sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Os idiotas e o desespero da revista Veja


Uma boa estratégia editorial para iludir incautos, angariar leitores e alavancar as vendas é simplificar as coisas. A complexidade do mundo se limita a análises apoiadas nas ambiguidades verdade e mentira, certo e errado, bem e mal. Bata na tecla exaustivamente criando um mundo fictício, mas atraente para os preguiçosos minimalistas. A revista Veja, adepta de primeira hora deste estratagema, vai além: utiliza de forma recorrente a ofensa como recurso de expressão. Será que a crise das mídias impressas está fazendo mais vítimas?

Ricardo Alvarez
Durante longo tempo a TV brasileira reproduziu as séries enlatadas ianques que espinafravam os apaches e seus hábitos de vida, os famosos bang-bang. Não sem motivo.
Selvagens, desprovidos de sentimentos, andavam nus e deslocavam-se pelas planícies centrais dos EUA em busca de alimentos e abrigo. Moravam em lonas. Nem o sedentarismo haviam ainda conquistado. Balbuciavam estruturas gramaticais primitivas e se expressavam através de uivos estridentes.
Inerente ao seu cotidiano estava o desejo incontido de raptar cândidas mocinhas brancas, prontamente resgatadas pelos bravos soldados que enfrentavam os peles vermelhas com bravura indômita, livrando-as do jugo selvagem.
Os filmes de bang-bang fizeram sucesso e cabeças. Sim, tudo era muito simples, nada de sofisticação. Os brancos representavam a evolução e a superioridade, em essência o progresso. Quem se oporá á eles? Os indígenas, ao contrário, sintetizavam o atraso.
Receita simples no tratamento de uma grave questão social, representada pela política de conquista do oeste empenhada pelos brancos, na busca de terras para o plantio de alimentos e no abastecimento de matérias primas da nascente indústria norte-americana. O que se gerou, ao contrário, é a provocação deliberada de uma inversão histórica, onde as vítimas assumem o papel de algozes e os criminosos o de heróis. Qualquer semelhança com o Brasil não é mera coincidência.
Passado tempo a Guerra Fria serviu de combustível ao novo antagonismo emergente entre o bem e mal. Os indígenas seriam paulatinamente substituídos por amarelos habitantes de florestas úmidas, carniceiros e, por óbvio, também selvagens. A Guerra do Vietnã gerou outra leva de filmes, que na onda da ficção sempre davam a vitória aos soldados em guerra nas florestas, sedentos de vingança e repletos de saudades de suas famílias. Novos inimigos, sob o mesmo roteiro, aproveitados novamente pelos cineastas Hollywoodianos, eficazes na colaboração ideológica.
Hoje, quem ocupa o posto são os islâmicos. Prepara-se o coração para o etnocídio, aliviando o peso de ações militares promotoras de chacinas no Afeganistão ou Iraque. Matar crianças islâmicas deixa de ser um problema: é um investimento contra o terror futuro. Desnecessário dizer que o cinema, neste caso, também oferece valorosa contribuição desqualificando um povo e sua religião, generalizando-o como terrorista ou apoiador deles.
Amanhã novos atores sob a mesma trama. Quem será a encarnação do mal?
Quando se ataca insistentemente um determinado grupo social com ideias pautadas pela falsificação ideológica, prepara-se o terreno para ações bem mais concretas. O bombardeio ideológico cria meios de justificar o físico. Hitler convenceu alemães que era preciso eliminar o outro para que tudo fluísse como deveria. Deu no que deu.
A leitura simplificada da sociedade dicotômica sempre abre espaço para a o descaso social, derivando para a tirania quando aplicada em doses nada homeopáticas. As dezenas de países no mundo invadidos pelos EUA desde o início da Guerra Fria são testemunhas vivas deste processo.
Esta estratégia de poder se espelha nas redações da grande imprensa brasileira, que compartilham esta visão de mundo e defensoras implacáveis destes métodos. Veja se destaca no quesito agressividade.
O colunista da revista e correspondente em Nova York Caio BLinder, no programa Manhattan Connection, defendeu abertamente o assassinato do cientista iraniano Mustafa Ahmadi Roshan, de 32 anos, após a explosão de uma bomba em seu carro. Disse ele: "Você às vezes precisa matar gente agora, assassinar, é um assassinato… e não só isso… você também intimida os outros cientistas". Para ver o vídeo, clique aqui.
Neimeyer morreu e virou metade idiota por ser militante comunista em parte de sua vida. O “Manual de Redação Vejista” separa as pessoas entre os liberais e os comunistas (os primeiros representantes do bem e os segundos do mal, evidente). Por isso ela idolatra os tucanos e ataca a esquerda. Chávez é constantemente espinafrado, mas Obama e Bush poupados. Merkel é a chave que abrirá a porta da superação da crise na EUA. Margaret Thatcher e Ronald Reagan, em tempos passados, elevados à condição de Deuses em terra.
É a velha luta de classes em ação, insistentemente negada e classificada como uma ideia ultrapassada, morta e enterrada. Veja fez coro - vale lembrar – com Francis Fukuyama, quando este decretou o fim da história e a vitória suprema do capitalismo. Hoje ele escreve sobre os problemas ambientais, pois a história se negou a morrer, para nossa sorte.
Separe as pessoas, as coisas, a sociedade, o mundo, entre os que querem o bem e os que praticam o mal. Assuma um lado e repita à exaustão, em todas as edições, esta dicotomia. Transforme-a numa religião e reze diuturnamente esta cartilha. Quando reclamarem que o nível baixou, repita a dose com agressividade. Busque audiência e vendas apoiado no belo discurso da diversidade de opinião, mesmo sendo ofensivo o que se publica. Se o tom das críticas crescer, suba mais um degrau e apele à liberdade de imprensa, como se fosse possível escrever o que se quer sem limites.
