quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

A educação do precariado




O termo “precariado” possui significados bastante controversos. Por um lado, Ruy Braga em seu novo livro A política do precariado (Boitempo, 2012) considera o precariado como sendo o “proletariado precarizado”. Por outro lado, Guy Standing no livro The precariat (Bloomsbury, 2010) não considera o precariado como proletariado, mas sim uma nova classe – “the new dangerous class”. Eu tenho utilizado o conceito de “precariado” com uma significação sociológica bem específica.

Giovanni Alves
12.12.17_Giovanni Alves_A Educação do Precariado_Artigo Boitempo
“Os meus sonhos, foram todos vendidos 
Tão barato que eu nem acredito, ah, 
eu nem acredito”
Cazuza
Primeiro, ele não constitui uma nova classe social, mas sim uma nova camada da classe social do proletariado. No século XXI, o proletariado como “classe” social amplia-se e diversifica-se, cada vez mais, no plano sociológico. Na medida em que se desenvolve o modo de produção capitalista e dissemina-se a lógica do trabalho abstrato pela vida social, universaliza-se a condição de proletariedade.
Depois, o precariado não pode ser meramente identificado como “proletariado precarizado” pois considerá-lo assim, significa perder a especificidade da categoria social de precariado. Na verdade, precariado diz respeito a uma nova camada da classe social do proletariado constituída especificamente por jovens-adultos altamente escolarizados imersos em relações de trabalho e emprego precário. Portanto, o conceito de precariado implica o cruzamento das determinações de ordem geracional, educacional e salarial.
A nova camada da classe do proletariado que se explicita nas condições históricas do capitalismo global se distingue de outras camadas sociais precárias do proletariado – por isso não podemos meramente reduzi-lo a “proletariado precarizado” (por exemplo, os trabalhadores precários de baixa qualificação profissional e os trabalhadores precários adultos acima dos 36 anos).
Como temos salientado em artigos anteriores neste blog – como, por exemplo, a série de artigos O enigma do precariado –, a nova camada social do precariado se vincula historicamente à etapa de crise estrutural do capital e a hegemonia do capitalismo financeiro. Ele se manifesta socialmente com vigor nas economias capitalistas mais desenvolvidas onde a contradição radical entre desenvolvimento das forças produtivas e relações sociais de produção assume dimensões amplas e intensas. O próprio “precariado”, em si e para si, é expressão de classe do desenvolvimento das forças produtivas do trabalho social descartabilizadas pelas relações sociais de produção capitalista. Neste caso, aplica-se o que István Mészáros caracterizou como “produção destrutiva” e a taxa de utilização descrecsente do valor de uso.  O precariado é expressão do sistema social da produção do desperdício generalizado: desperdiza-se a futuridade de jovens altamente escolarizados, penhorando-se suas perspectivas de carreira e mobilidade social (uma manifestação em Lisboa no dia 13 de dezembro de 2012 intitulou-se “Não penhorem as nossasvidas”).
Enfim, o capital em sua dimensão exacerbada no plano do mercado mundial, “queima” trabalho vivo altamente qualificado incapaz de ser absorvido pelo modo de produção de mercadorias. Como salientamos alhures, o precariado é o sintoma perverso das contradições radicais da ordem burguesa hipertardia (a perda da futuridade e a frustração das promessas civilizatórias ampliam-se com a vigência da financeirização da riqueza capitalista e a hegemonia do capital financeiro).
A ideia de futuridade é crucial para delimitarmos a camada social do precariado. É uma camada social caracterizada especificamente pela frustração com suas expectativas de carreira profissional e realização salarial. Por exemplo, a experiência do precariado torna-se efetivamente visível hoje no polo mais desenvolvido da ordem burguesa: a União Europeia. O Estado social europeu construiu-se disseminando o sonho de realização profissional no bojo da ordem social-democrata do capital. Educação, emprego e consumo eram o trinômio da realização humana. Abandonou-se, deste modo, a utopia social para além do capitalismo como modo de produção de mercadorias e exploração do homem pelo homem. A crise europeia hoje é não apenas uma crise da economia do Euro, mas sim, uma crise radical da ideologia da concertação entre capitalismo e bem-estar social.
