domingo, 30 de setembro de 2012

O conservadorismo paulistano abraçou Russomanno


Depois de uma manhã com gosto amargo e de sonhar que deixava a cidade por quem sempre fui apaixonado, estava aqui almoçando e conversando com Elisa Marconi, compartilhando agonias e jogando ideias ao vento, tentando entender e decifrar o enigma Celso Russomanno.

CHICO BICUDO


Considerando o que tem acontecido na cidade nos últimos tempos (incêndios em favelas, especulação imobiliária, rampas contra moradores de rua, proibições infinitas, racismo, suásticas pintadas em muros de escolas, vociferações contra nordestinos, para citar apenas alguns exemplos asquerosos), olhando para os mapas das pesquisas eleitorais e considerando análises de intelectuais como Marilena Chauí, Vladimir Safatle e Boris Fausto (além de um texto fundamental da jornalista Eliane Brum - "Russomanno e a vulgaridade do desejo"), é possível, em linhas gerais e lamentavelmente, constatar que São Paulo decidiu abraçar de forma inexorável, mergulhar de cabeça mesmo, sem pudores e com convicção, na construção e realização de um projeto reacionário de cidade.

Mas o conservadorismo que sustenta Russomanno não é bloco absoluto, homogêneo, de matriz ou raiz única. Num primeiro nível, trata-se do histórico desejo de "ordem e segurança" da tradicional classe média excludente paulistana, a elite branca desde sempre autoritária e anti-petista (embora o PT atualmente esteja muito longe de representar qualquer ameaça ao estado das coisas), mas que se desencantou com a figura (o sujeito, o indivíduo, o político) José Serra e que respira aliviada por poder recorrer e pedir socorro a um "novo" xerife. Não ficará órfã. Por essa razão, o candidato do PRB vai bem nas pesquisas em tradicionais redutos tucanos, como Pinheiros, Perdizes, Jardins, Higienópolis, Casa Verde e Vila Maria.

Em outro movimento, não menos importante, nota-se atração e encanto explícitos por Russomanno daquela que vem sendo chamada de nova classe média. São atores sociais que foram beneficiados pelas políticas sociais colocadas em prática no Brasil nos últimos dez anos, filhos diretos do lulismo, e para quem a razão de ser da existência humana passou a ser a capacidade de compra, sem necessariamente realizar a máxima iluminista que diz que a cidadania plena só pode ser exercida por meio da garantia e da manifestação cotidiana dos direitos humanos. Desejam ardentemente ter, sem necessariamente vislumbrar a perspectiva de ser - até porque, de acordo com a lógica e o discurso político que abriram espaço para tal ascensão (sempre o lulismo), ter significa ser.

Dispostos a não perder o que conquistaram, apostam em alguém que avaliam ser capaz de garantir o consumo dos serviços e de outros atrativos que a cidade possa oferecer. Aqui, vem à tona com força a figura do defensor do consumidor. Quem melhor do que Celso Russomanno para cumprir esse papel nesse momento? Essa variante ajuda a entender a invasão e o estouro de votos do candidato no PRB nas franjas e nas periferias da capital paulista, sendo também o preferido de eleitores de bairros como Guaianases, São Mateus, Cidade Tiradentes, Grajaú e Parelheiros, umbilicalmente ligados até aqui a candidaturas do PT.

Como se vê, por razões diferentes, as aspirações das duas classes se encontram, como revela a lucidez de Eliane Brum no texto citado, quando a jornalista escreve: "Para além das diferenças, que são muitas, há algo que tem igualado a socialite que faz compras no Shopping Cidade Jardim, um dos mais luxuosos de São Paulo, ao jovem das periferias paulistanas carentes de serviços públicos de qualidade. E o que é? A identificação como consumidor, acima de todas as maneiras de olhar para si mesmo - e para o outro. É para consumir que boa parte da população, não só de São Paulo, quanto do Brasil urbano, tem conduzido o movimento da vida - e se consumido neste movimento".

Por vias tortas, parece que o ex-presidente Lula será mesmo ator político fundamental e decisivo na definição do futuro prefeito de São Paulo - no entanto, talvez o escolhido da população não seja o abençoado pelo líder petista.

Francisco Bicudo é jornalista e professor de Comunicação Social.

Jornalista francesa denuncia crimes sexuais de Kadafi


Jornalista francesa denuncia crimes sexuais de Kadafi

A jornalista francesa Annick Cojean apresenta, em seu novo livro, um cenário que torna as orgias do ex-presidente italiano Silvio Berlusconi brincadeiras de crianças no jardim da infância. Segundo testemunhos colhidos pela jornalista Kadafi jogou com o sexo, a vida ou a morte, sequestrou adolescentes e determinou a criação de bordeis pessoais até mesmo no interior da Universidade de Trípoli. O artigo é de Eduardo Febbro.

Paris - Para os admiradores do falecido Coronel Kadafi, sobretudo aqueles que gravitam na galáxia da esquerda global e tinham por ele uma devoção irretocável, o livro da jornalista francesa Annick Cojean vai cair como uma bomba. Aos demais amigos de Kadafi, ou seja, os empresários ocidentais que fizeram negócios enormes com ele nos últimos 10 anos, a obra talvez os deixem pasmos. Ao largo de uma investigação alucinante, Annick Cojean revela a densidade íntima do falecido coronel. Assim como dele, de outro presidente falecido, o iraquiano Saddam Hussein, muito se sabia sobre as andanças e as perversões de seus filhos, mas pouco de sua intimidade.

A jornalista francesa apresenta um cenário que torna as orgias do ex-presidente italiano Silvio Berlusconi brincadeiras de crianças no jardim da infância. Kadafi jogava com o sexo, a vida ou a morte, sequestrava adolescentes, violava seus próprios ministros e determinava a criação de bordeis pessoais até mesmo no interior da Universidade de Trípoli. Annick Cojean não escreveu mais um desses livros formados com informação pusilânime, tirada da internet, mas com informações obtidas in loco, com testemunhos que aparecem em “Les Proies. Dans le harem de Kadhafi”[As Presas. No Harem de Kadhafi], ed. Grasset. O relato de Soraya – uma das vítimas sexuais de Kadafi – que abre o livro leva o leitor às páginas mais duras da obra do Marquês de Sade. Kadafi foi um seguidor deste que, em suas práticas, superou o divino marquês. Fez do sexo uma arma política de submissão e abuso.

A informação contida no livro deixa muito atrás os retratos caricaturais de um tirano megalômano que circulavam, de alguém que se fazia chamar de “Papa Muamar”. O chamativo Coronel mandava sequestrar jovens de 14 anos, as violava, para depois obrigá-las a presenciar suas relações sexuais com os homens. Ao final, o guia supremo de um país esmagado por suas botas utilizaria o sangue das mulheres virgens para usá-lo nas cerimônias de magia negra. 

A primeira parte da investigação de Cojean contém o relato de Soraya, uma jovem sequestrada em 2004, quando tinha 14 anos, durante uma visita de Kadafi à escola de Syrte. Hoje ela tem 22. Soraya foi mantida em cativeiro sexual durante cinco anos, no subsolo da residência de Kadafi em Trípoli, Bab Al Aziza. Como tinha medo de pegar Aids, antes de sequestrar a menina ele a submeteu a um exame médico. A partir do relato de Soraya se percebe a prática metódica dos abusos e dos constrangimentos: estupros, golpes, insultos – chamava-a “cadela” ou “puta”, segundo conta Cojean. Kadafi urinava sobre ela, torturava-a com golpes e a forçava a consumir a cocaína que ele mesmo cheirava diariamente, sem descanso.

Além de autoritário, Kadafi era um drogado e alcoolista contumaz. Soraya não é mais do que uma amostra do que ocorreu a centenas de mulheres que foram sequestradas e submetidas às investidas sexuais do coronel e do seu entorno. Kadafi era um caçador. Ele mesmo escolhia as mulheres em todas as ocasiões que se lhe apresentavam: discursos políticos, banquetes, casamentos, passeios pela cidade, entrega de condecorações, recepções diplomáticas, desfiles militares. Muitas das famosas amazonas que constituíam sua guarda pessoal tinham passado antes pelas salas de tortura sexual.

Dias, meses ou anos, o destino dessas mulheres variava segundo os caprichos do coronel. Kadafi as escolhia com muito detalhe: “Passava horas revendo os vídeos dos casamentos, escolhendo entre as fotos que seus assessores tinham selecionado”, conta Cojean. A mão de Kadafi sobre a cabeça de uma mulher em alguma festa ou ato público era uma sentença de morte. Seus assessores chamavam a esse gesto de “toque mágico”. 

Annick Cojean conta que “muitos diplomatas e membros dos serviços secretos ocidentais sabiam parte da verdade sobre os costumes de Kadafi. Suas vítimas se fecharam em segredo. Antes não podiam dizer nada. Kadafi comandava tudo. Hoje, depois de sua morte, falar as levaria a perder tudo. A pressão social, cultural e religiosa é tal que essas mulheres não serão jamais reconhecidas como vítimas”. E, no entanto, o horror está aí, de portas abertas, visível no subsolo da Universidade de Trípoli, onde, depois da queda do regime, os rebeldes encontraram um quarto com uma cama gigantesca, uma jacuzzi com torneiras banhadas a ouro e, ao lado, outro quarto que servia de consultório de ginecologia. Muito prático para o coronel, em caso de aborto.

Até o último momento Kadafi fez do sexo uma arma de guerra. Durante os dias da revolução que precipitou a sua queda, a Líbia importou contêineres cheios de viagra destinados aos homens das tropas que ocupavam as cidades e estupravam em massa as mulheres. O livro da jornalista do jornal Le Monde leva a investigação para muito longe. Não resta nenhum inocente, menos ainda nos serviços secretos ocidentais. Um diplomata consultado pela autora admite que os serviços secretos de Kadafi enviavam sua assessora secreta, Mabrouska, para buscar mulheres em Paris, Londres ou Roma. Ela as atraia com presentes milionários para levá-las aos braços do coronel. Sexo e governo, uma combinação utilizada ao extremo.

Um dos membros de seu staff mais próximos dele relatou a Annick Cojean que o déspota “governava, humilhava, submetia e sancionava por meio do sexo”. Não se salvava ninguém, nem seus próprios ministros, a quem estuprava regularmente, nem as mulheres dos embaixadores ou dos presidentes africanos que os visitavam. Só havia um rei e o rei era ele. 

A jornalista francesa inclui em seu livro outro apavorante testemunho direto de uma das vítimas de Kadafi. Trata-se de Khadija, uma mulher jovem que passou alguns anos como escrava sexual de Kadafi até ele decidir passá-la adiante. Em vez de matá-la, Kadafi decidiu que ela iria se casar com outro militar. Khadija viu nessa outra vida uma salvação. Antes de casar-se decidiu viajar a Túnis para que reconstruíssem seu hímen. Kadafi ficou sabendo e, um dia antes de sua viagem a Túnis fez ela ir ao palácio e a estuprou mais uma vez.

Quantas foram as vítimas de um personagem a quem seus adeptos fora da Líbia qualificavam de um “sedutor compulsivo”? Antes um estuprador em série que um sedutor. “Centenas”, responde a autora do livro. O sexo, arma de guerra e arma política empregada inclusive contra os seus próprios soldados. Na Líbia de Kadafi circulava um vídeo onde se via um soldado esquartejado por dois automóveis: o militar havia ousado protestar, porque o senhor de Trípoli estuprou sua mulher. 

O medo do abuso sexual era tal que até os mais fiéis servidores se cuidavam. Mansour Daw foi um deles, e não qualquer um. Mansour Daw foi o chefe da segurança de Kadafi. Hoje está na prisão e assegura, no livro, que não renega nada do que o fez o regime, menos ainda “a parte privada”. Quando seu filho se casou, Daw proibiu que na festa tirassem fotos para que as imagens não circulassem, a fim de evitar que as convidadas viessem a se tornar vítimas do coronel.

