O pensador lança livro em que traça uma história dos interesses particulares apresentados como gerais e diz que o populismo foi mal necessário no Brasil
Carta Capital
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A ampla casa de Cotia onde mora o professor emérito da Universidade de São Paulo Alfredo Bosi assistiu a momentos cruciais da história brasileira. No final dos anos 70, por exemplo, o terraço da casa abrigou reuniões fraternas com padres de esquerda, sindicalistas e intelectuais que resultariam na criação do Partido dos Trabalhadores. Desde algum tempo, portanto, o autor de Ideologia e Contra ideologia (Companhia das Letras, 448 págs., R$ 58) dedica-se, como o partido em seu início, a contestar o status quo.
A nova obra de Alfredo Bosi surge como um dos mais importantes estudos sobre o combate à dominância ideológica. Para realizá-lo, o historiador descreve seis séculos de história do pensamento. Analisa, entre outras, as obras de Francis Bacon, Montesquieu, Condorcet, Regel, Simone Weil, Antonio Gramsci, Celso Furtado, Joaquim Nabuco e Machado de Assis. Bosi os vê como opositores às ideias que construíram a escravidão, a pobreza, a incultura, o stalinismo, a estupidez. Com elegância e síntese, o professor demonstra nas entrelinhas do livro os mecanismos de sua própria resistência intelectual.
É paciente e metódica a fala desse paulistano de 73 anos que, durante entrevista de duas horas a CartaCapital, por vezes fecha os olhos na direção do inter1ocutor, como se meditasse ou orasse junto a ele, à procura dos termos exatos que definiriam um pensamento. Quando a frase certa lhe surge entre os retratos familiares distribuídos pela sala, especialmente os de sua mulher, a renomada pesquisadora Ec1ea, seus olhos se abrem e ele eventualmente sorri.
CartaCapital: Que estudos motivaram este livro? Como ele lhe surgiu?
Alfredo Bosi: O tema da ideologia e da contraideologia já aparece de outras maneiras na minha História Concisa da Literatura Brasileira, de 1970. Durante a ditadura, eu estava motivado pela ideia de que a nossa tinha sido uma cultura oprimida desde a colonização. Ao longo de 400 anos de história, eu encontraria exemplos de narrativas resistentes ao lado daquelas conformistas. Não foi difícil achar, às vezes em um mesmo texto, ambas as posições. Ao estudar os anos 30, época de ouro do romance brasileiro, verifiquei graus de tensão diferentes entre o autor e seu universo. Nos momentos de acomodação, detectei algo que denominei tensão mínima. No outro extremo, havia narrativas conflituosas, de tensão máxima, como as de Graciliano Ramos. Percebi, concomitantemente, momentos de conformismo, de reprodução da ideologia dominante, e de resposta negativa, de interrogação. A monumental História da Literatura Ocidental de Otto Maria Carpeaux me ensinou a ver assim. Por sua formação dialética na Alemanha pré-nazista, Carpeaux tinha sensibilidade para as diferenças internas dos períodos. Um segundo momento de gênese da minha pesquisa foi aquele em que escrevi O Ser e o Tempo da Poesia, em meados dos anos 70. Ainda havia ditadura. Consagro o capítulo Poesia e Resistência às formas de resistência que a poesia, sobretudo a lírica, desenvolveu. Quando os ensaios marxistas voltaram à baila, a partir dos anos 80, favoreceram a ec1osão dos trabalhos sobre ideologia, contraideologia e utopia na literatura. Meu livro se situa nessa trajetória e tem motivações na realidade nacional.
CC: Que distinção o senhor faz entre ideologia e contraideologia?
AB: Ambas se articulam como um conjunto de ideias e valores. A diferença é que a ideologia generaliza interesses particulares e os dá como se fossem universais. Por exemplo, a ideologia da competitividade corresponde à luta econômica que a burguesia trava nos meios do poder financeiro e industrial. Mas os ideólogos do capitalista procuram demonstrar que a competição é uma necessidade universal, até fundada na biologia, em Darwin. Para convencer os seus destinatários retoricamente, já que se trata de uma arte de persuadir, os ideólogos criam um discurso justificador universal para esconder seus interesses. Os editoriais dos grandes jornais e das revistas de grandíssimas tiragens são peças ideológicas perfeitas. No caso da contraideologia, a intenção é o bem comum. O escritor contraideológico, que combate a ideologia da competitividade, por exemplo, procura demonstrar que ao lado do que seria o instinto competitivo existe uma tendência solidária. O discurso contraídeológico visa ao bem-comum, não particulariza interesses.
