prazer de quem quiser assistir, o que recomendo fortemente.
Cito apenas uma cena. Andy Dufresne (Tim Robbins) está preso por ter supostamente assassinado a esposa, flagrada na cama com o professor de golfe. Clama inocência e, mesmo com o passar dos anos, jamais abandona um estilo introspectivo e rebelde. Certa vez, num golpe de sorte, fica sozinho na sala de som da cadeia, que servia apenas para reverberar ordens aos internos. Tranca a porta de entrada, pega um LP velho, que acaricia como a um sonho perene, nostálgico e querido, coloca na vitrola e acopla com o alto-falante, que dava para o pátio interno. Os presos param, hipnotizados. Por aquele aparelho de som, normalmente porta-voz do arbítrio e da violência, saía o dueto Sull’aria ? Che soave zeffiretto, da ópera As bodas de Fígaro, de Mozart.
“Não entendo patavina do que essas italianas estão cantando”, comenta o personagem de Morgan Freeman, “mas parece sublime, como um pássaro que sai da gaiola”. O encantamento é subitamente interrompido, quando os guardas invadem a sala de som e desligam a vitrola. Andy é punido com quinze dias de solitária. Ao sair, saudado como “maestro” por seus companheiros, diz que não ficou sozinho na cela-castigo. Ante a surpresa geral, garante que fechava os olhos e conseguia ouvir Mozart. “Quem está com música, não está sozinho. Está livre”. Transcrevo de memória, mas o sentido era esse mesmo. E que sentido !
*********************************
No dia 4 de setembro de 1957, a cidade de Charlotte, no sul dos Estados Unidos, foi sacudida. Dorothy Counts, uma adolescente de 15 anos, tornava-se a primeira negra a ser aceita num colégio até então exclusivo para brancos. Durante quatro dias, foi insultada, cuspida e agredida com pedradas. Quatro intermináveis dias. Quando o carro de seu irmão teve um vidro estilhaçado, Dorothy viu que ela não era mais o alvo único: sua família também corria risco. Polícia e direção da escola ignoraram as denúncias e o pai de Dorothy foi forçado a tirá-la do colégio.
Acabou se formando em pedagogia e trabalhou, durante muitos anos, ajudando crianças vítimas de abusos. Seu gesto de resistência, mesmo abortado pela estupidez racista, integra, junto com Rosa Parks e tantos outros, o painel dos que demoliram, pedra por pedra, o segregacionismo nos Estados Unidos. O racismo, lá como cá, não acabou, mas Dorothy simboliza uma luta que se espalha por muitas frentes.
********************************
Ruy Castro, um dos meus gurus, foi convidado a fazer palestra em São Paulo sobre a relação de Nelson Rodrigues com a gastronomia. Pesquisa daqui, assunta dali, descobriu uma crônica. Reproduzo: “Um mendigo imundo e morto de fome é recolhido por uma família, sentado a uma mesa na cozinha e servido de um prato capaz de alimentar uma tropa. Pouco depois, faz uma pausa, olha em torno e pergunta: Tem uma pimentinha ? Ou seja, matar a fome não é tudo – há que haver lugar para a fantasia”.
***********************************
Por falar em mendigo, aí vai um fragmento do inesgotável repertório do humor judaico, o tão peculiar humor que mistura auto-ironia, sarcasmo e, vá lá, uma pitadinha de melancolia. Um mendigo judeu chegou à casa do Barão de Rothschild, bateu na porta e exigiu que o barão o atendesse pessoalmente, porque tinha algo muito importante para lhe dizer. Primeiro, a empregada tentou mandá-lo embora, depois o secretário e, finalmente, o próprio barão apareceu. O mendigo lhe pediu, então, uma esmola.
Rothschild ficou furioso. “Foi para isso que você me mandou vir pessoalmente ? Pode-se saber por que você não pediu para a empregada ou ao meu secretário ?”. “Querido barão”, disse o mendigo, “o senhor pode ser o maior financista do mundo, mas não venha me ensinar como pedir esmola”.
**********************************
Heaven and earth they’ll pass away pass away/Heaven and earth gonna pass away pass away/Heaven heavenWoody Guthrie heaven/and earth bound to pass away/But my words/They’ll never ever pass away./City and town they’ll pass away pass away/Town and city both pass away pass away/Dreams and stars they’ll pass away/Not a word of mine/Will ever pass away./Country and farm they’ll pass away pass away/Farm and country they’ll pass away pass away/Not a word of mine/Will ever pass away./ Heaven and earth they’ll pass away pass away/Heaven and earth gonna pass away pass away/Heaven heaven heaven/and earth bound to pass away/Not a word of mine/Will ever pass away
(Pass away, do poeta, cantor, homem engajado e grande figura Woody Guthrie, inspirador, entre muitos outros, de Bob Dylan, Joan Baez e dos Klezmatics).
Esperança, liberdade, luta, prazer, bom humor, poesia. Vida. Que todos tenham um excelente 2013.