Tradução: Katarina Peixoto

“A democracia é uma ameaça ao Estado israelense”, diz deputada palestina


“A democracia é uma ameaça ao Estado israelense”, diz deputada palestina

Haneen Zoabi, deputada palestina do parlamento de Israel, denunciou a discriminação sofrida pelos árabes no país judaico e explicou a proposta de seu partido de um Estado israelense democrático, que, segundo ela, “choca-se diretamente com o projeto sionista”. Suas declarações marcaram o lançamento em São Paulo do Fórum Social Mundial Palestina Livre, que será realizado entre 28 de novembro e 1° de dezembro em Porto Alegre.

São Paulo - Em qualquer país do mundo, os imigrantes reivindicam direitos iguais aos nativos. Em Israel, acontece o contrário: os nativos é que pedem igualdade aos imigrantes. Um quinto (18%) da população israelense é palestino. São árabes com cidadania de Israel vivendo dentro dos limites do Estado judaico. E que são discriminados sistematicamente pelo governo.

O Estado israelense não esconde um dos seus maiores medos: o crescimento mais acentuado da população árabe em relação à judia. Por isso, vem aprovando nos últimos anos inúmeras leis que garantem a natureza hebraica de Israel. “O sistema legal não está relacionado com a ocupação, e sim com a natureza do Estado hebraico. Em Israel não existe Constituição. E existem 30 leis que legitimam o racismo contra os cidadãos palestinos”, denunciou Hannen Zoabi, 43 anos, a primeira mulher palestina eleita para o Knesset (o parlamento israelense) por um partido árabe.

Suas declarações marcaram o lançamento em São Paulo do Fórum Social Mundial Palestina Livre, que será realizado entre 28 de novembro e 1° de dezembro em Porto Alegre. O evento tem como objetivo “unir forças e criar estratégias conjuntas visando exercer pressão internacional para assegurar a mais estrita observância dos direitos do povo palestino – hoje submetido a uma violenta ocupação militar e ao regime de apartheid – e para apressar o fim dessa ocupação”.

Diante da realidade vivida pelos palestinos, o partido de Haneen, a Aliança Nacional Democrática (uma agremiação árabe-israelense), propõe o que chama de “Estado de cidadania”, ou seja, que o Estado de Israel seja de todos os cidadãos, inclusive os de origem árabe. “Para nós isso é uma revolução. Essa proposta desafia o Estado israelense, pois o projeto sionista reivindica um Estado judaico. Então, o Estado de cidadania choca-se diretamente com o projeto sionista”, disse a integrante do Knesset.

Ela lembrou que recentemente o primeiro-ministro israelense Benjamin Netanyahu declarou existir três ameaças a Israel: o Irã, o Hezbollah e as propostas internas de democratização do Estado judaico. “O projeto democrático que os árabes estão apresentando representa o mesmo perigo que os reatores nucleares do Irã. Ou seja, a democracia é uma ameaça ao Estado israelense. Para Israel, tornar visível esse contraste entre a democratização do Estado e a ‘judaicização’ do Estado é uma ameaça”, analisou Haneen, que, assim como outros integrantes de seu partido, corre o risco de ser impedida de se candidatar nas próximas eleições para o parlamento israelense. O pretexto oficial é a participação na chamada Flotilha da Liberdade, frota de barcos que pretendia furar o bloqueio à Faixa de Gaza com ajuda humanitária e que foi atacada pela Marinha de Israel em 31 de maio de 2010, deixando nove mortos. Mas a deputada revela que o problema principal é justamente a proposta do Estado de cidadania.

Para reforçar o caráter judeu de seu Estado, o governo israelense vem reforçando medidas de “desaparecimento” da identidade palestina, explicou Haneen. “Por exemplo, eu não existo para a Lei de Educação”, disse. Segundo ela, não se permite o ensino dos acontecimentos de 1948 (quando foi criado o Estado de Israel) e da literatura de resistência palestina nas escolas árabes. Além disso, lembra, no ano passado foi aprovada uma lei que proíbe a celebração do Nakba (catástrofe), como os palestinos denominam o êxodo originado da criação de Israel.

De acordo com Haneen, a política “racista” do Estado israelense faz que 50% dos palestinos que vivem no país estejam abaixo da linha de pobreza – e que uma família judia tenha uma renda três vezes superior a de uma família árabe. Pior ainda para as mulheres palestinas, que apesar de terem um nível de educação maior que dos homens, sofrem bem mais com o desemprego. 

“Estudamos mais, mas temos de ficar em casa por não termos trabalho. Por que há mais oportunidades para os homens palestinos? Porque podem sair de suas casas e ir a outra cidade trabalhar. O trabalho da mulher palestina está relacionado ao desenvolvimento do ambiente de sua cidade ou vilarejo. Se ela não tem acesso ao desenvolvimento industrial de sua região, tem de ficar em casa. O problema não é a mulher, é o Estado que não está desenvolvendo seu ambiente.”

Umbanda e Santo Daime influenciam saúde mental e física


Estudo realizado no Instituto de Psicologia (IP) da USP apresentou a relação entre religiosidade e saúde ao analisar duas religiões brasileiras: Santo Daime, que faz uso sacramental da bebida psicoativa Ayahuasca, e a Umbanda, ambas com rituais fundamentados em práticas de estados diferenciados de consciência.

Mariana Grazini
Práticas religiosas mostraram ser eficientes no combate a distúrbios como a depressão
A psicanalista Suely Mizumoto, em sua dissertação de mestrado Dissociação, religiosidade e saúde: um estudo no Santo Daime e na Umbanda, fez suas observações a partir  das condições de saúde e de indicadores de bem estar psicológico e social dos membros envolvidos na pesquisa.
Constatações
Entre diversas constatações, adeptos do Santo Daime e da Umbanda apresentaram diferenças significativas quanto à redução da frequência de mudanças de humor e de sentimentos contraditórios, e quanto ao aumento de domínio sobre essas alterações.  As diferenças foram baseadas nas experiências anteriores e posteriores à participação nos rituais de cada religião. Quando comparados a um grupo controle, os adeptos mostraram ter maior equilíbrio de humor e emoção. Os praticantes do Santo Daime ainda revelaram ter maior domínio sobre quadros de base depressiva. Já na Umbanda, o aumento de domínio foi mais aparente em experiências de alteração de identidade.
A comunidade religiosa, provedora de apoio emocional, material e afetivo, pode também ser compreendida como uma comunidade terapêutica para as condições psicológicas estressantes. Os adeptos podem encontrar em suas comunidades suporte em momentos de fragilidade. É comum a quem desconhece a questão do transe mediúnico temer algum tipo de aumento na mediunidade ou descontrole. No entanto, Suely diz que, “na verdade, o aprendizado que essas religiões proporcionam podem ensinar seus adeptos a ter um domínio maior quanto ao enfrentamento espiritual dessas questões, diminuindo experiências mediúnicas traumatizantes”.
Ayahuasca
A dissertação de Suely ainda tratou da polêmica em torno da utilização do psicoativo Ayahuasca. Geralmente condenado, o uso do psicodélico mostrou associar a experiência de cura espiritual — desfrutada por participar aos rituais — a mudanças no estilo de vida dos usuários. A ruptura de velhos padrões com a adoção de outros novos e saudáveis causou reflexo no combate ao risco de dependências da nicotina, álcool, cannabis sativa e cocaína. O ritual com aAyahuasca aumentou, em altas porcentagens, a recuperação declarada quanto ao abuso e risco de dependência para usuários das substâncias citadas.
Na esfera da afetividade, a Ayahuasca serviu como uma espécie de antidepressivo, ou como a psicóloga conta, “aqueles que faziam parte dos rituais com o psicoativo diziam ter os períodos muito longos de tristeza cada vez menores e mais raros, como se a Ayahuasca fosse equivalente a um ‘banho de serotonina’”. Segundo Suely, “é possível que a busca por uma religião que faça uso da ayahuasca possa resultar em efeitos terapêuticos para aqueles vulneráveis a quadros bipolares ou à depressão”.
Método e alguns dos resultados
A dissertação contou com a orientação do professor Wellington Zangari e foi baseada em questionários e escalas aplicadas a um grupo de 106 pessoas; 42 dos voluntários eram adeptos do Santo Daime, 44 da Umbanda e houve também o grupo controle composto por 20 pessoas. O grupo controle serviu para comparar a influência da religiosidade nos participantes. Além disso, tanto no grupo de Santo Daime como no de Umbanda havia a presença de praticantes novatos e experientes.
A psicóloga empregou um questionário que abordava o perfil social, a religiosidade e a saúde, tanto física como mental, dos voluntários. Dados sociodemográficos evidenciaram poucas diferenças entre os grupos, principalmente entre gênero, idade, grau de instrução, faixa salarial e condição de moradia. “Os resultados obtidos dos perfis sociais, saúde e religiosidade e das escalas revelaram indicadores de bem estar que confirmam índices de saúde inteiramente satisfatórios e até melhores quando comparados aos resultados do grupo controle”, relata a pesquisadora.
Contribuições
Não há, até o momento, a precisão da verificação dos resultados apresentados e correlacionados nas comunidades estudadas. Com o tema de sua dissertação, Suely espera incentivar os estudos acerca do psicoativo Ayahuasca e os benefícios a ele associados, em especial, ao seu potencial terapêutico para o tratamento de dependências. Ela buscou amenizar os preconceitos com as religiões afro brasileiras. A Umbanda é um exemplo de religião que trabalha exclusivamente na arte do ensino da prática mediúnica, não faz uso de psicoativos, mas mesmo assim pode ser não bem interpretada. Não havendo nocividade nestas práticas, a relação entre religião e saúde, mais bem esclarecida por esta pesquisa, pode ajudar a desconstruir muito do senso comum que envolve a religiosidade no País.

A época neoliberal: revolução passiva ou contra-reforma?


Uma caracterização sistemática de nossa época - ou seja, a época da globalização ou mundialização do capital, caracterizada pelo predomínio de políticas neoliberais - é uma tarefa ainda não concluída por parte dos marxistas. Para levá-la a cabo, é necessária uma ampla análise de natureza teórica e empírica, que traga até nosso tempo, atualizando-as e revisando-as quando preciso, as categorias da crítica da economia política iniciada por Marx e continuada por muitos de seus principais seguidores. Uma tal análise certamente já começou a dar os seus primeiros frutos; mas, em minha opinião, eles são ainda insuficientes para fornecer uma visão marxista global - que se me permita o jogo de palavras- da globalização.

Carlos Nelson Coutinho
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Carlos Nelson
Por me saber incompetente para tanto, não tenho a menor intenção de fazer, nem aqui nem alhures, sequer um breve esboço desta análise; nem mesmo tenho a pretensão de apresentar um balanço da já extensa literatura marxista sobre este tema. Contudo, creio que pode contribuir para esta obra ainda em gestação uma discussão - de resto, já em curso na literatura gramsciana - sobre a possibilidade de compreender características essenciais da contemporaneidade à luz do conceito gramsciano de revolução passiva. Antecipo minha conclusão, certamente provisória e, portanto, sujeita a correções: sou cético em face desta possibilidade. Creio que, antes de falar em revolução passiva, seria útil tentar compreender muitos fenômenos da época neoliberal através do conceito de contra-reforma, que - como veremos - também faz parte, ainda que só marginalmente, do aparato categorial de Gramsci.
1. Revolução passiva
Antes de mais nada, recordemos brevemente as principais características da revolução passiva, termo que Gramsci recolhe do historiador napolitano Vincenzo Cuoco, mas atribuindo-lhe um novo conteúdo. Trata-se de um instrumento-chave de que Gramsci se serve para analisar inicialmente os eventos do Risorgimento, ou seja, da formação do Estado burguês moderno na Itália. Mas o conceito é também utilizado por Gramsci como critério de interpretação de fatos sociais complexos e até mesmo de inteiras épocas históricas, bastante diversas entre si, como, por exemplo, a Restauração pós-napoleônica, o fascismo e o americanismo.
Essa possibilidade de generalização foi assumida mais tarde por autores que se inspiraram nas reflexões gramscianas. Recordo aqui só poucos exemplos. Christine Buci-Glucksmann e Göran Therborn realizaram uma análise da ação da socialdemocracia européia e da construção do Welfare State com base no conceito de revolução passiva1. Dora Kanoussi, após transformá-lo no conceito central da reflexão gramsciana2 , afirma até mesmo a possibilidade de compreender toda a modernidade como revolução passiva3 . E, mais recentemente, Giuseppe Chiarante valeu-se do conceito para definir a democracia pós-fascista na Itália como um caso particular de revolução passiva4 . A noção de revolução passiva foi também utilizada entre nós para tentar conceituar momentos fundamentais da história brasileira5 . Sem discutir aqui a justeza (ou não) destes e de outros usos do conceito, devemos admitir que eles são metodologicamente autorizados pelo próprio Gramsci, já que foi ele mesmo o primeiro a estender a noção de revolução passiva para inteiras e diferentes épocas históricas.

