Em entrevista publicada no jornal
Valor Econômico, de 2 de setembro de 2013, o economista Chris Hurt, conceituado especialista em economia rural dos EUA, descartou qualquer cenário de crise estrutural para o agronegócio no futuro.
Chris assegura que o ciclo de alta dos preços agrícolas iniciado há sete anos teria chegado ao fim, com os preços retornando à sua trajetória histórica, mas sem perspectiva de colapso, pois o aperto nas margens seria facilmente suportável pelos produtores.
O especialista projeta que doravante, por muitos anos, prevalecerá situação de equilíbrio entre oferta e demanda alimentar. Considera exageradas as previsões de incremento da demanda por alimentos feitas por instituições como FAO e OCDE, pelas quais a agricultura enfrentaria dificuldades para alimentar 9 milhões de pessoas até 2050. Para embasar essa avaliação Hurt prevê a estabilização da demanda chinesa por carnes e, por conseguinte, das demandas de soja e milho, em patamares mais modestos. Também prevê a redução da utilização do milho para a fabricação do etanol nos EUA que já teria alcançado o seu pico (125 milhões de toneladas anuais).
As projeções desafiadoras do especialista americano não podem ser desconsideradas, mas devem ser relativizadas. Com efeito, foram divulgadas no contexto do lobby em prol dos biocombustíveis junto aos Congressistas daquele país. Hurt fez referência ao debate realizado com Deputados americanos onde aconselhou: “se vocês querem ver a agricultura americana e mundial entrarem em colapso ouçam esses produtores de aves e acabem com o RFS” (Lei dos Combustíveis Renováveis na sigla em inglês).
De certa forma denunciando as motivações políticas da avaliação, Hurt pondera que de todo o modo o mundo está preparado para aumentar de forma significativa a oferta agrícola à medida que haveria muita área e tecnologia a serem incorporadas ao processo produtivo.
Essa visão exposta por um representante de prestígio da academia dos EUA ocorre num momento em que membros da academia brasileira também divulgam visões ufanistas sobre o agronegócio brasileiro não admitindo possibilidades de crise à vista, pelo contrário.
Ambas as iniciativas poderiam ser tidas como um ensaio de ofensiva global do agronegócio pela ‘desconstituição’ das previsões de cientistas e instituições que vislumbram ameaças futuras para a segurança alimentar em todo o mundo pela incompatibilidade do modelo de agricultura dominante com fatores econômicos e ambientais cujas interações poderão colapsar os seus níveis de rentabilidade.
O fato é que algumas variáveis foram ignoradas na formação dos prognósticos do intelectual americano. É verdade que as previsões indicam que a China, o grande motor dos mercados agrícolas nos últimos anos, continuará ostentando taxas importantes de crescimento econômico, mas em patamares inferiores à média das últimas décadas.
Entretanto, além de centrar em demasia as suas projeções no ‘motor chinês’, relaxando na análise do crescimento demográfico mundial e, sobretudo, nos expressivos contingentes populacionais em processo de urbanização e expansão da renda, a própria China enfrenta dois gargalos estruturais para manter o expressivo desempenho agrícola do período recente, o que tende a consolidar a condição do país como fonte de pressão diferenciada sobre a demanda de alimentos no mercado internacional.
O primeiro gargalo refere-se aos escassos recursos naturais, em especial, a falta de água em várias regiões chinesas que impõem grandes obstáculos para a expansão da atividade agrícola. O segundo, pelo prosseguimento da urbanização naquele país que segundo o Banco Mundial avança à taxa de 2.5% ao ano (posição de 2011), significando que 15 milhões de pessoas deixam as áreas rurais a cada ano.
No artigo
China Gigante Também na Agricultura, publicado na mesma edição da Revista antes citada, Eliana Covolan e Elisio Contini destacam que a população rural chinesa vem decrescendo ano a ano, tendo sua participação no total caído de 62% em 2002 para 53%. Asseguram, ainda, que “A migração rural-urbana deverá continuar, mesmo com possível controle do governo central”. Os especialistas do MAPA apontam que graças a esses dois fatores, a China continuará a buscar a sua segurança alimentar fora do seu território.
Fortalecendo essa hipótese, o
Departamento de Agricultura dos EUA sustentaque em praticamente dez anos contados do ano de 2011, os consumos de milho, soja e carne bovina na China terão aumentado, respectivamente, 44.5%, 58.3% e 23.4%.
A mesma fonte garante que nesse período, ou seja, em apenas uma década, o consumo mundial de milho aumentará 24.3%; o de soja, 36%; e o de carne bovina, 18%.
Assim, admitimos a consistência das previsões da FAO segundo as quais a demanda alimentar em 2050 deverá ser 70% maior comparativamente a 1996 – um grande desafio para a agricultura.