A grande imprensa, e também a Veja, são empresas, antes de ser a voz da liberdade, de sintetizarem séculos de luta social contra a opressão. Suas redações são orientadas por interesses políticos, suas matérias obedecem a um projeto liberal de apoio militante do capitalismo. Policarpo Jr. tem (ou tinha) relações de grande proximidade com Carlinhos Cachoeira. Demóstenes era ovacionado e Serra idolatrado, como digno representante da classe média branca e xenófoba paulista. Estas são algumas de suas opções. Mas ela insiste em vender a imagem da neutralidade, e o que é pior, muitos compram.
Veja faz uma defesa intensa da meritocracia (contra cotas, por exemplo), do ataque aos mais pobres (preguiçosos e indolentes), pela valorização da violência como arma efetiva de combate aos problemas sociais e da redução do papel do Estado na intervenção da economia (neoliberalismo). Sua agenda é profundamente conservadora (adversa às mudanças sociais e pela manutenção do capitalismo) e resulta no apagamento do processo civilizatório. Ela parte da percepção de que as pessoas são o que são independentes de sua posição social, de sua história, de seus recursos econômicos.
Negros têm as mesmas chances que brancos, embora as pesquisas mostrem exatamente o contrário. Crianças brancas mortas valem muito mais do que negras em tiroteios na periferia, que se reduzem a números nas notas sobre chacinas. Defende a pena de morte como solução para a violência urbana, mas esquece de dizer que ela já existe, para pobres e negros.
Dividir a torcida em blocos pode ajudar a vender revistas e criar séquitos de seguidores, mas é pouco eficaz no debate público e no avanço da massa crítica social. Aos que acreditam nestas verdades absolutas peço que reflitam sobre o tipo de sociedade que desejamos. A fórmula das soluções simplistas para problemas complexos tem fôlego curto.
Observemos, por exemplo, os resultados práticos do referendo sobre a proibição da comercialização de armas de fogo e munições em 2005. Feita a apologia do direito individual de se armar, pergunto: você se sente mais seguro hoje com uma pistola guardado no carro ou em casa? O melhor caminho de mitigação dos problemas decorrentes da violência urbana é o de facilitar o acesso ao armamento? Devemos distribuir armas ou renda? Veja tem posição sobre isto.
Políticas sociais estimulam a vadiagem e a preguiça. Feche a revista, olhe para seu lado e diga o que você mais vê? Gente trabalhando duro, perdendo horas nos ônibus, deixando filhos com conhecidos, morando em locais precários, ganhando pouco e doente? Ou gente folgada em casa por ganhar alguma assistência do governo federal, estadual ou municipal?
Eis a questão. Também defendo a liberdade de imprensa, mas não como um valor absoluto e ela não pode servir para o estímulo à agressividade e o desrespeito ao próximo, como ela faz. Ela deve ter limites pois não está acima da política, é parte dela. Tem lado.
Sua posição liberal implica em destacar os valores da pessoa como regras acima do funcionameno da sociedade e os interesses coletivos. O individualismo e a competição são valores exaltados; solidariedade e justiça social produto de segunda categoria. Os que defendem as regras de mercado ocupam páginas e páginas da revista, os que apostam noutra sociedade, mais justa e igualitária, são por ela esquecidos, quando não ofendidos.
Foi o caso de Neiemeyer. Como as pessoas são únicas o jeito foi classificar o arquiteto como meio gênio e meio idiota. A sua porção boa e sua porção má. Há um mês o espinafrado foi Eric Hobsbawn, morto no início de outubro e definido também como um “idiota moral”.
Se você acha que isso faz parte do rol de direitos de uma revista, se liberdade de expressão inclui ofensas baixas como esta, me desculpe, mas eu me daria o direito de classificar os leitores desta revista de estúpidos e também reivindicar o meu direito de expressão. A reação seria agressiva, é lógico, e o debate iria para o buraco. Este é o papel social de um meio de comunicação?
Se ela se resume a uma empresa, vá em frente, xingue e capte leitores, o que já seria por si abominável, mas até compreensível como opção mercadológica. Mais grave ainda é ter redução de impostos nos preços do papel (beneficiária da lei de difusão da leitura), de receber vultosas verbas de publicidade do poder público, além de ser comprada em massa em São Paulo para ser distribuída nas escolas públicas.
Ronda o meio editorial impresso uma crise de dupla face: vendagem e credibilidade. No primeiro caso a competição com as mídias virtuais tem produzido estragos gigantescos e, no segundo caso, as espionagens, invenções, dossiês fictícios, destruição de reputações, enfim, métodos condenáveis da prática do jornalismo marron produziram até o fechamento de meios de comunicação. A segunda crise criou uma sinergia com a primeira antecipando a descida ao buraco. Seriam as ofensas resultantes de uma estratégia pensada em intensificar a divergência nos termos da baixaria como um recurso possível? Os exemplos que vem da Europa não são animadores neste sentido.
Niemeyer e Hobsbawm cometeram erros, sem dúvida, mas o saldo de suas vidas é inquestionável, com extensa contribuição para a reflexão social, para o pensamento em geral e a ciência em particular. Tratá-los como idiotas sensibiliza apenas os amantes da revista (também idiotas), que são minoria dentre seus leitores, formados de gente crítica e exigente de qualidade e respeito. Como se diz no ditado popular: quem agride normalmente perde a razão.
Ricardo Alvarez é geógrafo, é professor e editor do site Controvérsia

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