Uma tragédia social previsível


Especialistas apontam omissão do poder público quanto aos efeitos da construção de grandes usinas hidrelétricas na região.

Revista Fórum
"Eles sabiam que isso iria acontecer"
Maria Berenice Tourinho é doutora em Psicologia Social e do Trabalho e atualmente ocupa o cargo de reitora da Universidade Federal de Rondônia (UNIR). Sobre as transformações ocorridas em Porto Velho nos últimos anos, ela afirma que houve omissão do poder público quanto aos efeitos da construção de grandes usinas hidrelétricas na região. Segundo ela, as crianças e os adolescentes são os mais atingidos pela falta de políticas voltadas à população ribeirinha. Sem condições de sobrevivência, a exploração sexual cresce entre meninos e meninas.
Fórum - Como a senhora avalia os impactos sociais causados pelas usinas de Jirau e Santo Antônio em Porto Velho e regiões adjacentes, sobretudo nos índices de exploração sexual?
Maria Berenice Tourinho - Falando como pesquisadora da área de políticas públicas para a infância e a adolescência, posso dizer que o fenômeno da exploração sexual já acontecia antes por uma questão de sobrevivência, mas não era muito incidente. Com a construção desses grandes empreendimentos, sentimos que a situação aumentou de expressão. Como nós identificamos isso? A partir de várias frentes de pesquisas empreendidas pela Universidade, com os cursos de Enfermagem, Medicina e Ciências Sociais. Os indicadores começaram a demonstrar uma elevação de valores numéricos, e o que chama a atenção é que nós já tínhamos essa leitura mesmo antes da vinda desse intenso fluxo de trabalhadores para a região.
Fórum - Então, os problemas enfrentados hoje eram previsíveis? Na sua opinião, eles também foram avaliados adequadamente pelo poder público e pelas empresas responsáveis pelas obras?
Tourinho - Eles sabiam que isso iria acontecer. Ou, pelo menos, tinham uma ideia. Há dez anos, já era dito que Rondônia receberia as hidrelétricas, aportando o desenvolvimento econômico do país como uma importante matriz energética. Os problemas da comunidade local refletem o impacto causado por um adensamento populacional colonizador e predatório. Isso não é novo na nossa região. Esse é o problema. Nunca houve um investimento consistente, a partir do próprio desenvolvimento necessário às características do lugar. Houve, sim, ações geradas por pressões econômicas internacionais. A história do estado de Rondônia é uma sucessão de casos como esse.
Fórum - Poderia dar alguns exemplos?
Tourinho - Foi assim durante o ciclo da borracha e depois, com a construção da Estrada de Ferro Madeira Mamoré. Mais tarde, veio a exploração de ouro e de cassiterita nos garimpos. Estamos vivendo o quarto e maior ciclo econômico, que é o da matriz energética. E o modelo continua igual: o desenvolvimento nacional impulsionado por demandas internacionais, que geram desgastes e fluxos migratórios intensos, sem o devido aporte. É inviável. Onde isso se reflete? Na fragilidade de vida que as populações locais já têm. Já existe uma ausência histórica do poder público nessas regiões. Por mais que os projetos sejam previstos, anunciados, a mobilidade do governo é absolutamente lenta. As políticas públicas deveriam vir rapidamente atender as comunidades, deveriam estar mais presentes, dando prioridade à parcela da população que se mostra mais vulnerável: as crianças e os adolescentes.
Fórum - O que foi percebido nos trabalhos feitos pela Universidade nos distritos diretamente atingidos pelas obras?
Tourinho - Vou dar um depoimento bem simples. Nós começamos com um projeto preventivo nas escolas, mostrando que seria necessário ter cuidado com o aumento da exploração sexual. E a gente ouvia algumas meninas dizendo: "Sei que não é uma forma muito boa, mas saindo daqui eu vou para o ponto porque é assim que eu posso comprar as minhas coisas. Aqui não tem nada. Se eu ficar trabalhando no campo, nunca vou ter nada". Com isso, tivemos que realinhar os nossos objetivos e passamos a trabalhar mais com a prevenção de doenças sexualmente transmissíveis (DSTs). Nós já tínhamos perdido o bonde...
Fórum - Foi preciso adaptar o projeto a essa nova realidade...
Tourinho - Sim. Outro desafio é que não havia registros de violência porque ela não era concebida como um problema pelo aparelho estatal. Não havia denúncias. Tivemos que fazer um trabalho de campo ouvindo as pessoas, os depoimentos, fazendo registros fotográficos. A gente descobriu o óbvio, mas que a pesquisa constata cientificamente. Havia uma naturalização da violência. Do ano passado para cá é que se montou uma delegacia e um conselho tutelar no distrito de Jaci Paraná. Faltava discussão e um entendimento maior sobre o assunto.
Fórum - E como superar isso?
Tourinho - A gente atuou de forma educativa, capacitando alguns pais que quiseram participar, além de professores, agentes de saúde, representantes de sindicatos, associações e líderes comunitários. Passamos alguns dias falando sobre o que era a violência sexual e por que esses abusos não poderiam continuar acontecendo. Teve também elementos práticos, com demonstração dos métodos preventivos. Conversamos com os adolescentes divididos por faixas de idade, com linguagens diferenciadas. Trabalhamos praticamente em todas as escolas. A meta era atender pelo menos 80 atores sociais em cada um dos distritos de Abunã, Jaci Paraná e Nova Mutum. Conseguimos triplicar esse número.
Fórum - Que tipo de apoio o jovem deveria ter para se manter longe da exploração sexual?
Tourinho - As políticas públicas de prevenção da violência mal chegam à capital, imagine nos distritos mais afastados. Existe uma política maior que diz: "nós precisamos desse projeto de desenvolvimento, vocês é que resolvam suas questões pontuais". As ações são reativas, muitas vezes tentando remediar uma situação que já está dilacerada. A lógica do capital é imperativa em uma região empobrecida e em locais onde o poder público sempre foi ausente. Ainda há um fluxo migratório do Brasil inteiro para lá, fragilizando ainda mais a população. O mote continua sendo o desenvolvimento econômico em detrimento de outras políticas. Agora, nós temos uma preocupação para que isso não se repita em Belo Monte...
Fórum - E as comunidades ribeirinhas? De que forma os povos tradicionais da Amazônia foram afetados pelas grandes obras?
Tourinho - Essas populações não tinham conhecimento da enormidade do impacto. Com o tempo, se sentiram lesadas. Foram tiradas da beira do rio, onde, antigamente, viviam da pesca, do extrativismo, da pequena agricultura e da criação de animais. Sociologicamente, se você quer mudar a população de um local, tem que pensar nas condições oferecidas para ela trabalhar. Na vila que foi construída em Nova Mutum para remanejar os ribeirinhos, por exemplo, a população se queixava de que nem o cachorro pôde levar porque era uma regra de condomínio. Com a incidência do sol, a casa fica muito quente. Começaram a puxar umas lonas, mas não podem fazer isso. Estava previsto ter um lago para criar peixes na vila, como forma de subsistência, mas nunca foi feito. Quem montou comércio em Nova Mutum foram os empresários da capital, Porto Velho. Cadê os pequenos comerciantes locais, os donos de tabernas? Existe uma visão pequeno-burguesa de dar uma casa com banheiro, com uma certa estrutura, mas esquecem o fundamental: como esse pessoal vai sobreviver? Se perguntarem se eles gostaram dessa tal "evolução", vão dizer que querem voltar para o seu pedaço de terra, porque lá, pelo menos, tinham onde plantar.
Fórum - Como essa realidade contribui para a incidência de exploração sexual?
Tourinho - Quando a família da criança tem seus direitos violados, ela não tem como dar o suporte para evitar a violência. Não tem escolaridade, não tem saúde e, sozinha, não se sustenta como um agente de proteção. O próprio jovem não se sustenta. Precisam de mais opções de lazer. Cadê os parques, os eventos esportivos? A única opção é ir para o bar. Temos que dar alternativas aos jovens, porque do jeito que estão, eles ficam extremamente vulneráveis. Não podemos esquecer que muitos trabalhadores das obras já estão indo embora e deixando os "filhos das usinas". Temos um aumento da escala de rondonienses nascendo sem pai. É a perpetuação da violação de direitos.
"É como se Porto Velho fosse uma zona de sacrifício"
O pesquisador e professor do Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Rondônia (UNIR), Luis Fernando Novoa, critica a maneira como as empresas responsáveis pelas hidrelétricas de Jirau e Santo Antônio conduzem as obras de compensação social. Para ele, deveria haver mais transparência e abertura para a participação da sociedade civil. Novoa faz, ainda, uma prospecção do que será da população local depois que as usinas forem concluídas.
Fórum - Que tipo de mudanças puderam ser observadas em Porto Velho nos últimos anos?
Luis Fernando Novoa - Nós nos deparamos com o aumento da prostituição, das drogas e da criminalidade. Uma das questões não resolvidas foi a não compatibilização entre a escala das grandes obras e a infraestrutura viária e social da cidade. Além da inviabilidade ambiental, atestada pela primeira equipe do IBAMA devido à interrupção do ciclo migratório dos peixes e pela imprevisibilidade quanto à sedimentação e erosão por efeito das barragens, era evidente também a inviabilidade social do projeto. Seria preciso fazer obras antecipatórias de vulto na cidade, além da qualificação profissional da população local para que as megaobras não fossem tão agressivas e desestruturadoras do tecido social. O que digo é que não bastariam apenas os recursos de compensação das empresas para enfrentar os impactos. Seria necessária uma condução efetiva, pela esfera federal, de caráter interministerial, e com participação da sociedade civil. Antes, a violência era localizada nas áreas de segregação. Com a nova e caótica economia trazida pelas usinas, há um cenário de tensão ampliado e absoluta desproteção dos direitos dos mais vulneráveis. Há um completo desaparelhamento dos sistemas de proteção específicos, quando deveriam ser priorizados na situação calamitosa que se encontra a cidade nos últimos anos.
Fórum - O senhor descreve um quadro de grande fragilidade dessas populações. Qual seria a relação desse fator com o aumento da exploração sexual? E quais as especificidades da violação dos direitos infanto-juvenis nesse novo momento econômico de Rondônia?
Novoa - Creio que existe um cruzamento de variáveis que faz levar a essa autodegradação como sociedade. Quando há um crescimento acelerado, com baixa previsibilidade dos meios de ascender, geram-se zonas cinzentas do ponto de vista da lei e da ética. Os surtos de crescimento criam cenários favoráveis a uma competição interindividual violenta e agressiva. Nesse cenário, a insegurança e a sensação de impotência revertem-se em atitudes de autoafirmação, manifestadas, muitas vezes, de maneira sexista. No caso de Rondônia, foram praticamente 40 mil novos empregos diretos e indiretos, 70% ocupados por homens e a maioria de fora do estado. Aqui ainda havia a cultura do garimpo, que predispunha à exploração sexual em momentos de pico da atividade. As usinas criaram um mercado de grande escala e a pressão sobre as adolescentes é muito forte, como alternativa econômica. A prostituição surge como um meio rápido de resgate da miséria.
Fórum - No Brasil, existe ainda uma carência no que diz respeito a dados e estatísticas que sistematizem os problemas ligados à violação de direitos humanos. De que forma essa lacuna pode prejudicar o enfrentamento da exploração sexual, por exemplo?
Novoa - Se não há um acompanhamento permanente e fiscalização in loco, o problema vai sendo dissimulado e maquiado. A Secretaria de Direitos Humanos (SDH) e a Prefeitura de Porto Velho se comprometeram a adotar um plano emergencial de combate à violência sexual, mas até agora os órgãos específicos e seus programas não foram devidamente aparelhados. Na verdade, essa questão deveria ser assunto de Estado, e não meramente setorial. Se a obra está inscrita no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), é considerada "prioritária" e de "interesse nacional", como as populações locais e as crianças se inserem nessa classificação? Da forma como as empresas e as três esferas de governo vêm lidando com a implementação das usinas hidrelétricas do Rio Madeira, é como se Porto Velho fosse uma zona de sacrifício para fornecer energia em grande escala, e não para o Brasil, mas para indústrias voltadas para exportação.
Fórum - A seu ver, o que sobrará do município de Porto Velho e dos distritos de Jaci Paraná e Nova Mutum depois que as obras acabarem? Qual cenário ficará para a população local?
Novoa - Haverá um quadro previsível de depressão pós-usinas, pois o pico das construções tende a cair lentamente. Iniciada a operação, anula-se o efeito do dinamismo temporário. Não foi planejada uma transição econômica com a criação de serviços especializados, que se conjugassem com o dinamismo das obras. A lógica foi ganhar ao máximo, em um curto espaço de tempo, o que, no fim, se mostra predatório para todos. Teremos uma cidade desinchada, mas com áreas de exclusão ampliadas. Os royalties serão pagos, mas não são suficientes, nem aplicados de forma transparente. Esse quadro só se altera com uma maior presença do Estado, acompanhada do controle social. A cidade precisa aperfeiçoar seus espaços de participação. Nos distritos, líderes comunitários que denunciaram casos de superfaturamento nas obras de compensação social das empresas foram ameaçados e alguns tiveram que simplesmente sair do estado.
Fórum - Existe o indicativo de construção de duas outras usinas hidrelétricas em Rondônia, uma em Guajará-Mirim e outra em Machadinho D'Oeste. O senhor acredita que a população do estado estará mais preparada para enfrentar esses problemas?
Novoa - As perspectivas de reversão desse cenário não são animadoras. As primeiras audiências públicas realizadas para discutir os termos de referência da Usina Hidrelétrica de Tabajara, no rio Machadinho, reproduzem o mesmo tipo de descompromisso com a população e o meio ambiente. Há muita propaganda acerca dos benefícios do progresso e nenhuma disposição das autoridades em discutir séria e francamente sobre os danos sociais e ambientais potenciais, sobre como enfrentá-los com base em metas acordadas e em um cronograma factível. Em Guajará-Mirim, ainda estão em fase de estudos, mas o caminho se repete. A diferença agora virá da sociedade civil e dos movimentos sociais, que estão mais preparados para enfrentar os métodos de manipulação e cooptação. Da parte dos acadêmicos críticos, estaremos à disposição para socializar, junto às comunidades desses novos projetos, os dados desastrosos que estamos reunindo na área de afetação de Santo Antônio e Jirau. Esperamos que esse intercâmbio possa contribuir para fortalecer a resistência a essas novas hidrelétricas no estado.
Tiago gosta de escrever sobre o amor
Tiago* tem 16 anos. O sorriso fácil e o jeito despojado, segundo ele, são as armas que encontrou para burlar o sofrimento. "Eu brinco com todo mundo. Até na hora que não é para brincar, eu brinco. Raramente demonstro que estou triste", conta. A expressão do rosto só muda quando ele fala do passado. O volume da voz diminui gradativamente e o olhar fica, quase sempre, preso ao chão.
Há dois anos, Tiago foi expulso de casa. A família não aceitava o fato de ele ser homossexual. Sem dinheiro, passou a morar de favor com conhecidos, mas também foi vítima de discriminação e se sentia ameaçado.
Desde criança, tentou ganhar alguns trocados recolhendo latinhas nas ruas, capinando quintal ou fritando pastéis em uma lanchonete. Não demorou muito para ser levado por colegas para um ponto de exploração sexual, próximo a uma das avenidas mais movimentadas de Porto Velho. "Não tenho ninguém por mim. Fui por necessidade, não estava aguentando mais. Não tinha roupa para ir para a escola, ficava com vergonha. Usei o dinheiro para me sustentar", diz.
As lembranças do ano que passou fazendo programas ainda incomodam. Hoje, ele tenta seguir a vida, sabendo que dificilmente apagará as marcas deixadas por tantos momentos conturbados. Porém, questionado sobre os planos para o futuro, ele volta a sorrir. Quer fazer uma faculdade. Pensa em cursar História ou, talvez, Letras. "Gosto de escrever sobre o amor", conclui.
Michele não teve esperanças juvenis
Com 12 anos, Michele* foi abusada por um vizinho. Aos 13, começou a usar cocaína. Os encontros sexuais, desde então, tornaram-se uma alternativa para conseguir dinheiro. Completada a maioridade, ela conta que parou de estudar na 7ª série - atual 8º ano -, não faz mais programas e se esforça para lutar contra o vício das drogas.
Entre as pessoas que conheceu nas ruas, se envolveu com um homem mais velho, recém-chegado de Mato Grosso para ajudar na construção de uma das novas usinas de Porto Velho. Depois de dois meses, ele disse estar apaixonado, mas o romance não foi para frente. O pretendente era casado, tinha filhos e estava na cidade apenas de passagem. Michele diz que, depois de ter visto e vivido tantas situações, ficou descrente nos relacionamentos. "Por mais que os homens falem tanto, eu não acredito, não confio", revela.
A menina de corpo magro e traços delicados fala com a dureza de quem não teve tempo, nem oportunidade, de alimentar esperanças juvenis. "Não gosto de lembrar dessa época. Se pudesse voltar, não teria feito, mas eu sempre queria coisas que a minha família não podia me dar. Só que, agora, decidi não fazer mais. Na verdade, nunca gostei", desabafa.
*Os nomes foram alterados para preservar a identidade dos entrevistados.
A violência sexual em números
- 88,7% das vítimas são do sexo feminino;
- 64% estão na escola. Destes, 59% são alunos da rede pública de ensino;
- 44,3% sofreram abuso sexual intrafamiliar; 41,3% extrafamiliar e 13,9% exploração sexual (prostituição);
- 59% são pardos;
- 80% denunciaram, mas 78% não sabem dizer se os casos foram atendidos e acompanhados adequadamente.
Informações divulgadas pelo Projeto Girassol (CDCA/UNIR/Petrobras, 2011), referentes a crianças e adolescentes vítimas de violência sexual nos distritos de Jaci Paraná, Mutum Paraná e Abunã.
Com a palavra, os trabalhadores
Pesquisa inédita coordenada pela organização Childhood Brasil, em 2009, buscou traçar o perfil dos homens que atuam na construção de megaempreendimentos de infraestrutura no país. O objetivo prioritário foi compreender o envolvimento deles com a exploração sexual de crianças e adolescentes. Para isso, foram ouvidos 288 entrevistados de Santa Catarina, São Paulo, Minas Gerais, Goiás e Rondônia. O resultado do levantamento pode ser conferido abaixo:
- Dos 93,6% entrevistados que atuam na parte operacional das obras, 37,5% têm o ensino fundamental incompleto, outros 21,2% concluíram o ensino fundamental;
- 87,5% afirmam que a distância da família é a maior dificuldade enfrentada por eles;
- 48,8% têm renda familiar mensal de R$ 500,00 a R$ 1.000,00;
- 53% se sentem discriminados pela sociedade;
- 97,2% afirmam que a prostituição é comum por onde andam;
- 66,9% acreditam que os companheiros saem com crianças/adolescentes e 25,4% dizem ter feito o mesmo;
- 40% avaliam que a situação é mais grave na Região Norte;
- 15,8% admitem nunca ter usado preservativo.

