domingo, 9 de dezembro de 2012

"Capitalismo é doente terminal ligado apenas nos cofres públicos", diz historiadora portuguesa


Raquel Varela defende em seu mais recente livro que os trabalhadores não deve arcar com o pagamento dos juros da dívida pública

João Novaes
Portugal e Espanha vão protagonizar, a partir desta quarta-feira (14/11), uma ambiciosa greve geral que pretende mobilizar todos os países do sul da Europa afetados pela crise da zona do Euro. Milhões de trabalhadores são esperados para protestar contra as medidas de austeridade fiscal impostas aos seus governos pela Troika – grupo formado por FMI (Fundo Monetário Internacional), Comissão Europeia e BCE (Banco Central Europeu).
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Desde o início da crise financeira mundial, em 2008, a Zona do Euro presenciou fases de estagnação e recessão econômica, crises políticas, implosão de suas dívidas soberanas nacionais, altas taxas de desemprego e, principalmente, uma forte tendência de corte em direitos sociais e trabalhistas da população. A justificativa dada pelos governos é que essas medidas são fundamentais para que os países atinjam um equilíbrio fiscal e, consequentemente, receberem aportes financeiros da Troika – dedicados a pagar os juros dessas dívidas e salvar as principais instituições financeiras desses países da bancarrota.

No entanto, sindicatos, estudantes, acadêmicos e outros setores progressistas dos países mais afetados se articulam para, além de resistir a essas imposições, desconstruir os discursos utilizados pelos defensores da austeridade, que alegam que os países em pior situação (notadamente Grécia, Portugal, Espanha, Itália e Irlanda) se encontram endividados porque, por anos, gastaram mais do que tinham

Em Portugal, uma das principais oponentes desse discurso é a historiadora Raquel Varela que, em seu mais recente livro, “Quem Paga o Estado Social em Portugal”, lançado em terras lusas no mês passado, não só defende a moratória da dívida como também afirma que a população do país não deve absolutamente nada. Em entrevista ao Opera Mundi, a professora da ISSH (sigla em inglês para Instituto Internacional de História Social, em Amsterdã) explica as razões e as contradições da crise atual, além de lembrar exemplos históricos, como a Revolução dos Cravos, em 1974, que marcou o fim da ditadura, quando a população se mobilizou para tomar o controle das empresas e retomar o crescimento.

Opera Mundi: A primeira pergunta é inevitável: quem paga o Estado Social em Portugal? 
Raquel Varela: São os trabalhadores. Como? Dividimos aquilo que é contabilizado pelo Eurostat (Gabinete de Estatísticas Europeu ) e pelo INE (Instituto Nacional de Estatística) português como a massa salarial pelo que é a "massa do capital" – renda, juros e lucro. Para isso, contabilizamos todos os gastos do Estado, como recursos humanos, saúde, educação, gestão dos espaços públicos, esportes, cultura, Previdência Social, etc. É preciso deixar claro que há muitos aspectos que não podem ser contabilizados, como os gastos dos pais com os filhos ou ajuda aos mais idosos. Afinal uma sociedade não se mede por quem paga e quem recebe.

Chegamos à conclusão que os trabalhadores, responsáveis pela massa salarial, pagam todos os seus gastos sociais e, em boa parte dos anos, ocorre superávit. Ou seja, também pagam mais do que recebem. Depois fizemos uma segunda avaliação e vimos que, nos anos em que houve um ligeiro déficit, ocorreu também um massivo processo de transferência de recursos públicos para o setor privado.

Muito daquilo que é considerado gasto social é, na verdade, subsídio ao setor privado. Um exemplo claro é com o SNS (Serviço Nacional de Saúde), órgão responsável pela saúde pública em Portugal que, até dois anos atrás, era gratuita e de excelente qualidade. Metade do valor dele vai para hospitais públicos de gestão empresarial. Desde que se introduziu esse mecanismo de gestão, observamos que, a  medida que decresce a contratação de médicos e enfermeiros, aumenta a subcontratação externa por empresas privadas.

Os bancos e outras grandes companhias, como a Portugal Telecom, deram seus fundos de pensões, cuja capitalização não é clara, para o Estado administrar. Provocaram um rombo na Previdência Social, porque obviamente esses fundos estavam sujeitos à especulação. E, em um futuro a médio prazo, de dez a 20 anos, não teriam sustentabilidade. Mas também contabilizamos a produtividade dos serviços feitos pelos privados. E verificamos que esses serviços são mais caros e menos eficientes do que os utilizados pelo poder público. Isso nos leva a concluir que parte do valor destinado à gestão privada é desviada para a obtenção de lucro, e não para a eficiência na prestação desses serviços.