Portanto, o conceito de precariado que propomos é constituído pelas seguintes determinações histórico-concretas: (1) a constituição de um sistema universitário de graduação e pós-graduação que se ampliou exponencialmente nas últimas décadas, produz hoje, a cada ano, um imenso contingente de jovens-adultos licenciados altamente escolarizados imersos em sonhos, expectativas e anseios de carreira e realização profissional. Depois, (2) a vigência de um novo mercado de trabalho sob a dinâmica do capitalismo global predominantemente financeirizado, incapaz de absorver o contingente de licenciados à altura de suas perspectivas profissionais, levando-os, portanto a se inserirem em relações precárias de emprego e trabalho; e finalmente, a (3) vigência do capitalismo manipulatório com sua ideologia farsesca do capitalismo de bem-estar, organizada em torno da perspectiva de compatibilizar o incompatível: economia de mercado nas condições da mundialização financeira e bem-estar social numa sociedade democrática de direitos.
É o cruzamento particular desta constelação histórico-social que se efetiva no interior do capitalismo do século XXI que produz a nova camada social do proletariado denominada precariado: jovens-adultos altamente escolarizados inseridos em relações de trabalho e emprego precários.
Na década de 2000 no Brasil, uma série de jovens trabalhadores e trabalhadoras altamente escolarizados incorporaram-se em relações salariais que, apesar de formalizadas, são precárias no sentido de terem baixa remuneração, alta rotatividade e falta de perspectivas de carreira – sem falar nos contratos atípicos de trabalho subnotificados nas estatísticas sociais (estágios, trabalho temporário, PJ, cooperativas de trabalho etc). Nesse período, constituiu-se a nova precariedade salarial engendrada pelo capitalismo flexível que surgiu no País com a reorganização do capitalismo brasileiro. No plano do metabolismo social, a nova condição salarial produz precocemente, na camada de jovens proletários altamente escolarizados imersos na nova precariedade social, estresse e transtornos mentais por conta da nova dinâmica do capitalismo flexível com sua carga de pressão, ansiedade e frustração.
Entretanto, no Brasil, a experiência de classe do precariado ainda é residual se compararmos, por exemplo, com a União Europeia, onde existem movimentos sociais organizados para expressar a nova camada social do proletariado (por exemplo, em Portugal, os “Precários Inflexíveis” ou mesmo na Espanha, o Movimento 15M, não deixam de ser expressão do precariado organizado). A camada social do precariado em si e para si, ainda é invisível no Brasil, tendo em vista que não encontram expressão organizada em movimentos sociais ou sindicais, capazes de incorporá-los como sujeitos de classe com suas especificidades sociais.
As universidades públicas e privadas, que formam, todo ano, milhares de novos trabalhadores assalariados dispostos a se inserirem no novo mercado de trabalho e nos novos locais de trabalho reestruturados, são incubadoras do precariado. Em dez anos, o Brasil mais que dobrou o número de concluintes na educação superior (segundo dados do Censo da Educação Superior, de 2001 a 2011, o crescimento de universitários no País foi de 110%).
Por outro lado, no decorrer da década de 2000, o desemprego aumentou significativamente entre aqueles com mais de 11 anos de estudos (36,82% em 2002, 39,84% em 2003; 43,16% em 2004; 46,19% em 2005; 47,81% em 2006; 50,70% em 2007; 52,92 em 2008; e 56,46% em 2009, segundo dados do IBGE/PME), com um leve decrescimento entre aqueles de 18 a 24 anos (1,5% entre 2002 e 2009) e um pequeno crescimento entre aqueles de 25 a 49 anos (2,4% entre 2002 e 2009).
Não nos interessa discutir neste pequeno ensaio a natureza dos maiores desempregos entre os jovens ou entre as pessoas que possuem oito anos ou mais de estudos. O que buscamos salientar é que, mesmo com o crescimento do PIB ocorrido na década de 2000, a partir de 2003, não se alterou de forma significativa, a precariedade salarial entre os jovens-adultos altamente escolarizados. 
O curta Galera (Projeto CineTrabalho/Práxis vídeo, 2012, veja abaixo), que dirigi, com produção de Mateus Bortoleto Rodrigues, Artur Gondo e Felipe Resina de Campos, trata da perspectiva de futuro de jovens formandos. É um pequeno registro audiovisual dos sonhos, aspirações, expectativas e perspectivas de trabalho de jovens universitários no último ano do curso de graduação na Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP – Campus de Marília.
Este documentário é o registro singelo das perspectivas da juventude nas condições de crise do mercado de trabalho no capitalismo global. Os jovens estudantes aparecem como sonhadores, ansiosos e pragmáticos, expressando-se, algumas vezes, com humor, sua condição existencial de proletariedade.