SÃO PAULO ESTÁ DOENTE


Segundo pesquisa, 77% de consultas de emergência no Hospital São Paulo foram por doenças respiratórias; número de veículos aumentou cinco vezes mais do que o de gente

Katia Mello
O tempo seco contribui para a concentração da nuvem de poluição nas camadas mais baixas da atmosfera
Na tarde fria do dia 19 de julho, a empregada doméstica Marlene Sabino Calixta, de 39 anos, recorreu ao pronto-socorro municipal 21 de junho, na Avenida João Paulo I, no bairro da Freguesia do Ó, para tratar uma forte crise de asma. Os corredores estavam empilhados de gente. Cinco pacientes aguardavam atendimento deitados no chão. Marlene levou duas horas para ser recebida pelo médico e, se não fosse sua exigência, ele não teria nem examinado o pulmão. A consulta levou exatos três minutos, e Marlene saiu só com a receita do antibiótico nas mãos.
No mesmo mês de julho, a produtora Sofia Marques, 28 anos, levou a filha de 1 ano e 11 meses para o Hospital São Camilo por determinação da pediatra, que diagnosticou um quadro de insuficiência respiratória. Apesar de ter plano de saúde, que lhe garantia o atendimento e a internação da criança, a produtora esperou três dias na emergência para transferir a filha para UTI, onde a criança ficou mais três dias, em contato com pacientes com quadros mais graves, embora tenha tido alta no segundo dia. O motivo? Não havia vagas na pediatria infantil em nenhum hospital privado da zona Oeste de São Paulo, segundo o São Camilo, devido à alta incidência de doenças respiratórias no inverno.
O atendimento precário do sistema de saúde paulistano fica ainda mais evidente no inverno, quando a poluição atinge os índices mais altos. Na região metropolitana de São Paulo, são 47 mil indústrias e cerca de 100 mil estabelecimentos comerciais. Na última década, a população da capital paulista cresceu 12%, enquanto que a frota de veículos teve aumento de 65%, chegando a 7 milhões em março do ano passado – ou seja, um carro para cada 1,5 pessoas. Essa avalanche de carros nas ruas está causando congestionamentos diários de mais de cem quilômetros nos horários de pico. Os carros emitem gases poluentes que podem causar doenças respiratórias, de rinite, sinusite à pneumonia.
O médico Paulo Saldiva, professor titular do Departamento de Patologia da USP e pesquisador do Laboratório de Poluição Atmosférica Experimental, diz que apesar de haver um maior controle na última década sobre a emissão de gases dos veículos, com o aprimoramento da tecnologia e o uso de novos combustíveis, hoje, os paulistanos estão mais expostos aos poluentes, porque permanecem mais tempo nos engarrafamentos. “Se uma pessoa passa duas horas ingerindo partículas poluidoras em um congestionamento, isso equivale a fumar ao menos um cigarro por dia”, explica.
No ano passado, foram quatro mil mortes em São Paulo decorrentes dos malefícios da poluição. “Já sabemos que a relação entre poluição e danos à saúde é direta e proporcional. No Instituto do Coração do Hospital das Clínicas (Incor), as internações por problemas cardíacos aumentam 4% quando o ambiente tem maior concentração de poluentes”, diz o médico epidemiologista Luiz Alberto Amador.
Outro fenômeno que aumentou o volume de atendimentos na saúde é o envelhecimento da população. Na última década, o número de paulistanos com mais de 60 anos cresceu em mais de 35%, chegando a mais de 1,3 milhão. No inverno e em dias de baixa umidade relativa do ar, cresce ainda mais a quantidade de idosos e crianças que procuram os hospitais e consultórios. Os dois grupos etários são mais suscetíveis aos efeitos das mudanças climáticas e da poluição, principalmente se já têm propensão às doenças respiratórias e cardiovasculares.
Dos atendimentos de emergência, 77% são por doença respiratória
Um estudo publicado em 2011, pela pesquisadora Silvia Letícia de Santiago, da Unifesp, provou essa relação entre os poluentes emitidos pela frota automotiva e uma maior incidência de casos de doenças respiratórias nos paulistanos de diversas faixas etárias.
“Durante três anos, estudamos 177 mil casos. Cruzamos os dados das consultas no serviço de emergência do Hospital São Paulo com os índices de poluição da CETESB. Do total, 77,5% foram atendimentos por doenças respiratórias“, diz Silvia.
No caos de São Paulo, o trânsito também é responsável pela elevação do estresse e do sedentarismo. Passar muito tempo dentro de um carro, um ônibus ou um metrô significa ter menos tempo para fazer exercícios físicos e lazer, o que torna o cotidiano do paulistano ainda mais cansativo. “As dificuldades de vida em São Paulo aumentam os transtornos mentais, como depressão, ansiedade, pânico, além de um maior uso de álcool e outras drogas”, diz o médico Paulo Rossi da Medicina Preventiva da Universidade de São Paulo (USP). Rossi afirma que as populações mais pobres estão ainda mais sujeitas às doenças mentais decorrentes das preocupações cotidianas. Um levantamento feito pela médica psiquiatra Laura Andrade do Hospital das Clínicas de São Paulo, divulgado em março deste ano, afirma que três em cada dez paulistanos sofrem de algum tipo de transtorno mental. Outro fenômeno contemporâneo apontado por Rossi em centros urbanos é a fadiga crônica, um forte cansaço que pode perdurar por seis meses. Para este tipo de diagnóstico e tratamento, ele diz que os serviços públicos ainda têm pouco a oferecer.
O trânsito não só adoece, mas também mata os moradores da capital. Em uma década, o número de motos passou de três milhões para mais de 11 milhões. Apenas no ano passado, a mortalidade de motociclistas envolvidos em acidentes de trânsito na capital paulista cresceu em 7% em relação a 2010, segundo a Companhia de Engenharia de Tráfego (CET).  E não seria para menos: a quantidade de viagens diárias de motos na cidade pode chegar a 25 milhões.
Saúde é o problema que mais aflige os paulistanos
Os problemas causados pela insalubridade da metrópole tornam-se ainda maiores pela precariedade do atendimento em saúde na mais rica e populosa capital do país, com seus 11 milhões de habitantes (20 milhões na grande São Paulo). Falta de leitos em hospitais, espera longa para consultas e exames, carência de médicos, equipamentos fora de ordem, diagnósticos imprecisos, enfim, são muitos os problemas que afligem os paulistanos que precisam de atendimento em saúde.
Às vésperas das eleições municipais, os paulistanos elegeram a saúde como o mais importante problema a ser enfrentado pelo próximo prefeito, segundo pesquisa do Datafolha publicada em 7 de julho. A saúde levou 26% dos votos, ultrapassando até a segurança, uma das maiores preocupações dos paulistanos nas últimas décadas.
Para paulistanos como Marlene, que sempre dependeram do atendimento público em saúde, o caos nos hospitais não chega ser novidade. O que aflige é a falta de evolução do quadro: “Nos últimos anos, nada mudou nos atendimentos. Aliás, estão cada vez piores”, diz ela, relembrando o sofrimento vivido no ano passado. Em janeiro de 2011, conta, chegou ao posto de saúde, a UBS – Unidade Básica de Saúde – da Vila Ipojuca, com queixas de dores nas pernas. Esperou uma hora e meia para ser atendida por um clínico que a encaminhou para um especialista.  Em março, ela foi atendida por um cirurgião vascular na AMA (Assistência Médica Ambulatorial) de Santa Cecília, no centro da cidade, que indicou uma cirurgia e pediu uma série de exames pré-operatórios. Foram cerca de três meses para fazer os exames previamente marcados. Com os resultados na mão, em agosto do mesmo ano, ela foi encaminhada à AMA da Vila Maria, na zona norte, para ser operada. Ao chegar lá, ouviu do cirurgião que ali não havia vagas e recebeu dele um papel de encaminhamento para a AMA de Guarulhos, município vizinho a São Paulo. “Mesmo sendo longe, ele me garantiu que eu seria operada. Corri para lá”, diz Marlene. Em Guarulhos, o pessoal do atendimento afirmou que não estavam mais aceitando solicitações da prefeitura paulistana e que ela deveria retornar à AMA de Santa Cecília. Depois de nove meses de périplo, Marlene voltou. E foi a gota d’água. “Eles me disseram que meus exames não eram mais válidos, porque se passaram muitos meses e que eu deveria começar tudo de novo. Fiquei com tanta raiva, que desisti”.
Na capital paulista, hoje existem 440 Unidades Básicas de Saúde, responsáveis por consultas, vacinas e 119 AMAs, além de 16 AMAs Especialidades e 18 hospitais para os casos mais complexos. De acordo com a prefeitura, o número de consultas nestes locais subiu de 3,7 milhões, em 2007, para 10,2 milhões, no ano passado. A princípio, as AMAs foram criadas para desafogar o fluxo nos pronto-socorros e hospitais. Mas como a qualidade de atendimento é ruim, com longas filas de espera, sem conseguir resolver problemas primários, os pacientes continuam recorrendo aos sistemas de emergência. Para agravar ainda mais a situação, três hospitais prometidos durante a campanha do prefeito Gilberto Kassab até agora não saíram do papel e a prefeitura não quis assinar convênios com o governo federal para implantar outros modelos de atendimento, como o Hora Certa, que busca reduzir o tempo de espera dos pacientes.
“Não existe integração entre os sistemas. Não adianta disponibilizar remédios na rede pública, construir hospitais, se não conseguimos identificar e tratar doenças crônicas, como diabetes e hipertensão. E também não adianta descobrir um câncer de mama, se não há como dar continuidade ao tratamento”, afirma Marcos Bosi Ferraz, professor na Escola Paulista de Medicina e diretor do Centro Paulista de Economia da Saúde da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
A integração entre os governos federal, estadual e municipal é um dos pilares  do Sistema Único de Saúde, o SUS, criado em 1988.  Mas sai governo e entra governo e os cidadãos ficam sujeitos aos interesses políticos de cada gestor. ”Deveria haver uma reforma administrativa em todo o SUS. As chefias dos hospitais, dos centros de saúde não deveriam ser cargos de confiança escolhidos por políticos. A seleção deveria ser por mérito e os profissionais deveriam ser avaliados por resultados de atendimentos”, diz o professor titular do Departamento de Saúde Coletiva da Unicamp e membro do Centro de Estudos Brasileiros de Saúde (CEBES), Gastão Wagner.
O Ministério da Saúde assumiu publicamente a ineficiência do SUS ao publicar no dia 1 de março a primeira avaliação do Índice do Desempenho do Sistema de Saúde (IDSUS), concluindo que o país não alcança a média de 7 pontos, considerada ideal. Neste relatório, a média nacional ficou em 5,47. A cidade de São Paulo aparece com 6,21 pontos, na frente de Brasília (5,09) e Rio de Janeiro (4,33).
Apenas 3,7% do PIB vai para a saúde; o ideal seria 7%
É unanimidade entre os especialistas em apontar a falta de recursos como um dos principais cancros do sistema. O orçamento total da saúde no Brasil é de 8,4% do produto interno bruto (PIB). Este seria um índice ideal, se consideramos que a Organização Mundial de Saúde recomenda o mínimo de 7% do PIB. Porém, a questão é quem fica com a maior parte deste dinheiro: cerca de 60% são destinados aos setor privado para atender apenas 46 milhões de conveniados, enquanto que os restantes 40% são para os 190 milhões de brasileiros com direito ao SUS. Ou seja, a fatia estatal representa apenas 3,7% do PIB para a saúde pública. Se compararmos a países que se utilizam deste sistema, a disparidade é ainda maior. No Reino Unido, de onde saiu o modelo que inspirou o brasileiro, o Estado gasta 8,4%. Na Espanha são 8,5%, na Holanda são 8,9% e na Itália, 8,7%.
Na última década, ainda houve uma redução de repasse dos recursos federais para os municípios: de 60% foi para 44%. A ideia seria descentralizar os custos e obrigar Estados e prefeituras a investirem mais. Segundo a prefeitura de São Paulo, os custos em saúde saltaram de R$ 2,46 bilhões, em 2004 para R$ 6,68 bilhões neste ano. Ou seja, houve um aumento de verbas e o município cumpriu a exigência constitucional de destinar 15% de seus gastos para a saúde. Resolveu o problema? Não, porque o gargalo é muito grande. “Mesmo ao destinar 20% do orçamento, em termos de necessidades e ofertas de serviços, essa verba não é suficiente. O problema é crônico: os recursos investidos não geram saúde”, afirma o professor Ferraz. Ele explica que tanto no País, como no município de São Paulo, os gestores da saúde estão acostumados a pensar em curto prazo, apagando incêndios, sem elaborar um planejamento contínuo. Para Ferraz, essa visão de longo prazo começa por uma maior dedicação ao atendimento primário.
“Outro problema é que existe uma demanda alta e uma oferta baixa e desatualizada dos serviços médicos”, aponta Gastão Wagner. Na capital paulista, o número de médicos subiu de 8.606 para 14.400 em 2011, o que representa um aumento de 67,3%. Apesar desse crescimento, a quantidade desses profissionais na saúde pública é quatro vezes menor que no setor privado, segundo o Conselho Federal de Medicina. A falta de incentivos acaba gerando uma alta rotatividade de profissionais nos serviços públicos, principalmente nas AMAs.  Quem geralmente aceita baixos salários, condições precárias de trabalho e ausência de equipamentos é o recém-formado, que logo migra para outro emprego. “A prioridade deveria ser investir nos médicos da Saúde da Família, com uma formação contínua e permanente”, diz Wagner.
Além da questão da qualificação, a maior parte dos profissionais costuma se concentrar nos bairros nobres, como Pinheiros, na zona Oeste, onde está a Faculdade de Medicina da USP, e Vila Mariana, na zona Sul, onde se encontra a Escola Paulista de Medicina da Unifesp. A concentração de leitos hospitalares paulistanos também se dá nestas mesmas regiões. De acordo com dados da prefeitura, o distrito da Consolação tem 46,06 leitos hospitalares por 1000 habitantes (o maior índice), enquanto que em 26 distritos, entre eles os periféricos Perus, Parelheiros, Pedreira, Campo Limpo, Raposo Tavares, não há um único leito. Ou seja, a capital paulista cumpre a meta estabelecida pelo Ministério da Saúde de no mínimo 2,5 leitos/habitante, (o índice da capital é 2,6), mas de maneira desigual. Para complicar ainda mais a situação, a lei estadual 1.131 aprovada em dezembro de 2010, prevê que 25% dos leitos do SUS sejam destinados aos clientes dos planos de saúde, congestionando os hospitais da rede pública.
No setor privado, ganância é inimiga da saúde
Nos últimos anos, a esperança de melhor atendimento e maior poder aquisitivo fizeram com que parte da população migrasse do SUS para o setor privado. Porém, os problemas que pareciam afligir apenas os usuários do SUS, passaram também a atormentar os segurados. De 2006 para 2011, o número de beneficiários de planos de saúde no País saltou de 36 milhões para 46 milhões. Segundo a Associação Nacional dos Hospitais Privados (ANHP), entre 2007 e 2010, o número de pacientes atendidos aumentou em 50% no Brasil. A demanda aumenta e não há infra-estrutura para absorvê-la. “Houve um congestionamento na venda de planos de saúde com a ascensão da classe C e D e os hospitais não conseguiram acompanhar, porque precisam de investimentos”, afirma Dante Montagna, presidente do sindicato dos hospitais privados de São Paulo. O que explicaria a falta de vagas nos hospitais, como aconteceu com a produtora que não conseguiu internação para a filha no inverno paulistano.
Há outra razão para as dificuldades que enfrentam os segurados para obter atendimento rápido e de boa qualidade. Associações médicas e hospitalares reclamam dos honorários e diárias repassadas às instituições e seus profissionais, o que só faz aumentar o índice de descredenciamento de hospitais e médicos dos planos de saúde. O cenário se complicou ainda mais na cidade de São Paulo com o fechamento de 15 hospitais privados nos últimos anos. Grandes hospitais paulistanos como Oswaldo Cruz, Albert Einstein, Samaritano, Sírio Libanês e São Luís estão realizando reformas de ampliação, que, ao menos por enquanto, não são suficientes para atender a crescente demanda. “Leva de dois a três anos para um hospital conseguir construir mais leitos”, diz Montagna. As consultas em clínicas particulares também ficaram difíceis de serem agendadas e a lógica de procurar rápido atendimento nos pronto-socorros prevalece também no setor privado. “Cerca de 80% das chamadas emergências poderiam ser resolvidas nos consultórios”, diz Montagna.
Na avidez de vender planos de saúde mais baratos para as classes C e D, algumas operadoras não respeitaram seus novos clientes e o Ministério da Saúde, através da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS)- o órgão regulador no País, finalmente deu um breque na situação. No dia 10 de julho, a ANS suspendeu as vendas de 268 planos de saúde de 37 operadoras que não cumpriram os prazos de atendimento médico determinado pela norma 259, estabelecida no final do ano passado. Essa resolução federal determina, por exemplo, que os pacientes de consultas básicas como clínica médica, pediatria, ginecologia devem ser atendidos em no máximo sete dias úteis.
Ao deparar com os dados calamitosos da saúde e da degradação urbana, os paulistanos podem se sentir de mãos atadas diante de problemas aparentemente insolúveis. São fenômenos realmente de alta complexidade. Mas vale lembrar que são os cidadãos que escolhem seus mandatários e deles podem exigir uma política urbana que reconheça a interdependência entre a saúde, os transportes e o meio-ambiente. “O que precisamos dos próximos governantes são ações políticas transversais que pensem a saúde como um todo”, diz Saldiva.