Cito apenas uma cena. Andy Dufresne (Tim Robbins) está preso por ter supostamente assassinado a esposa, flagrada na cama com o professor de golfe. Clama inocência e, mesmo com o passar dos anos, jamais abandona um estilo introspectivo e rebelde. Certa vez, num golpe de sorte, fica sozinho na sala de som da cadeia, que servia apenas para reverberar ordens aos internos. Tranca a porta de entrada, pega um LP velho, que acaricia como a um sonho perene, nostálgico e querido, coloca na vitrola e acopla com o alto-falante, que dava para o pátio interno. Os presos param, hipnotizados. Por aquele aparelho de som, normalmente porta-voz do arbítrio e da violência, saía o dueto Sull’aria ? Che soave zeffiretto, da ópera As bodas de Fígaro, de Mozart.
“Não entendo patavina do que essas italianas estão cantando”, comenta o personagem de Morgan Freeman, “mas parece sublime, como um pássaro que sai da gaiola”. O encantamento é subitamente interrompido, quando os guardas invadem a sala de som e desligam a vitrola. Andy é punido com quinze dias de solitária. Ao sair, saudado como “maestro” por seus companheiros, diz que não ficou sozinho na cela-castigo. Ante a surpresa geral, garante que fechava os olhos e conseguia ouvir Mozart. “Quem está com música, não está sozinho. Está livre”. Transcrevo de memória, mas o sentido era esse mesmo. E que sentido !
*********************************
No dia 4 de setembro de 1957, a cidade de Charlotte, no sul dos Estados Unidos, foi sacudida. Dorothy Counts, uma adolescente de 15 anos, tornava-se a primeira negra a ser aceita num colégio até então exclusivo para brancos. Durante quatro dias, foi insultada, cuspida e agredida com pedradas. Quatro intermináveis dias. Quando o carro de seu irmão teve um vidro estilhaçado, Dorothy viu que ela não era mais o alvo único: sua família também corria risco. Polícia e direção da escola ignoraram as denúncias e o pai de Dorothy foi forçado a tirá-la do colégio.
Acabou se formando em pedagogia e trabalhou, durante muitos anos, ajudando crianças vítimas de abusos. Seu gesto de resistência, mesmo abortado pela estupidez racista, integra, junto com Rosa Parks e tantos outros, o painel dos que demoliram, pedra por pedra, o segregacionismo nos Estados Unidos. O racismo, lá como cá, não acabou, mas Dorothy simboliza uma luta que se espalha por muitas frentes.
********************************
Ruy Castro, um dos meus gurus, foi convidado a fazer palestra em São Paulo sobre a relação de Nelson Rodrigues com a gastronomia. Pesquisa daqui, assunta dali, descobriu uma crônica. Reproduzo: “Um mendigo imundo e morto de fome é recolhido por uma família, sentado a uma mesa na cozinha e servido de um prato capaz de alimentar uma tropa. Pouco depois, faz uma pausa, olha em torno e pergunta: Tem uma pimentinha ? Ou seja, matar a fome não é tudo – há que haver lugar para a fantasia”.
***********************************
Por falar em mendigo, aí vai um fragmento do inesgotável repertório do humor judaico, o tão peculiar humor que mistura auto-ironia, sarcasmo e, vá lá, uma pitadinha de melancolia. Um mendigo judeu chegou à casa do Barão de Rothschild, bateu na porta e exigiu que o barão o atendesse pessoalmente, porque tinha algo muito importante para lhe dizer. Primeiro, a empregada tentou mandá-lo embora, depois o secretário e, finalmente, o próprio barão apareceu. O mendigo lhe pediu, então, uma esmola.
Rothschild ficou furioso. “Foi para isso que você me mandou vir pessoalmente ? Pode-se saber por que você não pediu para a empregada ou ao meu secretário ?”. “Querido barão”, disse o mendigo, “o senhor pode ser o maior financista do mundo, mas não venha me ensinar como pedir esmola”.
**********************************
Heaven and earth they’ll pass away pass away/Heaven and earth gonna pass away pass away/Heaven heavenWoody Guthrie heaven/and earth bound to pass away/But my words/They’ll never ever pass away./City and town they’ll pass away pass away/Town and city both pass away pass away/Dreams and stars they’ll pass away/Not a word of mine/Will ever pass away./Country and farm they’ll pass away pass away/Farm and country they’ll pass away pass away/Not a word of mine/Will ever pass away./ Heaven and earth they’ll pass away pass away/Heaven and earth gonna pass away pass away/Heaven heaven heaven/and earth bound to pass away/Not a word of mine/Will ever pass away
(Pass away, do poeta, cantor, homem engajado e grande figura Woody Guthrie, inspirador, entre muitos outros, de Bob Dylan, Joan Baez e dos Klezmatics).
Esperança, liberdade, luta, prazer, bom humor, poesia. Vida. Que todos tenham um excelente 2013.
A privataria em curso
As privatizações não têm nada a ver com racionalidade econômica. São o resultado de opções ideológicas servidas por discursos que escondem suas verdadeiras motivações. No Brasil, o discurso foi o de transformar as privatizações numa “condição para entrar na modernidade”. Em Portugal, o discurso é o do interesse nacional, tutelado pela troika, em reduzir a dívida e ganhar competitividade.