“Galera” significa grupo de pessoas, amigos, cambada ou turma, mas significa também um tipo de navio movido a remos. O jogo de palavras do título do documentário sugere que, navegando no “mar neoliberal”, os jovens formados que sonham com o sucesso profissional, são obrigados “a remar” com um esforço insano, como se estivessem, em alto-mar, numa galera. Como diz um deles: “[Está] cada vez está mais difícil o mercado de trabalho”. E prossegue comentando suas perspectivas de trabalho: “Quem sabe, tentar a pós-graduação, porque hoje, com o diploma, não é igual há trinta anos, [quando] você tinha mais chance; era uma pessoa mais seleta que hoje. [Hoje] é seleta, mas não é tanto. Hoje em dia é preciso fazer uma pós-graduação, uma especialização; hoje o mercado leva você a essas especializações que demandam muito sempre da pessoa”.
A maioria dos jovens coloca a necessidade de fazer especialização ou aprimoramento – como eles dizem. Enfim, uma pós-graduação capaz de lhes garantir a dita “empregabilidade”: “Para ter um bom emprego, você precisa estar se atualizando, continuar se aprimorando, para ter uma boa oportunidade”. Mas a escolha do aprimoramento continuado ou cursos de especialização e pós-graduação tornou-se a versão atual do alongamento da escolarização, não apenas como a alternativa mais recorrente dos jovens diante do desemprego, mas como necessidades de qualificar-se melhor para acesso a certos postos de trabalho melhor remunerados, que não são para todos.
Enfim, a universidade continua tendo a função de manter por mais tempo a população jovem afastada do escasso mercado de trabalho (a teoria da escolaparking), retardando a entrada dos estudantes na vida ativa. Entretanto, tem-se a percepção da desvalorização do diploma de graduação, que exige mais tempo de estudo para capacitar-se e melhor se inserir no mercado de trabalho. A tendência que se impõe é que se produza cérebros para exercerem trabalhos simples e rotineiros em atividades de emprego e trabalho precário (como, por exemplo, os call centers). Apesar disso, os jovens profissionais continuem acalentando o sonho da realização profissional.
No livro A política do precariado (Boitempo Editorial, 2012), Ruy Braga encontra nos operadores de telemarketing, o exemplo do precariado pós-fordista periférico. Para ele, os teleoperadores resumem todas as tendências importantes do mercado de trabalho no país na última década: formalização, baixos salários, terceirização, significativo aumento do assalariamento feminino, incorporação de jovens não brancos, ampliação do emprego no setor de serviços, elevação da taxa de rotatividade do trabalho etc. Eles são uma espécie de retrato do “precariado pós-fordista” em condições sociais periféricas. 
No pequeno documentário Galera, outra saída individual apontada pelos jovens universitários no último ano de graduação para driblar a inserção no “precariado” seria prestar concurso público. De modo pragmático, um deles afirma categoricamente: “Arrumar concurso público para ganhar dinheiro e depois área acadêmica”. Entretanto, o setor público não é para todos, principalmente nas condições históricas de hegemonia do capitalismo neoliberal.
 A educação do precariado é movida a sonhos de realização profissional e, quiçá, ascensão social. Diz um dos jovens universitários em Galera: “Os planos de carreira são muito restritos, muitos precários”. E arremata logo a seguir: “De certa maneira, nós precisamos ter um horizonte para poder caminhar”. Mais adiante, uma jovem que cursa o último ano do curso de pedagogia diz: “Espero ter uma casinha e tudo mais… porque só sendo uma professora universitária para ganhar bem”.
Entretanto, o sonho de ser professora universitária torna-se difícil de ser realizado quando se pondera as dificuldades do presente de precariedade salarial. Diz ela: “… mas para chegar lá, vai ser bem complicado. Ter que dar aula integral, dar seis, sete aula aulas, de manhã; vai lá, dobra, faz de tarde, vai para a Faculdade à noite; na madrugada você pesquisa.” Sonhadora, afirma: “Mas acho que estou disposta a correr isso porque eu acredito, eu acredito que as coisas possam mudar com as pessoas que sejam preocupadas com a mudança da educação…”.
A dialética entre o “feijão e o sonho” – sonho contingente do proletariado de uma vida boa – está expressa na afirmação de outro estudante: “Nós ficamos entre a esperança e a noção de realidade que não é muito boa”. Mais do que nunca, tem-se a percepção da irremediável proletariedade. Um estudante de ciências sociais afirma que vai ser professor de ensino médio como ele diz, “mais por mim do que por uma questão monetária”. E arremata: “Já me convenci de que vou ser um pobre feliz”.  