Árvores fornecem informações sobre o histórico do clima


Por meio da análise dos anéis de crescimento de árvores é possível reconstruir como os fatores do clima oscilaram na cidade de São Paulo em certos períodos. Essa é a conclusão da pesquisa do biólogo Gustavo Burin Ferreira, do Instituto de Biociências (IB) da USP, que estudou 43 cedros do Instituto Butantan, do Parque da Cantareira e do próprio IB, entre 2007 e 2011, para conhecer mais sobre o passado climático da cidade.

Giovanni Santa Rosa
A partir da análise das informações, Ferreira descobriu que o fator que mais se correlaciona com o crescimento das árvores estudadas é a temperatura no final do inverno: quanto maior ela é, menor é o crescimento. “Explicando de uma maneira simples e finalista, é como se a árvore ‘queimasse a largada’ e começasse o processo de crescimento antes da hora”, diz Ferreira.
Para estudar as árvores sem destruí-las, o pesquisador utilizou o trado de incremento, uma espécie de broca oca que retira amostras de madeira. A partir delas, é possível saber as medidas dos aneis de crescimento e confrontá-las com os dados já existentes sobre o clima na cidade. “Depois de remover tendências naturais de crescimento, o que estiver variando é causado por fatores que não estejam relacionados a estas tendências”, explica.
Ferreira afirma que o estudo prova que, apesar de difícil, é possível fazer esse tipo de análise em cidades. “Nas árvores urbanas, são muitos fatores envolvidos, como poluição e podas, entre outros. Isso pode mascarar alguns efeitos, além de abrir um grande leque de possibilidades. Mesmo assim, ainda é possível obter resultados.” Outro obstáculo encontrado na pesquisa foi a falta de dados sobre o clima da cidade, principalmente antes da década de 1960. A dissertação de mestrado Análise dendroclimatológica do cedro (Cedrela fissilis L. – Meliaceae) para reconstrução do cenário ambiental recente da cidade de São Paulo, SP, foi orientada pelo professor Gregório Ceccantini e apresentada em 2012.
Anéis de crescimento fornecem dados sobre temperatura e precipitação, entre outros
Poucos estudos no Brasil
A dendroclimatologia — ciência que estuda as relações entre o clima e os anéis de crescimento das árvores — é uma área recente no Brasil. Ferreira conta que, até 60 anos atrás, acreditava-se que ela não teria sentido nos trópicos por não haver uma sazonalidade bem definida no clima dessas regiões.
Há apenas cerca de 40 anos, pesquisadores alemães observaram a relação entre os anéis de crescimento e a sazonalidade da disponibilidade de água. Mesmo assim, são poucas as pesquisas do tipo no Brasil, o que motivou Ferreira a realizar o estudo.
Os anéis de crescimento são porções de madeira que se repetem sazonalmente e possuem demarcações de tempo de natureza morfológica ou anatômica, que permitem individualizar um intervalo de tempo.

Saiba mais sobre a Cruz Vermelha e as Convenções de Genebra e de Haia


A partir de 1864, as Convenções de Genebra e de Haia tentaram impor um pouco de humanidade ao inferno da guerra. Os resultados apareceram, mas bem abaixo do desejado

Marcel Verrumo e Fabio Marton
"As Armas passam sobre os mortos e feridos, estendidos sobre o solo. Cérebros vAzam sob as rodas, membros são quebrados e arrancados, corpos mutilAdos ao ponto de se tornarem irreconhecíveis - o solo está pantanoso com o sangue." Henri Dunant, fundador da Cruz Vermelha
Se o texto acima parece chocante, é porque ainda cumpre seu propósito. Lançado em 1862, o breve livro Un Souvenir de Solferino (Lembrança de Solferino), do empresário suíço Henri Dunant, foi uma dessas obras que mudaram o mundo. Logo no começo, há outra passagem, com soldados invadindo uma capela para matar a pedradas um oficial inimigo sendo socorrido, seguida por enfermeiras sendo alvejadas em campo enquanto tentavam levar cantis a soldados agonizantes. O livro é um relato da Batalha de Solferino (1859), na qual aliados franceses e italianos enfrentaram austríacos, no total de 267 mil combatentes. A derrota austríaca garantiu a unificação da Itália sob o rei Vítor Emanuel 2º. A batalha em si ocupa só 1/4 das 39 páginas do livro. O que importa é o que vem depois, descrito em detalhes igualmente explícitos: o sofrimento imenso dos feridos e as condições precárias de seu socorro.


Dunant estava numa viagem de negócios na Itália quando acabou em Solferino, no dia 24 de junho de 1859. Ele chegou ao fim do dia, quando os austríacos se retiravam, deixando 40 mil mortos e feridos agonizantes no campo. Os franceses organizaram um esforço médico para tratar feridos de ambos os lados, e Dunant, mesmo não sendo médico, coordenou um intenso esforço civil para salvar os soldados. Daí vem a principal ideia do livro: organizar uma entidade internacional de médicos voluntários, que atendesse feridos independente do lado, e estabelecer regras internacionais para o tratamento de feridos e combatentes.

Dunant retornou à Genebra e lançou a primeira edição pagando do próprio bolso em 1862. As 1,6 mil cópias foram enviadas a figuras políticas e militares da Europa. E o empresário passou a viajar pelo continente para pregar suas ideias. Em 9 de fevereiro de 1863, com 4 outras figuras importantes de Genebra, Dunand fundou o Comitê Internacional de Socorro aos Militares Feridos, que mudaria seu nome para o atual - Comitê Internacional da Cruz Vermelha - em 1876. Com o apoio do governo da Suíça, o comitê organizou encontros diplomáticos, que resultaram na 1ª Convenção de Genebra, documento assinado em 22 de agosto de 1864. "Os artigos estabeleciam o respeito e a proteção das equipes e instalações sanitárias, assim como reconheciam o princípio essencial de que os militares feridos ou enfermos devem ser protegidos e receber cuidados seja qual for sua nacionalidade", diz Gabriel Valladares, da delegação regional da Cruz Vermelha para Argentina, Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. A 1ª Convenção de Genebra previu também a criação de sociedades nacionais filiadas ao Comitê Internacional e adoção da cruz vermelha como símbolo.

A trajetória das Convenções de Genebra 

1859 Henri Dunant presencia a Batalha de solferino
1862 Dunant lança seu livro e inicia a militância
1864 Primeira Convenção de Genebra, com a criação da Cruz Vermelha
1899 Primeira Convenção de Haia proíbe armas químicas, ataques aéreos de balão e balas dum-dum
1906 Segunda Convenção de Genebra define regras para hospitais navais
1907 Segunda Convenção de Haia, sobre regras de combate e bombardeio naval
1925 Protocolo de Genebra, proibindo armas químicas
1929 Terceira Convenção de Genebra, com detalhes sobre o tratamento de prisioneiros de Guerra. Não é assinada por união soviética e Japão.
1949 Quarta Convenção de Genebra, sobre os direitos dos civis nas guerra. É a que vale hoje em dia.
1977 Protocolos I e II, detalhando o que constitui violações dos direitos dos civis em conflitos internacionais e nacionais. Não são ratificados por Estados Unidos, Israel, Irã, Paquistão e Turquia.
2005 protocolo III, adotando o "cristal vermelho" como símbolo alternativo.

Na Guerra Russo-Turca de 1877-1878, a Turquia decidiu usar outro símbolo porque a cruz era considerada cristã demais. O crescente vermelho usado pelos turcos foi respeitado pelos russos, que por sua vez tiveram sua cruz vermelha respeitada pelos turcos. A princípio informalmente, oficialmente a partir de 1929, o Crescente Vermelho é símbolo e nome alternativo para Cruz Vermelha - trata-se da mesma entidade. Em 2005, o Cristal Vermelho foi adotado como terceiro símbolo, sem conotação religiosa.

Em 1906, foi assinada a 2ª Convenção de Genebra, atualizada para incluir detalhes de conflitos navais. Em paralelo, em 1899 e 1907, foram realizadas as Convenções de Haia, na Holanda. Esses encontros abordavam o comportamento militar em combate e faziam referências às convenções de Genebra. A primeira proibiu armas químicas, ataques aéreos de balões, o uso de balas deformáveis (as dum-dum) e o início das hostilidades antes de declaração formal de guerra. A segunda convenção teve bem menos êxito e praticamente limitou-se a questões navais, como a proibição de minas marítimas desancoradas. O senador brasileiro Ruy Barbosa esteve nessa convenção e discursou ativamente em defesa das nações mais fracas, pelo que ganhou o apelido (no Brasil) de Águia de Haia.

Desde que as leis de guerra apareceram, os países signatários têm dado um jeito de burlar suas regras quando surge a necessidade, real ou aparente. As convenções de Haia, como vimos, proibiam ataques aéreos e químicos. Dez anos depois, esses se tornavam símbolos da Primeira Guerra Mundial. Entre 1915 e 1918, cerca de 1,2 milhão de soldados morreriam por armas químicas de ambos os lados. Ninguém foi julgado, mas o impacto psicológico foi intenso. Em 17 de junho de 1925, foi assinado o Protocolo de Genebra, proibindo o emprego militar de gases asfixiantes e tóxicos, além de armas bacteriológicas.

Em 1929, foi assinada a 3ª Convenção de Genebra, que detalhava direitos dos prisioneiros de guerra. A Segunda Guerra foi outro festival de abusos. As leis de Haia e Genebra foram levantadas em 1946, durante os julga-mentos de Nuremberg e Tóquio, que resultaram em 12 e 7 condenações à morte. Por surpreendente que seja, o tratamento de prisioneiros de guerra foi uma das maiores acusações contra o Japão, que frequentemente exterminava prisioneiros, mas não contra os nazistas. Para prisioneiros ocidentais, eles geralmente respeitavam a Convenção de 1929, assinada pela Alemanha. Soviéticos, que não haviam assinado o acordo, eram enviados para campos de extermínio Nazistas e japoneses foram julgados, mas, em matéria de terrorismo aéreo, os aliados superaram de longe o Eixo.

Em janeiro de 1945, a cidade alemã de Dresden, que não tinha nenhum valor militar, foi incinerada pelos britânicos. Em agosto, foi a vez de os americanos estrearem a bomba atômica contra civis em Hiroshima e Nagasaki. Pelo impacto do bombardeio de terror na Segunda Guerra, a quarta e última Convenção de Genebra (1949) finalmente abordou os direitos dos civis. Contando atualmente com 192 países signatários, a convenção proibiu a utilização de civis como escudos humanos, o extermínio coletivo e os bombardeiros aéreos a civis. Nas décadas seguintes, protocolos adicionais complementariam a 4ª Convenção, abordando direitos das vítimas de guerra.