CC: O título de seu livro exclui a designação utopia. Esta é uma palavra condenada?
AB: A origem do termo, significando o não lugar, remete a um ideal extremo, que seria o oposto do lugar onde estamos. É uma forma extremada de contraídeologia. Mas a contraideologia, tal como a concebo, pode ter aspectos reformistas. O economista Celso Furtado, por exemplo, tinha propostas reformistas sólidas. Defendia a reforma agrária, a intervenção do Estado na economia. Ele estudava as coisas da maneira como estavam e procurava remover as causas a médio prazo. Falava em repartição de rendas, em imposto progressivo, algo que se realizou nos países escandinavos. O pensamento reformista é também o do historiador e político Joaquim Nabuco, que mesmo dentro do liberalismo percebia a insuficiência daquele modelo e lutava contra a escravidão. Seu liberalismo já propunha leis de reforma agrária no século XIX. Nabuco pensava ser possível a união pelas leis sociais. Essas leis vieram ao Brasil somente depois da Revolução de 30, com Lindolfo Collor, um grande homem sem qualquer relação com seu desastrado neto. Como ministro do Trabalho, percebeu ser preciso outorgar leis trabalhistas como as europeias. Essas leis foram contrastadas pela Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, a Fiesp, que não queria a implantação do salário mínimo em 1934. A contraideologia crítica, que muitas vezes nos parece pouca coisa, requer luta.
CC: Onde estariam as mentes contraideológicas reformistas na atualidade brasileira?
AB: Aqui seria preciso fazer uma análise minuciosa das iniciativas do governo nos últimos oito anos, até antes, para verificar se esta cunha contra ideológica está não apenas na universidade, se ela penetrou na mentalidade de alas políticas. Conhecemos as interessantes iniciativas do governo Lula como o Bolsa Família. Agora, o Estado contempla o doador do trabalho, aquece a economia pela via do consumidor popular. Esta é uma ideia reformista, crítica da posição contrária, que contempla o empresário, o banqueiro. Não sou economista, mas vejo como as coisas estão acontecendo. E espero que continuem acontecendo.
CC: O senhor vê uma ação contraideológica do pensador Antonio Gramsci em relação ao partido que ele ajudou a fundar, o Partido Comunista Italiano?
AB: Gramsci entra em meu livro na sua aproximação com a socialista francesa Simone Weil. Ela defendia que o operário tivesse cultura para reivindicar não só melhor salário, mas outro estilo de vida e participação política. Ela era informada sobre o comunismo russo de 1933, por isso acreditava que o país não faria uma revolução do operariado, mas à custa dele. Gramsci não a conheceu, embora já dissesse que todo homem era um intelectual. Mostro, no livro, as semelhanças de seu projeto com o de Weil. Ela seria mais radical, quase utópica, ao passo que ele tinha os pés no chão. Fez a universidade popular de Turim e dava aulas para operários.
CC: Gramsci era um herético marxista?
AB: Ele ia além do marxismo. Achava que a militância, o proselitismo político, não deveria se dissociar da formação cultural operária. Outra ideia dele era que a educação não fosse muito especializada em seu início. Receava que, atuando como especialista na fábrica muito cedo, o jovem não tivesse a chance de dialogar com outras pessoas em termos de cultura. A ideia de uma formação anterior à especialização técnica é uma conquista de Gramsci. Ele contrariava a ideia capitalista de que a divisão do trabalho deveria ser feita de forma absoluta.
CC: O senhor vê o Partido Comunista Italiano e o Partido dos Trabalhadores heréticos no seu início?