Boaventura de Sousa Santos
O termo privataria foi cunhado por um grande jornalista brasileiro, Elio Gaspari, e popularizado por um dos mais brilhantes jornalistas investigativos do Brasil, Amaury Ribeiro Jr. O livro deste último “A Privataria Tucana” (São Paulo, Geração Editorial 2011), um best-seller, relata com grande solidez documental, o processo ruinoso das privatizações levado a cabo no Brasil durante a década de 1990.
A investigação, que durou dez anos, não só denuncia a “selvageria neoliberal dos anos 90” que dizimou o patrimônio público brasileiro, deixando o país mais pobre e os ricos mais ricos, como também estabelece de forma convincente a conexão entre a onda privatizante e a abertura de contas sigilosas e de empresas de fachada nos paraísos fiscais das Caraíbas onde se lava o dinheiro sujo da corrupção, das comissões e propinas ilegais arrecadadas pelos intermediários e facilitadores dos negócios.
Aconselho a leitura do livro aos portugueses que não se conformam com o discurso do “interesse nacional” para legitimar a dilapidação da riqueza nacional em curso, a todos os dirigentes políticos que se sentem perplexos perante a rapidez e a opacidade com que as privatizações ocorrem e aos magistrados do Ministério Publico e investigadores da PJ por suspeitar que vão ter muito trabalho pela frente se tiverem meios e coragem.
As privatizações não são necessariamente privataria. São-no quando os interesses nacionais são dolosamente prejudicados para permitir o enriquecimento ilícito daqueles que, em posições de mando ou de favorecimento político, comandam ou influenciam as negociações e as decisões em favor de interesses privados. As privatizações não têm nada a ver com racionalidade econômica. São o resultado de opções ideológicas servidas por discursos que escondem as suas verdadeiras motivações. No Brasil, o discurso foi o de transformar as privatizações numa “condição para o país entrar na modernidade”. Em Portugal, o discurso é o do interesse nacional, tutelado pela troika, em reduzir a dívida e ganhar competitividade. Em ambos os países, a motivação real é criar novas áreas de acumulação e lucro para o capital. No caso português isso passa pela destruição tanto do sector empresarial do estado como do estado social.
No último caso sobretudo, trata-se de uma opção ideológica de quem usa a crise para impor medidas que nunca poderia legitimar por via eleitoral. Para termos uma ideia da carga ideológica por detrás das privatizações, supostamente necessárias para reduzir a dívida pública, basta ler o orçamento de 2013: a receita total das privatizações, de 2011 a 2013, será de 3,7 bilhões de euros, ou seja, menos de 2% da dívida pública… A privataria tende a ocorrer quando se trata de processos massivos de privatização.
Joseph Stiglitz cunhou um neologismo ácido para definir a onda privatista que avassalou as economias do Terceiro Mundo nos anos 80 e 90, “briberization”, um termo cujo significado se aproxima do de privataria. No caso português, a tutela externa e a dívida que o governo tem interesse em não renegociar, favorece vendas em saldo e, com isso, oportunidades de compensação especial em ganhos ilícitos para os que as tornam possíveis. Como a corrupção não tem uma capacidade infinita de inovação, é de prever que muito do que se passou no Brasil se esteja a passar em Portugal. É preocupante que alguns nomes conhecidos da corrupção do Brasil, alguns já condenados, surjam nas notícias das privatizações em Portugal.
A privataria ocorre por via da articulação entre dois mundos: o mundo das privatizações: conseguir condições particularmente favoráveis aos investidores; e o sub-mundo da corrupção: lavar o dinheiro das comissões ilegais recebidas. No que respeita ao primeiro mundo, alguns dos estratagemas da privataria incluem: criar na opinião pública imagens negativas sobre a gestão ou o valor das empresas estatais; fazer investimentos ou subir os preços dos serviços antes dos leilões; absorver dívidas para tornar as empresas mais atrativas ou permitir que as dívidas sejam contabilizadas sem criteriosa definição do seu montante e condições; definir parâmetros que beneficiem o candidato que se pretende privilegiar e que idealmente o transformem em candidato único; passar ilegalmente informação estratégica com o mesmo objetivo; confiar em serviços de consultoria, fazendo vista grossa a possíveis conflitos de interesses; permitir que os compradores, em vez de trazerem capital próprio, contraiam empréstimos no exterior que acabarão por fazer crescer a dívida externa; permitir que fundos públicos sejam usados para alienar património público em favor de interesses privados.
O sub-mundo da corrupção reside na lavagem do dinheiro. Trata-se da transferência do dinheiro das comissões para paraísos fiscais mediante a criação de empresas offshores (de fato, nada mais do que caixas postais) onde os verdadeiros titulares das contas desaparecem sob o nome dos seus procuradores. Aí o dinheiro pousa, repousa e, depois de lavado, é repatriado para investimentos pessoais ou financiamento de partidos.