Como antes, o sucesso das leis é discutível. A Guerra Irã-Iraque (1980-1988) viu o uso moderno de armas químicas. A Rússia é acusada de inúmeras violações nas Guerras da Chechênia (1994-1996 e 1999-2009). E os "mocinhos do mundo" não ficam para trás. Na Guerra do Vietnã (1955-1975), os EUA usaram o agente laranja, produto químico que causa problemas congênitos - sob a desculpa que não era veneno, mas um desfolhante cujo alvo eram plantações.

O massacre de 504 civis em My Lai, em 1968, levou a uma condenação: o tenente William Calley, que cumpriu 3,5 anos de prisão domiciliar. Na Guerra ao Terror dos anos 2000, os americanos usaram de termos como "combatente irregular" para chamar seus prisioneiros de guerra, de forma que não fossem enquadrados na Convenção de Genebra - esse vácuo legal levou aos abusos de Abu Grahib e Guantánamo. Às vésperas de completarem 150 anos, podemos dizer que as Convenções de Genebra foram um fracasso? A Cruz Vermelha tornou-se uma instituição venerável, e o tratamento de prisioneiros de guerra é melhor hoje que nos tempos de Dunant (ele ganhou o primeiro Prêmio Nobel da Paz, em 1901, e a Cruz Vermelha outros 3). Mas, na prática, as guerras assimétricas modernas fazem a Convenção de Genebra parecer algo de tempos românticos. Não se espera que organizações terroristas tratem seus reféns segundo a Convenção de Genebra, assim como os militantes aprisionados não são tratados como combatentes militares. Como não há uma "polícia do mundo", as leis acabam valendo apenas para o lado perdedor.

Sanguessugas na Cruz Vermelha

Cada sociedade nacional da Cruz Vermelha internacional é independente para se financiar. ao redor do mundo, elas tiram seus fundos de doações, investimentos e alguns produtos e serviços, como kits de primeiros socorros e administração hospitalar. Quando ocorre uma catástrofe, campanhas são realizadas para doar para a cruz Vermelha, que transfere o dinheiro da sociedade local para a do país afetado. em 2011, a cruz Vermelha brasileira fez campanhas para ajudar as vítimas do tsnunami de 2011 no Japão, a fome na Somália e os deslizamentos de terra no rio.

Nada desse dinheiro chegou às vítimas. segundo reportagem da revista Veja de 6 de agosto, o presidente nacional da Cruz Vermelha desviava todas as doações e outras verbas para uma conta secreta no Maranhão. a denúncia veio de funcionários da própria cruz Vermelha no rio, que nunca viram as verbas da campanha dos deslizamentos - incluindo aí doações vindas do exterior. Grandes criminosos não surgem apenas nas guerras.

A transformação do mundo do trabalho


Desde o período da Modernidade, o trabalho constitui uma precondição para a integração social dos sujeitos. No entanto, ele nem sempre assumiu a forma dominante que o caracterizou nas sociedades pós-revolucionárias, nas quais nem sempre manteve as mesmas características