Há alguns anos exploramos esse tema tentando argumentar que o desafio poderá ser enfrentado. Contudo, com mais chances de êxito mediante uma ‘nova agricultura’ baseada, entre outros fatores que discrepam da base técnica atual, na diversidade genética e em unidades produtivas com menores escalas. Neste caso, sem ignorar o imperativo da oferta agrícola em larga escala que poderá ser viabilizada no processo de comercialização com o concurso de formas associativas.
O fato é que fatores econômicos e técnicos próprios da organização do agronegócio, combinados com os efeitos da crise climática sobre a agricultura sinaliza dificuldades nada triviais para a subsistência futura da grande exploração agrícola capitalista sob qualquer forma de organização.
Façamos rápida recuperação de alguns desses fatores:
Razões diversas levaram à trajetória de declínio dos preços reais e, mais ainda, dos níveis de rentabilidade da base primária da agricultura, desde o final da década de 1970. Por essa razão, em especial, a agricultura é altamente subvencionada em particular nos países ricos;
Nos últimos sete anos, a constante volatilidade da oferta agrícola associada às maiores frequência e intensidade de fenômenos climáticos agravada pelos movimentos especulativos com commodities agrícolas pelos fundos de hedge, em particular, provocaram a inflexão na curva dos preços. No geral, esse fenômeno não importou em rentabilidade mais elástica na base primária à medida que os custos de produção também dispararam notadamente daqueles relativos aos inputs químicos. Ademais, parte dos adicionais dos preços passou a ser apropriada pelas corporações que controlam o comércio agrícola.
Segundo o economista americano, entraremos em longa fase de retorno dos preços à sua trajetória histórica. No entanto, caso se confirme, essa previsão apenas aprofundaria a tendência de aperto das margens ‘dentro da fazenda’. Os orçamentos nacionais para apoio à agricultura serão cada vez mais robustos, o que implica considerar que se a variável econômica fosse a única determinante, somente os países ricos teriam condições de sustentar a atividade agrícola enquanto setor econômico estruturado.
Uma das consequências desse cenário seria a concentração ainda maior da oferta agrícola mundial. Observe-se que em 1961, os cinco países principais exportadores de arroz, milho, soja, trigo, carne suína, carne de frango e carne bovina concentravam 56% do volume das exportações mundiais. No ano de 2008, passaram a concentrar 69%.
Mas, não obstante a concentração geográfica, a oferta alimentar, com o perfil de produtos como ocorre na atualidade, corre o risco de forte contração por conta das situações físicas esperadas com a continuidade do processo de mudanças climáticas.
Ao contrário do que defende o economista americano, o mundo já se depara com processo de redução dos níveis da produtividade agrícola. Sobre esse tema tenho citado matérias especializadas das Revistas Science (março/2010) e The Economist (23/03/2011) e do USDA, com estudos demonstrando a trajetória de declínio acentuado da produtividade agrícola mundial.
As pesquisas demonstram que a produtividade dos alimentos básicos declinou de 3% aa na década de 1960 para 1% aa, na atualidade.
A propósito, no dia 18 de setembro, foi divulgado o
Informe da Conferência da Unctad sobre Comércio e Meio Ambiente/Revisão 2013, que alerta: ”No período recente a taxa de crescimento da produtividade na agricultura caiu de 2% para 1% ao ano.”
Assim, o fenômeno histórico de compressão das margens na fazenda já num contexto de declínio da produtividade tende a assumir graves proporções no futuro, posto que, com as mudanças climáticas, o IPCC/ONU estima em 1/3 a queda dos níveis de produtividade. Isto, caso o aquecimento global não ultrapasse os 2ºC.
No dia 27 de setembro, foi divulgado o Relatório do IPCC com a 5ª revisão das projeções sobre as mudanças climáticas. Segundo os cientistas, no cenário mais favorável a temperatura do planeta subirá 1.8° C neste século e outros eventos climáticos assumirão proporções ainda mais grandiosas.
Consistente com o IPCC, também o recente Relatório do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas prevê cenários absolutamente desafiadores para a agricultura brasileira com quedas significativas de produtividades, migrações de cultivos, etc.
Vale assinalar que os eventos da pesquisa na tentativa de adaptação/mitigação a esses desafios estão limitados à busca de variedades mais resistentes às situações de déficit hídrico e de temperaturas mais altas e, mesmo assim, no limite de 2° C. Ocorre que, além disso, são esperados desequilíbrios ambientais sistêmicos, imprevisíveis e não mensuráveis, como nos casos da proliferação de novos insetos, fungos, etc, elevação do nível do mar. Assim, tem-se como inexorável o declínio significativo da produtividade.