No Brasil, capitalismo hipertardio com modernidade insólita (como umornitorrinco, nos diria Chico de Oliveira), o “descompasso” entre educação e mercado de trabalho vem de longa data. Por exemplo, em 1982, José Reginaldo Prandi constatava no livro Os favoritos degradados, a existência, naquela época, de um contingente de jovens com ocupação estranha à formação universitária; jovens formandos com inserção ocupacional que, diz ele, “corrói a anteriormente sólida base dos projetos de vida individuais e familiares das classes médias urbanas órfãs do milagre brasileiro”. Prandi os denomina de “favoritos degradados”. Naquela época, há cerca de trinta anos (1982), o Brasil amargava a “crise do milagre”, com a estagnação da economia que prosseguiria por quase duas décadas.
Embora nos últimos vinte anos (1990-2012), a economia brasileira tenha se reestruturado e reorganizado de acordo com os parâmetros neoliberais, tendo retomado um crescimento no bojo da liquidez do capitalismo global da década de 2000, o fenômeno dos “favoritos degradados” assume hoje outras dimensões. Não se trata apenas de fazer a economia brasileira crescer. Valéria Matos no livro Pós-graduação em tempos de precarização do trabalho (Ed. Xamã, 2011), observa: “se nos anos 1980 era perceptível a adoção de estratégias individuais como graduação em dois cursos complementares, desempenho acadêmico diferenciado e realização de estágios diversos, na tentativa de reparar a qualidade do ensino e, sobretudo, de evitar o desemprego, o que se verifica a partir dos anos 1990, é o deslocamento de tais estratégias para os cursos de pós-graduação lato sensu e stricto sensu, com o intuito de obter vantagens competitivas que auxiliam na evitação do desemprego”.
Entretanto, em trinta anos de capitalismo global a condição de proletariedade adquiriu maior percepção entre jovens profissionais que tem consciência da mudança de status que passam profissões outrora profissões liberais (médicos ou advogados, por exemplo) e que hoje, é visível o processo de proletarização e precarização das condições de trabalho. Na verdade, a promessa de mobilidade social se interverteu na ideologia de resignação à proletariedade flexível, o que explica, de certo modo, atitudes de pragmatismo que visam tão somente se adequar (para sobreviver) às exigências do capitalismo perverso (o adjetivo “perverso” possui significação literal, isto é, perverso é aquele que te desefetiva como individualidade pessoal humano-genérica e, ao mesmo tempo, provoca tua auto-gratificação pessoal); ou ainda, capitalismo cínico, que, incapaz de validar as promessas civilizatórias da vida digna, cultiva o ideal da “vida fluída” que carrega o estigma da incerteza sob o esteio da flexibilidade. Enfim,capitalismo manipulatório, que quebra, no plano da subjetividade, as possibilidades de estratégia coletiva e acirra as estratégias individuais de sobrevivência na “selva” do mercado. Falta à galera, uma perspectiva do coletivo em movimento.
Como o precariado é constituído por jovens altamente escolarizados, o peso da ansiedade é maior, tendo em vista que, quanto mais escolarizados, mais expectativas de “boa vida” alimentam. Talvez não se trate propriamente de expectativas ou anseios pessoais, mas sim da aceitação das estratégias de mobilização subjetiva para competências específicas alicerçadas mais em atitudes e habilidades comportamentais do que técnicas, sobretudo sob o “espírito do toyotismo”, no qual se faz imperiosa a necessidade de desenvolver aptidões como capacidade de resolver problemas, de se relacionar em trabalho em grupo, criatividade, comunicação, improviso e adaptabilidade.
Na verdade, a “captura” da subjetividade começa no percurso de escolarização superior e na própria dinâmica de organização pedagógica dos cursos superiores que produzem “mentes ansiosas” adequadas ao estilo de vida “just-in-time”.
A educação do precariado torna imprescindível para dar sentido à ação instrumental na pseudo-concreticidade da vida cotidiana de jovens proletários sonhadores, ansiosos e pragmáticos, que o mantra do capital humano se perpetue, não mais validando a aquisição do emprego por toda a vida, mas sim a capacidade de empregabilidade em trajetórias ocupacionais intermitentes, liminarmente precárias.
Assista o vídeo Galera, sobre o tema deste debate: clique.
Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET) e do Projeto Tela Crítica. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011).

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