(*) Publicado originalmente no Público/Portugal (24 de dezembro de 2012)
A investigação, que durou dez anos, não só denuncia a “selvageria neoliberal dos anos 90” que dizimou o patrimônio público brasileiro, deixando o país mais pobre e os ricos mais ricos, como também estabelece de forma convincente a conexão entre a onda privatizante e a abertura de contas sigilosas e de empresas de fachada nos paraísos fiscais das Caraíbas onde se lava o dinheiro sujo da corrupção, das comissões e propinas ilegais arrecadadas pelos intermediários e facilitadores dos negócios.
Aconselho a leitura do livro aos portugueses que não se conformam com o discurso do “interesse nacional” para legitimar a dilapidação da riqueza nacional em curso, a todos os dirigentes políticos que se sentem perplexos perante a rapidez e a opacidade com que as privatizações ocorrem e aos magistrados do Ministério Publico e investigadores da PJ por suspeitar que vão ter muito trabalho pela frente se tiverem meios e coragem.
As privatizações não são necessariamente privataria. São-no quando os interesses nacionais são dolosamente prejudicados para permitir o enriquecimento ilícito daqueles que, em posições de mando ou de favorecimento político, comandam ou influenciam as negociações e as decisões em favor de interesses privados. As privatizações não têm nada a ver com racionalidade econômica. São o resultado de opções ideológicas servidas por discursos que escondem as suas verdadeiras motivações. No Brasil, o discurso foi o de transformar as privatizações numa “condição para o país entrar na modernidade”. Em Portugal, o discurso é o do interesse nacional, tutelado pela troika, em reduzir a dívida e ganhar competitividade. Em ambos os países, a motivação real é criar novas áreas de acumulação e lucro para o capital. No caso português isso passa pela destruição tanto do sector empresarial do estado como do estado social.
No último caso sobretudo, trata-se de uma opção ideológica de quem usa a crise para impor medidas que nunca poderia legitimar por via eleitoral. Para termos uma ideia da carga ideológica por detrás das privatizações, supostamente necessárias para reduzir a dívida pública, basta ler o orçamento de 2013: a receita total das privatizações, de 2011 a 2013, será de 3,7 bilhões de euros, ou seja, menos de 2% da dívida pública… A privataria tende a ocorrer quando se trata de processos massivos de privatização.
Joseph Stiglitz cunhou um neologismo ácido para definir a onda privatista que avassalou as economias do Terceiro Mundo nos anos 80 e 90, “briberization”, um termo cujo significado se aproxima do de privataria. No caso português, a tutela externa e a dívida que o governo tem interesse em não renegociar, favorece vendas em saldo e, com isso, oportunidades de compensação especial em ganhos ilícitos para os que as tornam possíveis. Como a corrupção não tem uma capacidade infinita de inovação, é de prever que muito do que se passou no Brasil se esteja a passar em Portugal. É preocupante que alguns nomes conhecidos da corrupção do Brasil, alguns já condenados, surjam nas notícias das privatizações em Portugal.
A privataria ocorre por via da articulação entre dois mundos: o mundo das privatizações: conseguir condições particularmente favoráveis aos investidores; e o sub-mundo da corrupção: lavar o dinheiro das comissões ilegais recebidas. No que respeita ao primeiro mundo, alguns dos estratagemas da privataria incluem: criar na opinião pública imagens negativas sobre a gestão ou o valor das empresas estatais; fazer investimentos ou subir os preços dos serviços antes dos leilões; absorver dívidas para tornar as empresas mais atrativas ou permitir que as dívidas sejam contabilizadas sem criteriosa definição do seu montante e condições; definir parâmetros que beneficiem o candidato que se pretende privilegiar e que idealmente o transformem em candidato único; passar ilegalmente informação estratégica com o mesmo objetivo; confiar em serviços de consultoria, fazendo vista grossa a possíveis conflitos de interesses; permitir que os compradores, em vez de trazerem capital próprio, contraiam empréstimos no exterior que acabarão por fazer crescer a dívida externa; permitir que fundos públicos sejam usados para alienar património público em favor de interesses privados.
O sub-mundo da corrupção reside na lavagem do dinheiro. Trata-se da transferência do dinheiro das comissões para paraísos fiscais mediante a criação de empresas offshores (de fato, nada mais do que caixas postais) onde os verdadeiros titulares das contas desaparecem sob o nome dos seus procuradores. Aí o dinheiro pousa, repousa e, depois de lavado, é repatriado para investimentos pessoais ou financiamento de partidos.
(*) Publicado originalmente no Público/Portugal (24 de dezembro de 2012)
Boaventura de Sousa Santos é sociólogo e professor catedrático da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (Portugal).
O Caso Battisti e o Judiciário: mais sensatez e mais valores
O Caso Battisti e o Judiciário: mais sensatez e mais valores
O livro "Os cenários ocultos do Caso Battisti", de Carlos A. Lungarzo, desvenda um quadro até então opaco, aqui no Brasil. Em várias passagens do seu voto, o ministro Peluso não só desdenhou da minha formação jurídica como manipulou provas no processo, com o objetivo de extraditar Battisti e entregá-lo ao governo Berlusconi. Recomendo ao agora ex-ministro que leia um pouco mais, para julgar mais de acordo com Kant do que com Mussolini. O artigo é de Tarso Genro.
