segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

A idéia de nação no século XIX e o marxismo


O texto busca traçar a emergência e o desenvolvimento tanto do conceito de nação, de seus pioneiros formuladores, ao final do século XVIII e início do XIX, como Rousseau, Herder e Fichte, quanto de seus desdobramentos ao longo do século XIX, destacando-se, também, alguns processos concretos de constituição de nações, em particular os casos dos Estados Unidos, da Itália e da Alemanha. Ao final, discute-se a recepção da questão nacional por Marx e Engels.

João Antônio de Paula
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idéia de nação no século XIX
INICIE-SE com Otto Vossler (1949, p.1): "O nacionalismo é a força política mais característica dos séculos XIX e XX. Como os séculos XVI e XVII podem ser chamados de séculos das guerras de religião, o final do século XVII e o século XVIII de séculos do iluminismo, o século XIX e o XX, pode ser dito, são séculos do nacionalismo. Com efeito, todos os grandes movimentos políticos posteriores à Revolução Francesa são, expressões e efeitos da vontade nacional."
O livro de Vossler citado discute tanto o conceito de nação quanto alguns de seus mais significativos intérpretes, de diversas colocações político-ideológicas: Rousseau, Burke, Jefferson, Fichte, Wilhelm Humboldt, Mazzini, Hegel, Ranke.
Essa lista, mais que uma coleção arbitrária, sintetiza a ampla gama de perspectivas que o tema "nação" motivou: o romantismo democrático de Rousseau e Jefferson; o conservadorismo exaltado de Burke; o idealismo de Fichte e Hegel; o liberalismo de Mazzini; o historicismo conservador de Ranke. De fato, tanto a idéia de nação quanto a materialização concreta das nações e dos nacionalismos a partir da Revolução Francesa são marcados pelas disputas e pelas tensões, pelos conflitos e pelas guerras.
Afirmar a centralidade da Revolução Francesa como marco inicial da expansão das nações e dos nacionalismos modernos não deve significar ignorar a existência de antecedentes, de "protonacionalismos" para ficar com a expressão de Hobsbawm, como é o caso das idéias de Lessing, de Rousseau e de Herder.
Nome decisivo do iluminismo alemão, Gotthold Theodor Lessing (1729-1781), é trazido aqui para representar uma atitude que inaugura uma estratégia de afirmação nacional com base na valorização de um ethos cultural, de uma fisionomia moral estruturante de um sentido de "pertencimento", que convoca a nação. No caso da Alemanha na primeira metade do século XVIII, ainda perfeitamente fragmentada e, por isto, diminuída diante de Estados Nacionais já constituídos, como a França e a Inglaterra, por exemplo, a estratégia de superação do "atraso", de alcance das potências européias, mobilizou, entre outros instrumentos, um questionamento à hegemonia cultural francesa. Lessing se colocou esse problema a partir da construção de uma dramaturgia especificamente alemã, o que significou, de pronto, um confronto com a "Reforma teatral" de Johann Christoph Gottsched (1700-1766), crítico e professor grandemente renomado então, que queria introduzir, na cena alemã, as regras do teatro clássico francês, de Pierre Corneille (1606-1684), de Jean Racine (1639-1699). Lessing vai combater o projeto de Gottsched opondo à tragédia clássica francesa o "gênio" de Shakespeare, as demasias, o furor, a enciclopédia dos sentimentos humanos contidos em seu teatro. Mas se Lessing é um extraordinário crítico, culto e sensível, perfeitamente senhor das questões estético-literárias, sua motivação básica transcende o âmbito teatral. Seu propósito, diz Anatol Rosenfeld (1964, p.17), é
a luta por um teatro nacional e um teatro burguês, por um teatro que participasse dos problemas da burguesia a que se ligava, então, indissoluvelmente, o progresso da nação: luta pela emancipação que, na situação concreta, forçosamente tinha de dirigir-se contra o classicismo francês (e contra Gottsched seu expoente alemão), por este representar então um teatro alheio, que impedia a eclosão das virtualidades nacionais, e simbolizar, sobretudo, o espírito do absolutismo.
Lessing, espírito retor do iluminismo alemão, vai buscar no barroco, em Shakespeare, as armas contra um classicismo que "pretensamente universal" era, naquelas circunstâncias, a convalidação da autoridade e da ortodoxia, que obliteravam a formação da nação, da liberdade e da tolerância.
Discutir a atitude de Lessing ante o classicismo coloca uma questão complexa, com algo de paradoxal. É que há, com razão, forte afinidade entre iluminismo e classicismo, e, no entanto, o iluminismo de Lessing tem que negar o classicismo para afirmar o nacional, a autonomia política e cultural. Esse mesmo diapasão é o que se vê no caso de Jean Jacques Rousseau (1712-1778). Inegavelmente um dos grandes nomes do iluminismo francês, o genebrino foi tão mais iluminista quanto mais se o reconheça como pioneiro da corrente romântica que, para todos os efeitos, é quase auto-atribuidamente uma reação ao iluminismo, em vários aspectos. Ao Rousseau iluminista, direto e legítimo inspirador da Revolução Francesa, agregue-se o Rousseau romântico e inspirador do sentimento nacional.
Diz Otto Vossler (1949, p.13): "Rousseau foi o primeiro e, pode-se dizer, o mais importante propulsor da vontade e da idéia de nação". Firme defensor da autonomia genebrina, autor de um projeto de constituição para a Córsega, de uma proposta de reforma da constituição polonesa, Rousseau inspirou também o projeto de nação norte-americana, que se associa a Thomas Jefferson (1743-1826). São de Rousseau as idéias de uma república social baseada na pequena propriedade agrícola, protegida da corrupção, que seria indissociável da grande cidade.
Rousseau, mais de uma vez, registrou a importância de John Locke (1632-1704) como referência para a elaboração de seu próprio pensamento político. Leitor e entusiasta dos grandes pensadores políticos da Antigüidade clássica e das virtudes cívicas dos antigos e do humanismo cívico renascentista, Rousseau vai tomar Locke como interlocutor, a quem respeita, mas a quem não pode seguir inteiramente. No centro da crítica de Rousseau está a invocação da "vontade geral" contra o ditado do individualismo privatista de Locke. A síntese dessa oposição está exemplarmente posta nas diferenças entre as tríades de Locke e a de Jefferson, discípulo de Rousseau. Para Locke , no Segundo tratado sobre o governo civil, de 1690, os três direitos inalienáveis dos homens são: o direito à vida, o direito à liberdade e o direito à propriedade. Jefferson, redator da Declaração da Independência dos Estados Unidos, em 1776, retoma a tríade de Locke alterando-a, assim: os três direitos inalienáveis dos homens são: o direito à vida, o direito à liberdade e o direito à busca da felicidade. Essas tríades sumarizam as duas matrizes básicas do Estado burguês: a liberal, inspirada em Locke, e a democrática, tributária da lição de Rousseau. Com efeito, com Rousseau constituiu-se não só uma idéia de república democrática, quanto esboçou-se uma nação.

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