OM: Ao mesmo tempo, as empresas em Portugal alegam estar falidas e fazem mais pedidos ao governo, como redução de impostos. Afinal, onde foi parar todo o dinheiro cedido a elas?
RV: Creio que a gente, em 2008, observou uma crise clássica e cíclica do capitalismo que trata de uma queda da taxa de lucro. Muitas dessas empresas entraram em um processo de deflação e estariam falidas se não tivessem ajuda pública. É a contradição do capitalismo: se queremos salvar as empresas privadas, então condenemos os trabalhadores à miséria. O programa de intervenção do FMI aqui é eufemisticamente chamado de “resgate” ou “ajuda” [como na imprensa tradicional brasileira]. Mas fomos de dois milhões de pobres para três em dois anos, em uma população de 10,5 milhões.

O capitalismo é como um doente em coma sobrevivendo por aparelhos. E esses aparelhos são os fundos públicos. Cai por terra o mito da eficiência da iniciativa privada, quando as empresas não vivem sem massivas ajudas públicas que, no limite, vão ser buscadas no único lugar que produz riquezas, ou seja, no salário.

Em última instância, estão a transformar o sul da Europa em uma periferia baseada em baixos salários e intensa exploração da força de trabalho. A ideia é quebrar  o consumo interno, baixar o custo do trabalho e virar toda a economia para um setor exportador.

OM: A senhora concorda com a realização de uma auditoria pública e independente para calcular o montante da dívida considerado justo?
RV: Nenhum Estado pode apresentar uma dívida aos seus cidadãos sem explicar como, porquê e em benefício de quem a contraiu. Esse é o mecanismo clássico da chamada auditoria cidadã: a abertura dos livros de contas do Estado. Me parece absolutamente básico que, em qualquer sociedade democrática, quem paga tenha acesso às contas.

Mas o fator central é analisar a questão não como uma dívida pública, mas como um mecanismo de acumulação privada de capital, como uma renda fixa. A auditoria cidadã é uma demanda absolutamente necessária, justa e urgente. Mas não é necessário fazê-la para se chegar à conclusão de que os trabalhadores não têm nenhuma dívida. Se eles pagam todos os seus gastos sociais, é óbvio que a dívida tem que recair para outros mecanismos de acumulação, que não a existência do bem-estar social ou o fator salário. Do ponto de vista histórico, a dívida hoje, perante a desvalorização massiva de capitais na produção com a crise de 2008, é uma renda fixa garantida a partir do juro que é pago.

Nem deveríamos falar de dívida pública, porque ela agora é uma renda fixa privada, é disso que se trata. Chamar de “dívida” remete à honestidade dos trabalhadores. As pessoas honestas pagam as suas dívidas. É uma forma de roubo do salário.

OM: Um dos argumentos utilizados pelo governo de Pedro Passos Coelho [atual premiê, líder do conservador Partido Social-Democrata] é de que Portugal se veria impossibilitado de ter acesso a investimentos estrangeiros. A senhora concorda com essa informação, há outra alternativa ao pagamento dessa renda fixa, também conhecida como dívida pública? O fato de Portugal pertencer à zona do Euro também não dificulta esse cenário?
RV: 
Esse argumento funciona como uma chantagem, não corresponde à verdade. Porque quem mais sofreria com a interrupção do pagamento da dívida seria a Alemanha, onde a sustação do pagamento da dívida iria provocar pânico.

O mercado europeu hoje é um mercado único, e a Alemanha tem cerca de metade do seu PIB como fruto de exportações para a Europa. Qualquer medida [de rebeldia] do ponto de vista econômico em Portugal iria causar pânico no norte da Europa. É por isso que a Alemanha está constantemente a ameaçar que não vai financiar um segundo aporte. Ao mesmo tempo em que faz essa ameaça, está a transferir dinheiro ao sistema financeiro. O maior medo da Alemanha é saber que o colapso de qualquer país da zona Euro significa também o colapso do Mecanismo de Estabilização da Zona Euro e, consequentemente, a crise a atingiria.