Tarso Genro
Li recentemente o livro do Professor Carlos A. Lungarzo - doutor e pós-doutor, professor em universidades brasileiras e de fora do Brasil, militante defensor dos Direitos Humanos e estudioso da história política recente da Itália - cujo título da obra já revela a sua importância para o contexto político nacional: “Os cenários ocultos do Caso Battisti” (Ed. Geração, 2012, 367 pgs.). Um livro brilhante e transparente, que desvenda um cenário até então opaco, aqui no nosso Brasil..
O “Caso Battisti”, como se sabe, gerou uma polêmica extraordinária no país. Testou não só a capacidade combativa - no plano ideológico e político de uma boa parte da esquerda brasileira e dos democratas do país - mas também testou a qualidade jurídica e política da nossa Suprema Corte, no atual período, pois nossa Corte já havia julgado caso semelhante, concedendo o refúgio a militantes envolvidos com a luta armada nos “anos de chumbo” na Itália.
Não se tratava, no “Caso Battisti” - em nenhuma hipótese - de opor pessoas ou grupos políticos que defendessem, ou que fossem contra a luta armada, naquele período amargo da história italiana. Ou mesmo não se tratava de opor os que aceitavam ou aceitam métodos de luta revolucionária, aos que não os aceitam, em períodos de vigência de um Estado de Direito Formal. Tratava-se, na verdade, do exame de duas questões bem claras, num caso concreto: Battisti cometeu os seus presumidos delitos a partir de ações subversivas, com convicção ideológica e política, contra o Estado? Teria possibilidade de não ter um tratamento justo, se extraditado?
Sempre defendi, a partir de um estudo acurado do processo, com minha equipe no Ministério da Justiça (nesta matéria sob a coordenação de dois brilhantes secretários do MJ, o Secretário Executivo Luiz Paulo Barreto e o Secretário de Assuntos Legislativos, Pedro Abramovay), que qualquer Juiz que examinasse o processo - sem cegueiras ideológicas - veria que Cesare Battisti tinha sido condenado sem provas. O seu processo, na Itália, é um escândalo de erros formais e materiais, que só podem ser explicados pela crise de Estado, vivida pela Itália, naquela oportunidade.
A condenação sem provas, devidamente contextualizada, foi feita num ambiente de ações paramilitares de extrema direita e de extrema esquerda, no qual as ações terroristas de direita tinham um tratamento diverso, tanto por parte da Polícia, como por parte de um setor importante da Magistratura: fortes resíduos fascistas ainda estavam encravados no Estado italiano, sob o patrocínio da OTAN, no âmbito da Guerra Fria. Um quadro histórico, portanto, capaz de transformar a política em ações armadas. O livro do professor Lungarzo mostra, claramente, que esta era situação daqueles duros anos da história italiana.
Mas, vejamos também o que fica claro sobre as duas “perguntas-chave”, do processo.
Primeiro, o Ministro Francesco Cossiga, um dos grandes “capos” políticos da democracia-cristã nos “anos de chumbo”, reconheceu por escrito (sua manifestação está transcrita no meu despacho de admissão do refúgio) que Battisti era um “criminoso” político (pg. 111 do livro). Segundo: estava provado também - pela farta documentação existente no processo - que embora vigente o Estado de Direito Formal, na Itália daqueles anos, o que funcionava no cotidiano das políticas de segurança do Estado (no que refere à repressão não somente a atos antiterroristas, mas também à repressão aos grupos dissidentes esquerdistas) foi a “exceção”; ou seja: a tortura, assassinatos pela máfias fascistas, encobertas por parte do aparato de Estado (muitas impunes até hoje), seguidas de um controle midiático para incriminar, sempre, a esquerda armada, inclusive pelas ações terroristas provenientes das articulações da OTAN com parte dos serviços secretos italianos.
O livro descreve, minuciosamente, aquele período, apontando fontes de várias origens, não somente da imprensa italiana não controlada pela democracia-cristã, mas também da Anistia Internacional e de participantes daquele período. Descreve, apoiado em fontes documentais, o clima político de violência desmedida daqueles anos tristes da democracia italiana: as relações dos grupos fascistas com os serviços secretos italianos, os vínculos da máfia com o poder empresarial e político daquele tempo, a cumplicidade de uma parte da Magistratura italiana com a “exceção”.
(Esta “exceção” foi promovida, igualmente, pelo conúbio de uma parte significativa dos chefes da democracia cristã com o terrorismo de direita, que precedeu as ações violentas dos grupos comunistas dissidentes, cujo ápice foi o atentado à Estação de Trens de Bolonha, que matou trezentos inocentes).
O que inquieta e deve ser sempre rememorado é porque tudo isso não foi debatido pela mídia, que tratou de esconder a verdadeira natureza do processo e os seus aspectos materiais fundamentais, e porque o Ministro Cezar Peluso, no seu voto, distorceu ou omitiu todo o quadro histórico que poderia deslindar a situação “política” dos delitos imputados a Cesare Battisti. Ignorância? Má fé?