Carlos Serna
Desde o período da Modernidade, o trabalho constitui uma precondição para a integração social dos sujeitos. No entanto, ele nem sempre assumiu a forma dominante que o caracterizou nas sociedades pós-revolucionárias, nas quais nem sempre manteve as mesmas características. Neste sentido, não podemos ignorar a complexa sequência que vai desde os artesãos ao trabalhador em situação precária e excluído do presente, passando pelo trabalho em domicílio, a manufatura, o proletariado e o assalariado1. Todas essas fases carregaram e carregam um significado social sobre o trabalho, um sentido subjetivo sobre ele, uma relação social e econômica singular.
A transformação do trabalho reflete, talvez como nenhuma outra instituição da modernidade, os processos políticos, econômicos e culturais que a contextualizam. É o resultado e, em ocasiões, também a causa, de mudanças nos direitos civis e políticos e nas formas de exercê-los e promovê-los; de transformações tecnológicas às vezes bruscas nos processos produtivos e no funcionamento dos mercados; de alterações nas capacidades e modalidades de interpretação individual e social sobre a realidade. O Estado tem desempenhado um papel de destaque em todo esse processo, e igualmente importante tem sido o papel dos sindicatos e dos movimentos sociais.
Existe certo consenso em entender que o emprego, forma dominante assumida pelo trabalho na modernidade ocidental e democrática, constitui um dos espaços privilegiados de disciplinamento da sociedade que, com o tempo, acabaria por se transformar em uma posição que daria acesso a direitos e condições de bem-estar. Trata-se sempre da ambivalência que é própria de muitos fenômenos e instituições da modernidade, algo que, neste caso, tem a ver com a tensão entre liberdade e igualdade, entre distribuição e acumulação, entre inclusão e exclusão.
Sem dúvida, a fase histórica na qual essas tensões se dissiparam foi aquela na qual o avanço do emprego assalariado permitiu o acesso generalizado a fontes de bem-estar material, cultural e social, e também ao progresso, ou seja, à mobilidade social. Foram os trinta gloriosos anos de alguns países da Europa Central (1945 a 1975), em que o desenvolvimento protegido da indústria, o pleno emprego e o aumento do consumo constituíram os eixos econômicos sobre os quais se estabeleceria a almejada paz social.
O desenvolvimento da sociedade de bem-estar assalariada foi, neste sentido, não apenas o resultado de acordos políticos do pós-guerra, mas também uma forma de concretização de velhas aspirações do socialismo e, em alguns casos, de princípios confessionais, concretização esta mediada pela disposição e generalização de uma inovação tecnológica, o seguro social. É sobre esses valores e ferramentas que se apoia, em boa medida, a intervenção do Estado, completando, dessa maneira, as políticas orientadas ao mercado interno anteriormente mencionadas.
Por último, cabe destacar o papel desempenhado neste processo pela mulher e por sua substituta, a escola. Tratava-se, claramente, de uma sociedade de pleno emprego com viés masculino, na qual a mulher permanecia reclusa à intimidade do lar. Seu papel, contudo, não foi passivo. Em grande parte, deve-se a ela e à escola as possibilidades reprodutivas da cultura assalariada. Nesses âmbitos – o lar e a escola – é que se exerce diariamente a transmissão de normas e valores, assim como de recursos cognitivos e sociais, que permitem ao indivíduo contar com o capital necessário para se integrar ao mercado de trabalho.
Em síntese, o mundo do trabalho resulta do entrelaçamento desse complexo de instituições e da generalização de uma subjetividade cujas crenças, práticas e representações geram a reprodução dos princípios e regras da classe social assalariada. Pode-se dizer que é sob as condições institucionais da sociedade de bem-estar que o trabalho assalariado atinge o seu máximo desdobramento, não apenas quanto a seu alcance populacional, mas quanto à sua legitimidade como instituição de eixo da ordem social.
Não obstante isso, a sociedade de bem-estar não constitui uma sociedade marcada pelo status quo; ao contrário, é em seu próprio seio que se tece sua transformação: às vezes em silêncio, por acumulação de efeitos; outras vezes a plenos pulmões, de maneira ativa.
Os diversos núcleos institucionais das sociedades assalariadas são progressivamente fragilizados. O desenvolvimento educacional e a subsequente incorporação da mulher ao mercado de trabalho constituem as mudanças mais significativas, ao tempo em que evidenciam os processos culturais de desprendimento em relação às instituições e de desenvolvimento do sujeito, que se estendem e se intensificam com a crise do salário como forma dominante de relação trabalhista2.
A esse respeito concordamos com as teorias que reconhecem no avanço da modernidade produtiva um dos responsáveis por essa crise. A ruptura do “arcaísmo protetor”3, e com ela do pleno emprego, é resultado das exigências competitivas da abertura de mercado e de processos produtivos cada vez mais dotados de bens de capital. A fortaleza tributária permitiu às sociedades mais desenvolvidas gerenciar e proteger, através de seguros, estas formas de instabilidade e/ou desemprego, cujo crescimento não teve a mesma velocidade do caso argentino. Contudo, é também a força institucional dessas sociedades e, portanto, a permanência de benefícios e de certas crenças sociais, que põe freios à introdução selvagem da tecnologia e à destruição sem limites do trabalho assalariado.
Esse modelo “ideal típico” configura um bom ponto de partida para estudarmos e interpretarmos a questão das transformações no mundo do trabalho, no caso argentino? Entendemos que a sociedade argentina foi, na realidade, uma sociedade de bem-estar cuja condição de integração social — a relação assalariada industrial — atingiu uma grande maioria da população. Suas características principais têm origem nas limitações ao exercício da cidadania que comportaram certas tendências à uniformidade político-ideológica; na constituição de um quase sindicalismo de Estado e na tensão entre clientelismo, meritocracia e universalismo na ação estatal. Outra característica típica é o prolongamento das proteções ao mercado interno, mais além do que sugeriam as transformações econômicas mundiais e as experiências de sociedades em situações semelhantes4.
A sociedade argentina representa um caso paradigmático. Sua morosa adaptação diante das mudanças do mercado mundial e a progressiva perda de legitimidade de instituições em processo de deterioração abriram as portas para as transformações “estruturais” dos anos noventa, as quais, por meio de modalidades irreflexivas, abruptas e injustas, levaram à ruína uma construção que, apesar de configurar o caráter limitado a que nos referimos, conjugava os esforços e aspirações de amplos setores e de várias gerações da sociedade argentina.
É nesse complexo contexto que tem início um extenso processo de transformação do mundo do trabalho. Esse processo, no entanto, não é simples nem unidirecional, já que pressupõe consequências e significados ambíguos e paradoxais. Entendemos que tais transformações tornaram o mundo do trabalho mais diversificado, formando uma gama de identidades que, de algum modo, estão relacionadas às duas grandes esferas do sistema social. A sistêmica, cuja “refundação” é proposta por certo neoprovidencialismo, e a esfera do mundo da vida, cujas experiências provêm das variadas formas de organização da economia social e solidária, muitas delas enraizadas nos denominados “novos movimentos sociais”.
DA HOMOGENEIDADE ASSALARIADA À DIVERSIDADE DE IDENTIDADES
Contrariamente ao postulado por muitos funcionalistas – que o sujeito reúne capacidades generalizadas para a construção de uma hermenêutica do si mesmo –, essas trajetórias não deixam de ter uma significação social por serem subjetivas; ao contrário, conferem “indicadores” relativos à transformação do mundo do trabalho, a suas modalidades competitivas e relacionais. Nessas trajetórias, adquirem especial relevância as crises geradas pela vinculação a outras pessoas, ao trabalho e ao mundo. São essas crises que constituem os pontos de partida para a reconstituição de identidades que se apoiam nas solidariedades próximas, nas reflexividades possíveis ou nas capacidades de atuação, com ênfases distintas conforme cada caso.
O espaço semiprivado, distrital, associativo e trabalhista desses processos de reconstituição preenche o vazio formado pela frequente fragilidade da confiança de nossos entrevistados nas instituições outrora típicas da sociedade assalariada: sindicatos, partidos políticos, governos etc. Apesar desse distanciamento em relação às instituições, os projetos sociais de diversas categorias, aos quais alguns dos trabalhadores de nossa amostra tiveram acesso a partir da eclosão da crise nos anos 2001-2002, representaram um apoio, por vezes muito relevante, a processos pessoais e grupais de mudança e desenvolvimento. Independente da limitação retributiva, do clientelismo e da corrupção que desacreditam tais projetos, o acesso a eles permitiu a mulheres e homens – a quem a tradição ou o desemprego havia restringido ao âmbito privado – desenvolver espaços de encontro com outros, de sociabilidade, mas também de trabalho.
Tal afirmação assume um significado particular no caso das mulheres, as quais encontraram nos projetos oficiais a possibilidade de sair do espaço doméstico ao qual estavam limitadas para se incorporar à sociabilidade do trabalho. Em muitos relatos, surge ou ressurge o sentimento de utilidade social, de reconhecimento por parte dos demais, de satisfação que o reencontro com o trabalho devolve a homens e mulheres. No caso das mulheres, o trabalho permite que muitas descubram uma sociabilidade que lhes facilita o acesso a novos recursos, diminuindo sua dependência e transformando as relações de gênero nas quais estão inseridas. É importante também insistir na articulação entre a trajetória pessoal, a participação trabalhista e as modalidades de integração, para discernir o caráter das identidades forjadas entre o relacional e o sistêmico.
Em primeiro lugar, não podemos sugerir que exista uma direção causal predeterminada, mas muito mais uma articulação complexa que faz com que o sistêmico ou o singular, conforme o caso, torne compreensível – caracterizável – o identitário. Assim, por exemplo, enquanto vemos muitos sujeitos inseridos em espaços sistêmicos lutando para desenvolver atividades ligadas ao mundo da vida, também observamos propostas vitais nas quais se articula a instrumentalidade própria da satisfação de necessidades, com valores através dos quais se persegue uma aspiração de transformação de tipo social.
Talvez seja possível generalizar a respeito do que foi mencionado, considerando que a cisão entre mundo da vida e sistema não pode ser entendida mecanicamente, mas deve ser concebida em pelo menos dois níveis. No espaço institucional, os relatos permitem observar uma espécie de interpenetração entre mundo da vida e sistema, protagonizada pelas pessoas, às vezes individualmente, e outras vezes inseridas em programas institucionais. Num segundo nível, o das práticas, as pessoas devem dar conta de responsabilidades e, por isso, devem seguir as normas prevalecentes, mas muitas decidem enfrentar ao mesmo tempo problemas éticos, políticos, econômicos que vivem ou observam em sua realidade concreta.