AB: No caso do PCI, havia a crença de que a Revolução Russa, de 1917, seria o modelo da revolução operária. Os primeiros anos do partido, fundado em 1921, foram ortodoxos. Somente quando o stalinismo se intensificou, nos anos 30, percebeu-se que o caminho escolhido na Rússia tinha sido o da ditadura do partido. A formação do PT, que eu segui de perto, foi muito estimulante no final dos anos 70. Eu estava ligado à Pastoral Operária, próxima da esquerda católica. Trabalhei em Os asco inspirado no padre francês Domingos Barbé, que morava em uma pequena comunidade proletária na qual eu dava aulas de História. No terraço de minha casa, em 1979 e 1980, vinham aqui o padre e uma série de operários para discutir o que seria um partido de trabalhadores. De um lado havia a pastoral, de outro, os sindicatos do ABC paulista. E uma terceira força era a de intelectuais, muitos da USP. A esquerda católica, os sindicatos e os intelectuais criaram o partido. Nos anos 80, apareceu a Central Única dos Trabalhadores, um racha nos sindicatos contra o peleguismo. Essa divisão me desagradou. Sempre gostei do Leonel Brizola, o populismo foi um mal necessário para o Brasil. O PT nasceu, então, de pessoas simples que trabalhavam em creches e paróquias, que faziam "mosquitinhos", tiras de papel espalhadas pelas fábricas. Até hoje, aquelas senhoras que distribuíam os panfletos me dizem: "Nós fundamos o partido, professor! Nós jogamos os mosquitinhos!" E, agora, o partido está longe delas.
CC: Por que esse distanciamento ocorreu?
AB: O PT foi fundado como um partido democrático de esquerda, sem estrutura partidária clássica. Quando chegou ao poder, não pôde mais adotar o esquema dos pequenos grupos, já que concorria com outros partidos. Não quero dar uma mensagem pessimista neste momento eleitoral, mas o partido perdeu as características de aglutinação de forças sociais de esquerda. Ele se transformou num partido que eu diria ser de centro-esquerda, afastado da constelação que o criou. Hoje, o que importa é que aquelas mesmas forças que o constituíram estejam vivas e participantes. Estamos numa democracia representativa, não participativa. A força que fazem esses movimentos para bater à porta dos partidos mostra que eles, os movimentos, não são um partido.
CC: O senhor pode nos dar um exemplo de posições ideológicas e contraideológicas que tenha observado recentemente?
AB: Posso citar aquelas em torno da luta ambiental. Quando a expansão capitalista se tornou ameaçadora para a natureza, surgiu a contraideologia que propunha limites à expansão industrial. Celso Furtado, nos anos 70, hesitou em aderir o ambientalismo. Como economista do desenvolvimento, teve dúvidas quanto à ideia de um crescimento com limites. Convenceu-se ao ver a violência contra a natureza aumentar. O ambientalismo, que era uma contraideologia extremada para ele, passou a ser visto como uma contra ideologia racional. E ele aderiu à ideia do desenvolvimento sustentável. Hoje, fico preocupado ao ver, por parte da oposição ao atual governo e dentro dele, esses defensores do desenvolvimento econômico puro e duro colocarem em descrédito a luta ambientalista.
CC: O senhor dedica o último capítulo de seu livro a Machado de Assis. O ceticismo do escritor é um pensamento contraideológico moderno?
AB: Machado apresentou críticas agudas à rotina existencial escravista do século XIX. Mas de 1880 até 1908, ano em que morreu, a análise dos seus textos me dá a ver que detectou um limite para seu liberalismo democrático. Viu os homens como egoístas fundamentais atrás de sua conservação, de seu interesse, de suas paixões. Na maturidade, ele trabalhou de maneira jocosa, irônica, essa crítica à sociedade. O moderno em Machado pode ser observado em ambos os fios. Ele é moderno ao exercer o liberalismo democrático. E é moderno também em verificar os limites da ciência, das filosofias progressistas.
CC: Por que usamos indistintamente os termos moderno e contemporâneo para designar certas tendências do pensamento?
AB: "Contemporâneo" tem uma denotação cronológica, não diz nada do ponto de vista teórico, ao passo que o termo "moderno" se enriqueceu, sobretudo, depois da Revolução Francesa, com conteúdos ligados à emancipação das ideias feudais e dogmáticas. O moderno tem pelo menos duas conotações, de crítica ao passado e de libertação. Nós continuamos usando as duas palavras, porque suas conotações nos interessam de perto.
CC: Como o senhor vê a literatura moderna ou contemporânea?
AB: Gosto de Ferreira Gullar. Reconheço em seus poemas uma força crítica em relação aos males do presente e uma análise profunda do sentimento do homem comum. Ele verbaliza sua angústia. Mas, veja, estou falando do poeta, não do cronista, nem de suas ideias políticas.
CC: E há alguma ficção internacional contemporânea que lhe interesse?
AB: A de Julio Cortázar. Ele tem uma força dramática que não há em Jorge Luis Borges, um contemplador irônico do mundo, um homem de grande erudição. Mas o drama, que me interessa de perto, o conflito entre os personagens, Cortázar mostra de maneira experimental, como um grande escritor contemporâneo, eu diria.
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