Não creio, sinceramente, que algum Ministro do Supremo tenha agido por ignorância ou má fé, embora não seja bom se impressionar com longas e catárticas citações nos seus votos, pois qualquer trabalho de fim de curso, nos dias de hoje, socorre-se do “google” e apresenta textos que parecem ser, mesmo, obra de juristas eruditos de renome. Na pós-modernidade fraudulenta, o que caracteriza a sabedoria e o conhecimento, é mais saber procurar na internet do que ter adquirido rudimentos de história e filosofia, para compreender os fenômenos sociais e jurídicos.
É óbvio que a ideologia do julgador sempre imprime um condicionamento na escolha das diversas possibilidades de manejo das leis e, exatamente por estar ciente disso, é que o ponto de partida metodológico do decidir -principalmente em questões desta natureza- não é a paixão por “um dos lados”, uma das “partes” políticas em confronto.
O ponto de partida metodológico deve ser não a luta de classes em estado puro -“proletários armados” versus parte da “burguesia mafiosa”, ocupando parte do Estado, mas os valores universais que estão em jogo. Por quê? Precisamente porque a contenda, como fato histórico concreto, pode não ser exatamente esta que descrevi. Então, as coordenadas para decidir devem ser buscadas nas conquistas universais do humanismo moderno e não nos “gosto” primário dos julgadores.
No caso concreto de Battisti o que estava em jogo, como disputa de valores, era o seguinte: a presunção da inocência; a presunção de que os grupos armados, naquela oportunidade, poderiam estar se insurgindo contra governos e Estados que “fecharam”, na época, a sua possibilidade de transformação dentro da democracia; a presunção de que os grupos de poder, no momento (no país requerente da extradição), estavam fazendo-o por meios ilegítimos. A presunção de que o governo que pedia a extradição no momento (lembremo-nos de Berlusconi) não demonstrava interesse na preservação do Direito Internacional Humanitário. Esta é a análise que faltou ao Estado brasileiro, no momento em que foi entregue Olga Benário ao nazismo. E era o que a mídia, associada às teses do governo italiano, tentou me impor na oportunidade.
Estes valores são valores democrático-liberais e estão sintetizados na grande rede de direitos que protege o cidadão do arbítrio do Estado e dos abusos de poder, que lhe são inerentes, em qualquer regime. Fundados nesta visão é que nós -no Ministério da Justiça, na mesma época do “affaire” Battisti - concedemos diversos refúgios a cubanos que estavam no Brasil, sem nos deixar influenciar sobre o juízo –inclusive diverso- que a nossa equipe tinha, na oportunidade, sobre o regime vigente em Cuba.
Lendo o livro do professor Lungarzo entende-se porque, naquela oportunidade, a mídia nativa (majoritariamente), mentiu de forma reiterada sobre a questão dos cubanos, baseada numa informação preliminar falsa do jornalista Elio Gaspari: era preciso desmoralizar o Ministro da Justiça, para legitimar uma extradição ilegal, que supunham já tinha maioria no Supremo. Divulgar mentirosamente que, ao mesmo tempo em que eu “dava refúgio a Battisti” - um “terrorista”- “entregava” os cubanos para a “ditadura castrista”, era formar uma aura de simpatia em torno do STF, para colocar Battisti à disposição de Berlusconi e sua máfia de poder.
Na verdade, ficou provado é que os próprios cubanos que voltaram a Cuba, assistidos pelo Ministério Público Federal e pela OAB, escolheram voltar. Depois declararam isso no exterior, com escassa repercussão na mídia brasileira.
A manipulação da informação no caso Battisti não é uma “questão menor” para a democracia brasileira: trata-se da questão da igualdade de meios, numa democracia formal, para dar efetividade a direitos fundamentais, como a liberdade de imprensa, que só tem sentido se for correlacionada com o direito concreto à livre circulação da opinião, sem o qual a liberdade de imprensa passa a ser um mero aparato de dominação destinado a divulgar as opiniões dos “donos” das empresas de mídia.
Em várias passagens do seu voto o Ministro Peluso, originário da magistratura paulista, que teve como mestres Alfredo Buzaid -o Ministro a Justiça da ditadura cujo maior feito foi encobrir as torturas cometidas nas masmorras do regime- e Miguel Reale, prestigiado filósofo do Direito, simpatizante das ideias de Mussolini e dos programas jurídicos “democráticos” do regime militar”- não só desdenhou da minha formação jurídica como manipulou as provas no processo, com o objetivo de extraditar Battisti e entregá-lo ao republicano governo Berlusconi.
Na primeira parte eu acho que ele tem razão, pois os meus mestres são outros: sou mais Ernst Bloch, Ferrajoli e Konrad Hesse, do que Buzaid e Miguel Reale. Quanto à segunda parte, manipulação das provas no processo de extradição, trata-se de uma questão de cultura geral. Recomendo ao agora ex-ministro que leia um pouco mais, informe-se um pouco mais, ouça um pouco mais pessoas que tenham formações intelectuais diversas daquelas dos seus mestres, para julgar mais de acordo com Kant do que com Mussolini: mais “valores” e assim menos contingência ideológica transmitida pelos mestres imediatos. Ainda bem que ainda tem Juízes em Berlim e o Brasil ainda tem Presidentes dignos deste nome.