É nesse contexto que se faz relevante a perspectiva de síntese proposta como orientação epistemológica do nosso trabalho. A ação de mulheres e homens cujos relatos registramos, além dos grupos e coletivos por eles referidos, encontra nas instituições ainda vigentes – mas não dominantes – uma referência que assume, perante a crise de confiança nestas, o caráter frequente de oportunidade, ou seja, de espaço e conjuntura para a ação transformadora. É no sentido da articulação entre a fragilidade e/ou ausência de regras institucionais e os motivos (necessidades, aspirações) para a ação que os sujeitos encontram oportunidades para exercer sua condição de agentes.
Os processos de construção de políticas de vida, frequentes e de distinta “intensidade” na amostra teórica analisada, permitem observar que as reconstituições de identidades, apesar de receberem dos diversos indivíduos uma cota de influência considerável, têm nos recursos pessoais, em suas capacidades para discernir entre legados e aspirações próprias e na confiança em si mesmos uma fonte interna fundamental. Isto é, a precariedade das referências normativas induz à busca – muitas vezes sofrida e conflitante – de novas significações e sentidos. Essa busca às vezes é individual, enquanto outras vezes é associada a grupos, a coletivos ou a novos movimentos sociais. Enquanto experiência de certa continuidade, institui regras novas, de alcance limitado em certas ocasiões – familiar, grupal, distrital, organizacional –, mas cujo valor está relacionado com a autoridade do sujeito, no tocante à sua vida. É nesse momento que o institucional tende a reaparecer, sob a forma de experiências coletivas. Isso é evidente, por exemplo, quando os trabalhadores consultados, diante da ausência dos órgãos sindicais, decidem constituir seu próprio corpo de representantes, ou quando se associam para construir um espaço de trabalho autônomo, ou quando muitos deles se distanciam do trabalho enquanto eixo condutor de sua existência, revalorizando outros espaços vitais.
A análise realizada pretende também, como mencionamos anteriormente, evidenciar certas características do mundo do trabalho. Em primeiro lugar, cabe destacar a ausência de um modelo único de organização do trabalho, além da crescente presença de experiências adquiridas com base em modalidades relacionais, buscando na capacidade e na reflexividade dos trabalhadores a chave para o desenvolvimento dos processos de trabalho. Os relatos relacionados a essas transformações tendem a interpretar tais tendências – e nessa direção nos posicionamos também – como processos orientados a alcançar uma maior mudança cultural. Uma mudança que viabilize a passagem de uma prática confrontante – encorajada, logicamente, pelas condições econômicas e pelos ambientes políticos – para uma prática na qual exista um nível mínimo de acordo para amenizar o conflito. Uma mudança que afete especialmente a empresa, tornando-a responsável social e economicamente, sobretudo em relação a seus próprios trabalhadores.
Acreditamos, além do mais, que as modalidades relacional-corporativas de organização do trabalho encontram um espaço privilegiado de desenvolvimento no campo das experiências associativas da denominada economia social, das quais uma parte de nosso grupo de entrevistados participa. O caráter de sociedade com igualdade de direitos e obrigações para todos os integrantes dessas configurações organizacionais – em geral, cooperativas de trabalho –, a distribuição equitativa dos resultados econômicos e o difícil esforço para garantir o funcionamento democrático constituem características que favorecem um tipo de relação de trabalho que, ao mesmo tempo em que descarta a concorrência, também promove a confiança e a cooperação. Nessa modalidade de organização caberia também a participação de ONGs, quando se tratar de um trabalho apenas eventual ou mesmo marginal em relação às suas atividades principais.
Essas experiências, enquanto diferenciam-se do esquema contratual competitivo dominante no campo da organização do trabalho – e também da política laboral –, encontram nesse domínio o principal obstáculo para o seu êxito. A falta de regulamentação para as regras da concorrência e de reforma de leis trabalhistas impede o combate à precariedade e dificulta avançar no contrato por tempo indeterminado, condição indispensável de uma política que pretenda dar resposta relacional definitiva e eficaz ao vazio criado pela crise da classe assalariada. Isso constitui uma exigência não apenas dos trabalhadores produtores de bens materiais, mas também dos produtores de bens imateriais. Entretanto, não constitui um tema de agenda para a central sindical tradicional, nem para as agremiações que a integram.
Parece evidente, também, que o mundo do trabalho carece de condições de controle sobre os direitos dos trabalhadores em todos os níveis. Há, por parte do Estado, uma ação limitada e insuficiente sobre o trabalho clandestino, e o ator que deveria exercer um papel central nesse sentido não existe: os sindicatos tradicionais. Essas instituições – envelhecidas pela escandalosa continuidade de seus dirigentes – também não exercem seu papel em relação à proteção das comissões internas, muitas delas eleitas democraticamente e apoiadas pelos trabalhadores.
Conforme o axioma que nos foi relatado por um entrevistado, quando se é contratado e se obtém um aumento ou melhoria nas precárias condições de trabalho, o que se observa após isso é a demissão, o que demonstra a ausência, às vezes dramática, desse tipo de proteção.
A situação de precariedade e a exigência de trabalho excessiva a que estão sujeitos muitos trabalhadores – como é o caso, embora em diferente medida, dos telefonistas de call centers, dos fabricantes de tijolos e dos trabalhadores têxteis clandestinos, cuja situação não foi possível analisar nesta oportunidade – remete-nos à ideia de Hannah Arendt, segundo a qual há uma espécie de marginalização da vida pelo trabalho, que faz com que os trabalhadores, em alguns casos, sofram no corpo e na mente as condições que precisam enfrentar por necessidade. É frequente a situação em que muitos se reduzem à condição de meros corpos submetidos a duras condições de trabalho. Em outras palavras, o retrocesso à crua “necessidade” observada nos relatos de nossos entrevistados, que em termos de sociedade global chegam a 35 a 40% de nossa população em idade trabalhista, leva, devido ao mal-estar produzido, ao menosprezo da pessoa, desta conquista da modernidade democrática que é o cidadão. O exercício dos direitos é restrito, quando não vetado. O esforço dedicado e os riscos assumidos pelos que trabalham na construção e na instituição de representações sindicais não são seguidos por outros sindicatos e, na ocasião da realização deste trabalho de campo, não constituíam uma política eficaz das instituições do Estado.
Para finalizar estas observações, é importante mencionar a disputa intelectual em torno das identidades pós-fordistas. É evidente que os relatos que transcrevemos não nos permitem pensar em uma generalização das situações que afligem a uns e inspiram a outros, talvez de modo excessivo (ver seção I, primeira parte). Os depoimentos recolhidos parecem situar-se mais próximos a uma espécie de explosão das identidades, como resultado da complexa transformação do mundo do trabalho causada pela crise da identidade assalariada típica da sociedade industrial. De fato, o trabalho realizado sugere que as identidades são construídas em referência a situações contingentes e a experiências e memórias individuais, familiares e coletivas.
Dito de outro modo, as identidades que vemos florescer parecem assumir que qualquer interpretação e avaliação do estado das coisas passa primeiro, em nosso meio, pela reivindicação do exercício real dos direitos, isto é, pelo reconhecimento de aspirações e identidades não convencionais. Ou seja, parece não haver uma necessidade, ao menos geral, de “grandes relatos” ao estilo de Negri e Hardt, como tampouco um apego ao discurso apocalíptico, que defende a submissão generalizada às condições imperantes. As identidades que acreditamos ter identificado, além dos personagens que elas representam, parecem participar de aspirações muito concretas e de capacidades de atuação que são postas em movimento e que têm relação com transformações subjetivas, locais, reduzidas à sua área de alcance coletivo, mas também materializadas. Isso pode ser observado em todas as “regiões” de nossa geografia identitária, em diferentes contextos e valores, sob a influência de expectativas e perspectivas distintas. Acreditamos poder situar nossos entrevistados, guardadas as devidas proporções, mais próximos de uma sub-política, ou do que Guidens talvez chamasse de “políticas coletivas de vida”, do que de uma intelectualidade de massas que resulte num sujeito social e politicamente homogêneo, proprietário de uma autonomia drástica com respeito às instituições, um sujeito “capaz de comunismo”. Em nossa opinião, a afirmação anterior não parece constituir uma hipótese plausível no contexto atual. Ao contrário, tendemos a interpretar o presente em torno de uma diversidade de identidades que se move entre o mundo da vida e o sistema, no contexto de diferentes modalidades de organização do trabalho e das relações trabalhistas. Acreditamos que essa classe embrionária em construção vai mais além de um instrumentalismo puro que lentamente perde lugar para abrir caminho a uma possibilidade de ação orientada pela busca de transformações progressistas diante do estado das coisas. Esse horizonte ético parece exigir uma reflexividade e uma política de vida evidenciadas por nossa amostra de trabalhadores. Um horizonte em que a democracia seja construída sobre princípios e parâmetros igualitários, solidários e dialógicos. Uma democracia capaz de limitar ortodoxias, dogmas e fundamentalismo, capaz de reconhecer as iniciativas não corporativas da sociedade civil; uma democracia capaz de promover a economia plural e, portanto, a pluralidade de identidade dos trabalhadores.
* O texto deste Caderno é uma versão editada da introdução e das conclusões do livro de Carlos Serna, La transformación del trabajo, que apresenta a pesquisa realizada pelo autor em ocasião do Concurso de projetos para pesquisadores de nível superiorTransformaciones en el mundo del trabajo: efectos socio-económicos y culturales en América Latina y el Caribe, organizado pelo Programa Regional de Bolsas de Pesquisa do CLACSO com o apoio da Agência Sueca de Desenvolvimento Internacional (ASDI). O texto completo está disponível em www.biblioteca.clacso.edu.ar.
1 - Os termos assalariado/a e salariado/a – esta última categoria tal como definida por R. Castel (1997) – são utilizados indistintamente neste texto.
2 - Uma análise interessante de experiências neste campo pode ser encontrada na obra de Isla et al. (1999).
3 - “arcaísmo protetor”, ao regular a introdução de tecnologia, consagra a possibilidade de pleno emprego e de certa “equidade interna” na distribuição dos produtos do trabalho, mediante uma redistribuição da renda das posições mais qualificadas para as menos qualificadas, algo que gera, por sua vez, uma menor distância entre a base e o topo da pirâmide salarial.
4 - Apenas a predominância de uma lógica corporativista e prebendária, resultante de acordos entre o sindicalismo burocrático, certas camadas do empresariado nacional e setores das forças armadas, pode explicar a ausência de políticas que permitam a modernização progressiva do aparelho produtivo, claramente exigida já em meados da década de setenta.