A consulta ao link acima permitirá conhecer a recomendação dos cientistas da ONU/IPCC, sobre o imperativo para a humanidade de uma mudança rápida da produção baseada em monocultura e intensiva em químicos, para uma diversidade de sistemas de produção sustentáveis que melhorem a produtividade dos pequenos agricultores. Advertem que a mudança climática afetará drasticamente a agricultura, principalmente nos países em desenvolvimento e que a transformação fundamental da agricultura pode ser um dos maiores desafios, inclusive para a segurança internacional, no século 21.
Em suma, considerando ainda o contexto de erosão da biodiversidade no mundo, fruto da ‘agricultura moderna; a progressiva restrição da disponibilidade de água para a continuidade dessa atividade no futuro; os desequilíbrios ambientais sistêmicos previstos, há que se pensar, de imediato, em uma ‘nova agricultura’ no decorrer do século XXI, sob pena de possíveis crises alimentares globais que desdobrarão em eventos sociais e políticos imponderáveis.
À medida que, no presente século, dificilmente ocorrerá a evolução do tipo de agricultura atualmente praticada, para um conceito de alta densidade com a drástica redução dos espaços ocupados pelas plantas, é imperativo criar as condições para o padrão de agricultura recomendado pelos cientistas da ONU.
O Brasil tem todas as condições para liderar esse processo e há uma ‘janela de oportunidade’ histórica para as lutas pela democratização da posse e uso da terra em nosso país. Assim, creio que a luta pela reforma agrária adquire, na atualidade, essa dimensão estratégica que ultrapassa os seus objetivos clássicos.
Nesse ambiente de ameaças, o Brasil intensifica trajetória no sentido oposto àquele que o pensamento estratégico recomendaria, sob o patrocínio direto e massivo do Estado.
Por sua vez, diversamente do que ocorre com as lutas dos movimentos sociais do campo, a pauta dos ruralistas, além de focada nas demandas tidas como estruturantes, tem na disputa por território o seu ponto nuclear.
A voracidade do agronegócio pelo controle sem limites do território ignora direitos difusos (meio ambiente, sobretudo) e áreas institucionalmente protegidas, para desconstituir territórios indígenas, quilombolas e unidades de conservação, áreas de reforma agrária, etc. O controle financeiro, técnico, econômico e, por conseguinte, político, do agronegócio brasileiro pelo capital internacional, conjugado com a estratégia interna deliberada de transformação do país no “fazendão do mundo” resultou na ampla abertura fundiária do Brasil ao capital externo. Praticamente não há empecilhos institucionais para a posse da terra no Brasil, sem limites, por pessoas estrangeiras.
É possível que o próximo Censo Agropecuário ateste um importante processo de reconcentração da propriedade fundiária no Brasil, em função da investida por mais terra pelos capitais do agronegócio visando não apenas mais áreas para a sua expansão, mas, também, para a especulação com mercados de bens ambientais intangíveis (tipo carbono), o mercado de cotas de reserva legal, e a própria especulação com alimentos e o controle de recursos naturais.
Afora esse fenômeno, também é possível que finalmente o IBGE venha a resgatar e revelar a destinação dos milhões de hectares ‘ocultos’ no Brasil (Amazônia, em especial) - não revelados pelo Censo Agropecuário. Uma das hipóteses é que essa área próxima a 200 milhões de hectares esteja camuflada pela grilagem e que poderão finalmente ‘esquentar e aparecer’ mediante o uso das inovações nos mercados com bens ambientais contidas no Novo Código Florestal.
A partir da discussão das circunstâncias acima, a ABRA definiu dois pontos centrais da sua agenda: (i) aprofundar as interpretações sobre a questão agrária na atualidade, intensificando o foco na defesa da reforma agrária destacando o tema da leniência institucional com o exercício do direito à propriedade fundiária no Brasil; (ii) as ameaças já existentes para o abastecimento alimentar no Brasil. Neste caso, vivemos a inacreditável situação na qual o agronegócio, com o apoio massivo do governo, exporta 100 bilhões de dólares ao ano, em grande parte para alimentar animais no exterior, e que não produz comida para a população brasileira, inclusive, sendo responsável pela evolução do IPCA dos alimentos em patamares acima do IPCA geral.
Por fatores como esses é que a Presidenta Dilma, ao garantir que com o pré-sal não deixará o Brasil sucumbir à ‘maldição do petróleo’, poderia voltar a atenção do governo para libertar o país da ‘maldição já instalada do agronegócio’, sem contar a ‘maldição do ferro’.
Como disse acima, nessa área nevrálgica, o Brasil vem caminhando na contramão do que recomendaria qualquer visão estratégica para o futuro do país.