O “Caso Battisti”, como se sabe, gerou uma polêmica extraordinária no país. Testou não só a capacidade combativa - no plano ideológico e político de uma boa parte da esquerda brasileira e dos democratas do país - mas também testou a qualidade jurídica e política da nossa Suprema Corte, no atual período, pois nossa Corte já havia julgado caso semelhante, concedendo o refúgio a militantes envolvidos com a luta armada nos “anos de chumbo” na Itália.
Não se tratava, no “Caso Battisti” - em nenhuma hipótese - de opor pessoas ou grupos políticos que defendessem, ou que fossem contra a luta armada, naquele período amargo da história italiana. Ou mesmo não se tratava de opor os que aceitavam ou aceitam métodos de luta revolucionária, aos que não os aceitam, em períodos de vigência de um Estado de Direito Formal. Tratava-se, na verdade, do exame de duas questões bem claras, num caso concreto: Battisti cometeu os seus presumidos delitos a partir de ações subversivas, com convicção ideológica e política, contra o Estado? Teria possibilidade de não ter um tratamento justo, se extraditado?
Sempre defendi, a partir de um estudo acurado do processo, com minha equipe no Ministério da Justiça (nesta matéria sob a coordenação de dois brilhantes secretários do MJ, o Secretário Executivo Luiz Paulo Barreto e o Secretário de Assuntos Legislativos, Pedro Abramovay), que qualquer Juiz que examinasse o processo - sem cegueiras ideológicas - veria que Cesare Battisti tinha sido condenado sem provas. O seu processo, na Itália, é um escândalo de erros formais e materiais, que só podem ser explicados pela crise de Estado, vivida pela Itália, naquela oportunidade.
A condenação sem provas, devidamente contextualizada, foi feita num ambiente de ações paramilitares de extrema direita e de extrema esquerda, no qual as ações terroristas de direita tinham um tratamento diverso, tanto por parte da Polícia, como por parte de um setor importante da Magistratura: fortes resíduos fascistas ainda estavam encravados no Estado italiano, sob o patrocínio da OTAN, no âmbito da Guerra Fria. Um quadro histórico, portanto, capaz de transformar a política em ações armadas. O livro do professor Lungarzo mostra, claramente, que esta era situação daqueles duros anos da história italiana.
Mas, vejamos também o que fica claro sobre as duas “perguntas-chave”, do processo.
Primeiro, o Ministro Francesco Cossiga, um dos grandes “capos” políticos da democracia-cristã nos “anos de chumbo”, reconheceu por escrito (sua manifestação está transcrita no meu despacho de admissão do refúgio) que Battisti era um “criminoso” político (pg. 111 do livro). Segundo: estava provado também - pela farta documentação existente no processo - que embora vigente o Estado de Direito Formal, na Itália daqueles anos, o que funcionava no cotidiano das políticas de segurança do Estado (no que refere à repressão não somente a atos antiterroristas, mas também à repressão aos grupos dissidentes esquerdistas) foi a “exceção”; ou seja: a tortura, assassinatos pela máfias fascistas, encobertas por parte do aparato de Estado (muitas impunes até hoje), seguidas de um controle midiático para incriminar, sempre, a esquerda armada, inclusive pelas ações terroristas provenientes das articulações da OTAN com parte dos serviços secretos italianos.
O livro descreve, minuciosamente, aquele período, apontando fontes de várias origens, não somente da imprensa italiana não controlada pela democracia-cristã, mas também da Anistia Internacional e de participantes daquele período. Descreve, apoiado em fontes documentais, o clima político de violência desmedida daqueles anos tristes da democracia italiana: as relações dos grupos fascistas com os serviços secretos italianos, os vínculos da máfia com o poder empresarial e político daquele tempo, a cumplicidade de uma parte da Magistratura italiana com a “exceção”.
(Esta “exceção” foi promovida, igualmente, pelo conúbio de uma parte significativa dos chefes da democracia cristã com o terrorismo de direita, que precedeu as ações violentas dos grupos comunistas dissidentes, cujo ápice foi o atentado à Estação de Trens de Bolonha, que matou trezentos inocentes).
O que inquieta e deve ser sempre rememorado é porque tudo isso não foi debatido pela mídia, que tratou de esconder a verdadeira natureza do processo e os seus aspectos materiais fundamentais, e porque o Ministro Cezar Peluso, no seu voto, distorceu ou omitiu todo o quadro histórico que poderia deslindar a situação “política” dos delitos imputados a Cesare Battisti. Ignorância? Má fé?
