quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Estudo isenta torcidas organizadas por violência nos estádios




Trabalhos de Norbert Elias e Pierre Bourdieu, entre outros intelectuais, fundamentaram dissertação

SILVIO ANUNCIAÇÃO
Uma tragédia ocorrida em 1995 no estádio do Pacaembu, em São Paulo, foi o desfecho para a investigação sobre violência no futebol conduzida pelo historiador da Unicamp Vitor dos Santos Canale. O episódio ficou marcado pelo confronto entre as torcidas do São Paulo, Palmeiras e policiais militares. Transmitida ao vivo pela televisão, a violência na final da 2ª Supercopa São Paulo de Futebol Júnior deixou mais de cem feridos e um adolescente de 17 anos morto. O estudioso da Unicamp lembra que, sobretudo a partir daquela data, as torcidas organizadas passaram a ser condenadas de modo recorrente pela mídia e pelo poder público como responsáveis pela violência nos estádios.
“O objetivo da minha pesquisa é refutar isso. A violência no futebol não é uma criação das torcidas organizadas. Muito antes dos movimentos das torcidas organizadas, já eram registrados eventos violentos. E no Estado de São Paulo não é diferente”, contrapõe Vitor Canale. O seu estudo analisou as formações coletivas de torcedores no Brasil desde o início do século 20 até 1995. A investigação integra mestrado defendido junto ao programa de pós-graduação da Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp.
“Podemos atribuir vários fatores para a violência que aconteceu no Pacaembu naquele ano. O estádio passava por reformas, e havia uma pequena força policial despreparada para conter a rivalidade entre as torcidas, que se aproveitaram dos restos de construção do estádio. O torcedor, portanto, não é o único culpado pelas situações de violência. E a torcida organizada, muito menos”, argumenta.
A partir daquele momento, recorda o pesquisador, a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) e a Federação Paulista de Futebol (FPF) “culparam as torcidas organizadas, fazendo uma caça às bruxas geral”. O interesse, de acordo com ele, foi transmitir ao país uma imagem que, com o fechamento das torcidas organizadas, seria também o fim da violência.
A dissertação foi orientada pela docente Heloisa Helena Baldy dos Reis, do Departamento de Estudos do Lazer da FEF. Heloisa Reis também integra o Centro de Estudos Avançados (CEAv) da Unicamp e coordena o Grupo Interdisciplinar de Estudos sobre Futebol (GIEF), da FEF. A professora Carmen Lúcia Soares, do Departamento de Educação Física e Humanidades da mesma unidade, coorientou o trabalho. A pesquisa foi financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes).
“O desenvolvimento de estudos e projetos, ainda na minha iniciação científica como membro do GIEF desde 2008, foi um dos estímulos para refletir sobre os assuntos do futebol e seus possíveis enfoques. Outra motivação foi analisar o torcedor organizado, que tem sido marginalizado e associado a termos como violência, alienação e vagabundagem”, conta Vitor Canale, sobre a escolha da temática.
Por que os torcedores brigam?
A questão “Por que os torcedores brigam?” deve ser respondida, de acordo com o historiador, a partir de uma série de aspectos presentes na sociedade. Ele cita, por exemplo, a relação do torcedor com o clube e os conceitos de prazer e masculinidade. “O clubismo é um dos elementos que a pesquisa identificou como gerador da violência. A masculinidade é outro, mas é uma chave para a violência de um modo geral porque o indivíduo passa a querer mostrar valentia e status. Há também a questão da emoção prazerosa que leva torcedores a praticarem violência simbólica, como jocosidades, xingamentos, gritos de guerra, gerando até mesmo enfrentamentos físicos”, revela.
Clubismo
O clubismo não implica, necessariamente, que o indivíduo faça parte de alguma torcida organizada, esclarece Vitor Canale. “Qualquer pessoa pode ‘integrar’ o clubismo por determinados signos e princípios. Por esta lógica, os corintianos torcem tanto pela vitória do Corinthians como pela derrota do Palmeiras. Os corintianos jamais elogiam o time do São Paulo publicamente. É um sistema de pertencimento e significados que leva, inclusive, muitas crianças a serem constrangidas no seu ambiente doméstico. Desde pequenas elas são ‘educadas’ ao modo ‘correto’ de torcer pelo seu time”, ironiza.
Com a formação das torcidas organizadas, o clubismo se acentua, sendo ainda mais determinante para as rivalidades e conflitos entre torcedores, acrescenta o investigador. “Se já havia uma rivalidade antes das torcidas organizadas, a partir do clubismo isso vai crescer bastante. Portanto, o clubismo somado a uma identidade dentro das torcidas organizadas é extremamente importante para compreender a violência, que também vai crescer processualmente”, associa o historiador.
Ainda de acordo com ele, esta relação do torcedor com o clube está cada vez mais arraigada no cotidiano da sociedade, em especial nos países que têm o futebol como primeiro esporte. “A adesão ao clube está muito presente, principalmente, num momento histórico em que as adesões dos jovens, de modo geral, estão cada vez menores. Depois da redemocratização não existe algo a que se aderir, não há um projeto político de massa. Portanto, a torcida vai se tornar um meio de sociabilidade entre as pessoas, em que elas se conhecem e formam um grupo coeso, vindo substituir, por exemplo, as comunidades eclesiásticas de base, partidos e clubes esportivos”.

Política de proibições
Vitor Canale desenvolveu sua pesquisa a partir de revisão bibliográfica da produção sobre violência no esporte, tendo como referência, principalmente, os trabalhos dos teóricos Norbert Elias, Benedict Anderson, Pierre Bourdieu e Éric Dunning, além da vasta produção brasileira sobre torcidas organizadas. “Pretendo mostrar que a violência no futebol não pode ser analisada pura e simplesmente dentro do esporte, mas no âmbito da sociedade, que é o que dizia Pierre Bourdieu com o seu conceito de campo. O torcedor é um pai de família, é também trabalhador…”, exemplifica.
Também foram realizadas entrevistas com os dirigentes das torcidas Gaviões da Fiel e sua dissidência, o Movimento Rua São Jorge (MRSJ). As organizadas foram acompanhadas, inclusive, em observações de campo durante jogos e eventos entre 2011 e 2012. A partir destas investigações e depoimentos, o pesquisador constatou que a política de proibição pode gerar mais violência.
Ele explica que, no Estado de São Paulo, a entrada nos estádios com instrumentos de percussão e bandeiras vem sendo proibida, principalmente depois da tragédia no Pacaembu. “Durante a pesquisa de campo e em entrevistas com torcedores mais velhos, como Vila Maria e Alex Minduin, ouvi que a violência aumentou. Eles argumentam que os torcedores chegavam antes dos jogos e ajudavam a picar papel, participavam dos ensaios da bateria ou ajudavam a fazer a bandeira. Agora, estes torcedores não têm nada para fazer e vão se juntar à galera da ‘porrada’. A galera da ‘porrada’ sempre existiu, mas agora ela vem crescendo”, deduz.
A falta de liberdade nos estádios vem transformando o torcedor num agente passivo, expõe Canale. “O Estado de São Paulo foi constrangendo este torcedor a ser cada vez mais passivo. O torcedor hoje, visto como positivo, é aquele que vai ao estádio, senta na sua cadeira e assiste ao jogo, como quem está assistindo na televisão. Não se pode fazer festa. Os torcedores enfrentam vários problemas para assegurar a sua legitimidade como atores do futebol. Enquanto o ministério público e demais órgãos tratarem eles como atores não legítimos, a resposta será a violência porque não existe canal institucional para debate, conversa e reflexão”, lamenta.

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