E há uma questão política: Portugal é um país que tem 5,5 milhões de trabalhadores, quase 1,5 milhão com educação superior, é um país urbanizado, com escolaridade. A burguesia europeia teria muita dificuldade em conseguir isolar um país como Portugal. A verdade é que a sustação da dívida seria  a condição necessária para que os trabalhadores possam, neste momento, vencer essa situação. Seria um contágio, uma forma de resistência absolutamente necessária. Mas isso me parece mais propício de ocorrer na Grécia, daqui a dois ou três anos, do que em Portugal. E, infelizmente os partidos da esquerda parlamentar portuguesa defendem a renegociação da dívida, enquanto eu defendo a moratória.

OM: Qual foi o verdadeiro embrião da crise da dívida? Quando, de uma hora para outra, o país se encontrou insolúvel?
RV: 
 Até 2008, Portugal não tinha problema nenhum com sua dívida pública. Mas ela cresceu de forma exponencial após as ajudas ao setor financeiro. Essa socialização dos prejuízos dos capitalistas, dos bancos e do setor financeiro que faz disparar a dívida pública que, até então, não era um problema.

OM: Durante a Revolução dos Cravos, em 1974, Portugal também enfrentava uma séria crise econômica, com taxa de desemprego alta. Mas a população soube se mobilizar e encontrar soluções para produzir e gerar empregos. Como isso ocorreu e como esse fenômeno pode inspirar a população hoje?
RV: Em 1974, Portugal sofria com os efeitos da crise do petróleo no ano anterior. Ocorria um processo muito forte de descapitalização de empresas. Muitos empresários saíam do país e fechavam seus estabelecimentos, em processo semelhante ao que ocorre agora. A diferença é que hoje não temos um processo revolucionário, de ruptura, como ocorreu na época.

Nesse período,  os trabalhadores se organizaram em comissões e, por muitas vezes, ocupavam a fábrica abandonada pelo patrão, não deixando que ele retirasse as máquinas e os meios de produção. Eles assumiam a gestão, já que tinham uma carteira de clientes. Claro, também fizeram um pressão política muito grande obrigando o Estado a capitalizar as empresas abandonadas. O dinheiro público naquele tempo foi utilizado em grande parte para isso.

Os trabalhadores também impuseram a nacionalização dos bancos, o que teve um efeito muito grande na dinamização da economia. Tanto que, em 1975,o país se encontrava em fase de crescimento.

Esse fenômeno não se passa nos dias de hoje. Há manifestações todos os dias, greves setoriais, mas não um movimento geral de duplo poder, com os trabalhadores assumindo a gestão e a produção de seus locais de trabalho.

OM: No primeiro semestre, tivemos uma novidade quando, na Grécia, país que passa por uma crise até mais grave do que Portugal, uma coligação de esquerda, o Syriza, por pouco não obteve o controle do Parlamento. Seu líder, Alexis Tsipras, havia prometido rompimento com as políticas da Troika. Por que, em termos eleitorais, o discurso da esquerda portuguesa (Bloco de Esquerda e Partido Comunista Português) não consegue atingir uma parcela mais significativa da população?
RV:
 Me parece que a esquerda portuguesa, notadamente esses dois partidos, se centram muito na questão da renegociação da dívida e na volta do pacto social, e não em uma denúncia sistêmica. E a população, em grande medida, parece mais radicalizada do que eles. Isso pode ter algum efeito em um afastamento grande, sobretudo nos setores mais jovens dessa esquerda.

Creio que essa juventude mostra agora uma grande desconfiança em relação ao regime democrático, embora gritem dizeres como “Democracia Real Já!”. Para a geração de 50 e 60 anos, o voto era uma conquista. Esses jovens vivem em situação precária, sem direitos trabalhistas. Para eles, a relação com o Parlamento não é sólida, não é lá que eles veem a saída para os seus problemas.

OM: E quanto à Social-Democracia?
RV: 
O Partido Socialista daqui se transformou em uma terceira via, sem nenhuma ligação ao que foi a social-democracia nos anos 1970.

OM: A extrema-direita em Portugal poderia se aproveitar desse desencanto juvenil?
RV: 
Ela tem muito pouca relevância por aqui, quase que marginal. Creio que a Europa tem bem viva na memória a II Guerra Mundial. E mesmo na Grécia, as esquerdas têm uma representação muito maior do que a extrema-direita.

Parece que o descrédito dos jovens nos parlamentos e no regime democrático é progressivo no sentido em que proclama uma democracia verdadeira, em que eles verdadeiramente possam decidir. E não descrédito como os que defendem uma situação autoritária, isso é muito diferente.

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