Não creio, sinceramente, que algum Ministro do Supremo tenha agido por ignorância ou má fé, embora não seja bom se impressionar com longas e catárticas citações nos seus votos, pois qualquer trabalho de fim de curso, nos dias de hoje, socorre-se do “google” e apresenta textos que parecem ser, mesmo, obra de juristas eruditos de renome. Na pós-modernidade fraudulenta, o que caracteriza a sabedoria e o conhecimento, é mais saber procurar na internet do que ter adquirido rudimentos de história e filosofia, para compreender os fenômenos sociais e jurídicos.
É óbvio que a ideologia do julgador sempre imprime um condicionamento na escolha das diversas possibilidades de manejo das leis e, exatamente por estar ciente disso, é que o ponto de partida metodológico do decidir -principalmente em questões desta natureza- não é a paixão por “um dos lados”, uma das “partes” políticas em confronto.
O ponto de partida metodológico deve ser não a luta de classes em estado puro -“proletários armados” versus parte da “burguesia mafiosa”, ocupando parte do Estado, mas os valores universais que estão em jogo. Por quê? Precisamente porque a contenda, como fato histórico concreto, pode não ser exatamente esta que descrevi. Então, as coordenadas para decidir devem ser buscadas nas conquistas universais do humanismo moderno e não nos “gosto” primário dos julgadores.
No caso concreto de Battisti o que estava em jogo, como disputa de valores, era o seguinte: a presunção da inocência; a presunção de que os grupos armados, naquela oportunidade, poderiam estar se insurgindo contra governos e Estados que “fecharam”, na época, a sua possibilidade de transformação dentro da democracia; a presunção de que os grupos de poder, no momento (no país requerente da extradição), estavam fazendo-o por meios ilegítimos. A presunção de que o governo que pedia a extradição no momento (lembremo-nos de Berlusconi) não demonstrava interesse na preservação do Direito Internacional Humanitário. Esta é a análise que faltou ao Estado brasileiro, no momento em que foi entregue Olga Benário ao nazismo. E era o que a mídia, associada às teses do governo italiano, tentou me impor na oportunidade.
Estes valores são valores democrático-liberais e estão sintetizados na grande rede de direitos que protege o cidadão do arbítrio do Estado e dos abusos de poder, que lhe são inerentes, em qualquer regime. Fundados nesta visão é que nós -no Ministério da Justiça, na mesma época do “affaire” Battisti - concedemos diversos refúgios a cubanos que estavam no Brasil, sem nos deixar influenciar sobre o juízo –inclusive diverso- que a nossa equipe tinha, na oportunidade, sobre o regime vigente em Cuba.
Lendo o livro do professor Lungarzo entende-se porque, naquela oportunidade, a mídia nativa (majoritariamente), mentiu de forma reiterada sobre a questão dos cubanos, baseada numa informação preliminar falsa do jornalista Elio Gaspari: era preciso desmoralizar o Ministro da Justiça, para legitimar uma extradição ilegal, que supunham já tinha maioria no Supremo. Divulgar mentirosamente que, ao mesmo tempo em que eu “dava refúgio a Battisti” - um “terrorista”- “entregava” os cubanos para a “ditadura castrista”, era formar uma aura de simpatia em torno do STF, para colocar Battisti à disposição de Berlusconi e sua máfia de poder.
Na verdade, ficou provado é que os próprios cubanos que voltaram a Cuba, assistidos pelo Ministério Público Federal e pela OAB, escolheram voltar. Depois declararam isso no exterior, com escassa repercussão na mídia brasileira.
A manipulação da informação no caso Battisti não é uma “questão menor” para a democracia brasileira: trata-se da questão da igualdade de meios, numa democracia formal, para dar efetividade a direitos fundamentais, como a liberdade de imprensa, que só tem sentido se for correlacionada com o direito concreto à livre circulação da opinião, sem o qual a liberdade de imprensa passa a ser um mero aparato de dominação destinado a divulgar as opiniões dos “donos” das empresas de mídia.
Em várias passagens do seu voto o Ministro Peluso, originário da magistratura paulista, que teve como mestres Alfredo Buzaid -o Ministro a Justiça da ditadura cujo maior feito foi encobrir as torturas cometidas nas masmorras do regime- e Miguel Reale, prestigiado filósofo do Direito, simpatizante das ideias de Mussolini e dos programas jurídicos “democráticos” do regime militar”- não só desdenhou da minha formação jurídica como manipulou as provas no processo, com o objetivo de extraditar Battisti e entregá-lo ao republicano governo Berlusconi.
Na primeira parte eu acho que ele tem razão, pois os meus mestres são outros: sou mais Ernst Bloch, Ferrajoli e Konrad Hesse, do que Buzaid e Miguel Reale. Quanto à segunda parte, manipulação das provas no processo de extradição, trata-se de uma questão de cultura geral. Recomendo ao agora ex-ministro que leia um pouco mais, informe-se um pouco mais, ouça um pouco mais pessoas que tenham formações intelectuais diversas daquelas dos seus mestres, para julgar mais de acordo com Kant do que com Mussolini: mais “valores” e assim menos contingência ideológica transmitida pelos mestres imediatos. Ainda bem que ainda tem Juízes em Berlim e o Brasil ainda tem Presidentes dignos deste nome.
Assinar:
Postagens (Atom)