quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Deus escreve direito por linhas tortas



 
Pe. Alfredo J. Gonçalves
Assessor das Pastorais Sociais
Adital
Desde seus primórdios, a humanidade registra no trreno da história caminhos distorcidos e errantes. Um verdadeiro labirinto de vias múltiplas, diferentes e contraditórias, de becos sem saída, de veredas que levam a lugar nenhum. Tais descaminhos resultam de ações equivocadas ou imtepestivas, tanto a nível pessoal, familiar e comunitário quanto a nível nacional e internacional. A literatura de todos os tempos apresenta exemplos clássicos e simbólicos dessa condição da errância humana, tais como Abraão, "o arameu errante”; Ulisses, o peregrino de terras e mares; Dom Quixote, "o cavaleiro da triste figura”; Proust, "em busca do tempo perdido”, entre tantos outros. O próprio Jesus, abandona sua condição divina (Fl 2, 6-11), para fazer-se entre nós um profeta itinerante, que "não tinha onde repousar a cabeça”.
Apesar destas "linhas tortas”, como lembra o provérbio popular do título, não é tão difícil encontrar no pergaminho da história belas páginas, onde uma espécie de mão invísil "escreve direito”. É como se a luz de Deus penetrasse nos recantos mais obscuros e desconhecidos daquele labirinto humano, iluminando nossos passos em meio aos obstáculos e à escuridão que nos cerca. Daí a descoberta, por vezes inesperada e a posteriori, de um significado profundo para muitos acontecimentos aparentemente absurdos e sem sentido, como, por exemplo, o sofrimento e morte dos inocentes.
As pegadas humanas deixadas nas pedras da trajetória histórica são ambíguas, no sentido de revelar lembranças boas e más. Tanto umas como as outras podem ser positivamente resgatadas, não apenas com a ação do Espírito, mas também com a ressegnificação do passado a partir de uma luz intensa que brilha no presente. Ou de uma experiência amorosa sem precedentes com o Absoluto, com o outro ou com os pobres. Nesta perspectiva, os fatos do passado são imutáveis, é bem verdade, mas o seu significado permanece sempre aberto, conforme a intensidade da entrega vivida no momento presente. A luz de um verdadeiro amor, aqui e agora, tem efeitos retroativos, podendo resgatar toda uma existência, por maisl maldita que ela tenha sido. São exemplo disso os encontros de Jesus com Maria Madalena, com a Samaritana ou com Zaqueu, para limitar-se apenas a alguns episódios evangélicos. O mais ilustrativo deles segue sendo a parábola do Filho Pródigo (ou do Pai Amoroso).
O labirinto da vida humana é marcado por paixões, interesses, instintos desejos quase sempre conflituosos, seja no inteior de cada pessoa seja nas relações interpessoais. Temor e tremor, euforia e depressão habitam nossos corações, tornando-nos míopes ou cegos diante das opções a serem tomadas. Medos e ruídos, dúvidas e interrogações nos fazem navegar a esmo nas ondas de "mares bravios”. Se, de um lado, a demasiada prudência ou a covardia pura e simples, podem paralisar nossa imaginação e nossas pernas, de outro lado, a confiança e o entusiasmo irresponsáveis tendem a queimar etapas e atropelar uma reflexão mais sóbria e aprofundada. O grande desafio é manter viva a esperança e a utopia, sem tirar os pés do chão histórico em que vivemos, vale dizer, do contexto socioeconômico e político-cultural que nos cerca e condiciona. Por isso é que o conhecimento da história leva em contra passado, presente e futuro, mas, paradoxalmente, se move muito mais em direção ao futuro do que ao passado.
Daí a necessidade da oração, da meditação e da contemplação. O espaço dedicado a essas práticas, longe de subtrair tempo à missão, a qualifica. Na intimidade com Deus, buscamos luzes para uma atividade pastoral orientada pelo Espírito, o qual impulsiona à busca da justiça e do direito, da liberdade e da paz. A ação missionária, por sua vez, interpela, depura e questiona os momentos e a prática da oração. Essas duas dimensões não podem ser dissociadas. Ambas se complementam, se purificam e se enriquem reciprocamente. Oração sem ação resulta na instrumentalização de Deus (um deus com letra minúscula) que justifica e legitima toda e qualquer forma de comportamento; e inversamente, ação sem oração representa a instrumentalização dos pobres em vista dos próprios interesses (pessoais, grupais ou institucionais).
O contato permanente com Deus abre horizontes desmedidos. Uma imagem aproximada da "Casa de Deus” poderia ser um universo transparente, inteiramente iluminado, com um céu azul e límpido ao infinito. Quanto à sua misericórdia pode ser comparada a um imenso oceano de amor, em cujas ondas tranquilas abandonamos nossas frágeis e fatigadas embarcações. Metáforas pobres e insuficientes, sem dúvida, como o são todas as tentativas que procuram retratar o amor e a bondade divivos. Nenhum ser humano poder penetrar sua profundidade, altura e grandeza. De fato, como insiste a teologia negativa, a razão humana mantém-se muito aquém do Ser Deus. Aqui prevalece o prefixo in(infinito, incomensurável, indizível, inalcançavel, indefinível...). Por mais que se acumulem palavras, páginas, livros e bibliotecas inteiras sobre o assunto, Deus permanece um misterium obsconditus.
À medida que nos aproximamos desse universo transparente e desse oceano de amor, bastaria um raio dessa luz e uma gota dessa água para orientar-se no labirinto da existência humana. É nesta perspectiva que, atrvés das "linhas tortas” da história, Deus "escreve direito”. Não que o próprio Deus o faça de seu punho ou dite as palavras a um determinado profeta, como às vezes são levados a crer os fundamentalistas bíblicos. Mas, iluminados pela força de sua transparência e nutridos pela água viva de seu amor misericordioso, nossas ações, ainda que distorcidas, se revestem de um novo significado. Deus escreve, sim, mas utilizando nossas próprias mãos humanas. Deus não age fora das coordenadas da história. Tampouco desrespeita o dom da liberdade concedido a todos os seus filhos e filhas. Superando os limites e fraquezas da condição humana, a graça de Deus requalifica nossas atividades.
É assim que o Espírito endireita nossas linhas tortas. A cegueira e o comodismo, a indiferença ou o desconhecimento distorcem nossas ações, por melhores que sejam as intenções iniciais que as movem. Com razão afirma o provérbio italiano, "tra il dire ed il fare in mezzo c’è il mare” (entre dizer e fazer, no meio existe o mar). Ou então, como escreve o apóstolo Paulo, "faço o que não quero e sou incapaz de fazer o que quero”. De fato, entre o discurso idealizado e a prática real, sempre haverá uma distância considerável, maior ou menor de acordo com o grau de autenticidade de cada pessoa, grupo ou instituição. De qualquer forma, é oportuno ter presente o ideal a ser alcançado, pois isso nos ajuda a orientar os passos na direção do horizonte. Sem o brilho do farol, é difícil acertar o rumo do porto.

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