O programa de assentamento de reforma agrária é o exemplo mais notável desse divórcio com os interesses superiores do Brasil. Os dados da obtenção de grandes propriedades improdutivas pelo instrumento de desapropriação sancionatória nos últimos 18 anos estão refletidos nos gráficos do álbum de fotos. A primeira revela o número de Decretos de Desapropriação; a segunda, a área correspondente.
A negação da reforma agrária e o progressivo recuo, mesmo da política celular de assentamentos, tem sido acompanhada da execução de uma política para a agricultura familiar que, no geral, induz ao distanciamento dos fundamentos da economia camponesa e seu ajustamento às bases técnicas e organizativas da agricultura do agronegócio. Com isso, até mesmo a vocação para a produção de alimentos pelos agricultores familiares tem sido interditada com o seu progressivo direcionamento para a pauta do agronegócio. Enquanto isso, o capital internacional, especulativo ou não, investe em terras, também para alimentos, pois sabem que rigorosamente se trata de um ‘negócio da China’ no presente e, mais ainda, no futuro.
Na ofensiva conservadora pela exaltação da hegemonia e da suposta excelência tecnológica do agronegócio, vimos recentemente até intelectual convertido anunciar a ‘pá de cal na reforma agrária’.
Somente ranço ideológico pode motivar proclamação contra a cidadania brasileira nessa proporção. OK que motivações ideológicas bloqueiem expectativas por uma sociedade mais justa e igualitária e impeçam visões de futuro para o país. Mas, pregar o fim da reforma agrária num país cuja realidade fundiária abriga 219 imóveis com áreas entre 50 mil e 100 mil hectares acumulando 73 milhões de hectares e, no outro extremo, 1.9 milhão de imóveis de até 10 hectares detendo 8.8 milhões de hectares, de fato é uma afronta aos sentimentos e anseios mais elementares de cidadania e prova de absoluta capitulação às causas históricas do atraso e da segregação social do país.
Enfim, no contexto acima, camponeses/agricultores familiares, trabalhadores rurais, comunidades tradicionais, quilombolas, comunidades indígenas, devem lutar pela sobrevivência no presente com o pensamento de redenção política num futuro mais ou menos próximo a depender das suas capacidades de organização, unidade e luta em torno das suas demandas que efetivamente estruturem esse cenário.
Após décadas, em 2012, impulsionados pela extrema adversidade da correlação de forças os camponeses decidiram voltar a dialogar em torno de uma agenda unitária de lutas.
Iniciativas da espécie carecem de um tempo de pegada e maturação. Daí a relevância da decisão coletiva por uma nova edição do Encontro Unitário dos Trabalhadores, Trabalhadoras e povos do campo, das águas e das florestas, o que revela a determinação para dar seguimento à pauta de lutas comuns dos camponeses.
Conforme registrei, o latifúndio tradicional, os capitais que controlam o agronegócio e a grande empresa agropecuária procuram a ampliação sem limites do controle da terra e dos recursos naturais, pois sabem do caráter estratégico desses recursos.
Para os camponeses a luta pela simetria da posse da terra se reveste de importância que transcende os seus interesses seccionais assumindo dimensões de segurança e soberania nacional. Significa conservar a biodiversidade; a imposição de limites ao processo de ‘tomada de terras’ por estrangeiros, em curso no Brasil; a garantia da aplicação das nossas potencialidades agrícolas para a segurança alimentar da população e para outras finalidades estratégias do país; pavimentar as condições para a ‘nova agricultura’ já reclamada pelo futuro; significa, enfim, a reversão da realidade atual na qual grande parte do território nacional foi transformada em extensão do território de outras nações para uso prioritário ao atendimento das demandas da segurança alimentar das respectivas populações.
Nesses termos, avalio que as lutas pela reforma agrária e pelo aumento do protagonismo da agricultura familiar e camponesa na produção de alimentos devam assumir a absoluta centralidade da agenda das lutas unitárias.
Não ignoramos a amplitude da agenda de demandas emergenciais dos camponeses, tampouco que, o alvo de última instância das lutas é o dificílimo embate contra o conjunto do modelo do agronegócio, blindado pelo capital e pelo Estado.
Mas, sem prejuízo do conjunto desses esforços, as reflexões sobre as lutas unitárias poderiam considerar a centralidade desses dois pontos fundantes para outro projeto rural para o Brasil com o protagonismo diferenciado dos camponeses de um modo geral, até porque são duas bandeiras que unificam os trabalhadores e trabalhadoras rurais do país.
Gerson Teixeira é engenheiro agrônomo, especialista em desenvolvimento agrícola pela Fundação Getúlio Vargas (FGV/RJ) e presidente da Associação Brasileira de Reforma Agrária – ABRA.