O “escândalo da carne de cavalo” nos convida à reflexão. Nas últimas semanas, temos assistido à divulgação de uma série de notícias mostrando que empresas europeias utilizaram carne equina em suas linhas de produção. Em alguns casos, a carne de cavalo estava misturada com a bovina; houve análises, porém, em que 100% da carne encontrada em comidas congeladas era equina. Duas coisas chamam a atenção nessa história: em primeiro lugar, a revelação da prática ocorre após ao menos uma década de constante discussão acerca da importância da rastreabilidade para as cadeias da indústria de alimentos. Ademais, a procedência do escândalo surpreende, já que as sociedades da Europa Ocidental são habituais líderes no debate de tais questões.
O mais interessante no “escândalo da carne de cavalo” é que o caso nos traz de volta à realidade. Nela, é bem provável que as empresas, que investiram milhões de euros para explicar aos seus consumidores a atenção dispensada no processamento dos alimentos vendidos, tenham evitado gastos da mesma magnitude para que a propaganda se traduzisse em protocolos sérios de controle de qualidade. Não sejamos injustos, entretanto: em grande medida, deslizes como o escândalo na Europa derivam de uma abordagem irrealista para a questão da rastreabilidade. Vendendo a ilusão de que tudo estava sendo vigiado, as empresas evitaram discutir o estabelecimento de sistemas realistas de controle daquilo que processavam, o que levou a um erro tão primário, e que representa um duro golpe a diversas marcas.
Mais especificamente, é evidente que uma empresa dedicada aos mercados de massa é incapaz de explicar aos seus consumidores com exatidão de onde veio aquilo que consomem. A ideia idílica de que um dia seremos capazes de saber exatamente de onde saiu cada alimento que consumimos é algo que, atualmente, somente habita as cabeças de quem não calcula custos. Em determinados nichos, a iniciativa é capaz de render bons frutos – e o café oferece os seus exemplos – mas imaginemos uma empresa que vende lasanha congelada em hipermercados do Primeiro Mundo especificando em cada embalagem a procedência exata da carne ali contida e a data de abate do animal, para citar apenas dois exemplos. Os custos de tal nível de controle seriam enormes, e provavelmente inviabilizariam a venda de linhas de produto com uma vocação pelo preço baixo.
Não raramente, porém, passou-se a impressão de que as empresas eram capazes de mais do que, na prática, podiam – ou estavam dispostas – a fazer. Diante da impossibilidade de estabelecimento de um sistema que controlasse cada detalhe da produção, muitas organizações optaram pelo pior caminho: ao invés de contar a verdade, e discutir alternativas e limites, preferiram vender um mundo de sonhos, em que tudo estava sendo mensurado, algo inviável. Os consumidores, claro, acreditaram. Afinal, não nos enganemos: as pesquisas demonstram que o tempo gasto por cada indivíduo para escolher um produto em uma gôndola de supermercado está na casa dos segundos. Por mais que acrescentemos informação às embalagens, chegaremos a um ponto em que a taxa de absorção de tais dados já não valerá o investimento em sua produção.
Para finalizar, tanto consumidores quanto empresas, por mais preocupações que tenham, caracterizam-se pelo comportamento maximizador na esfera econômica. Exceções existem, é bem verdade, mas o estereótipo comum é o do comprador que busca barganhas e o da organização que quer aumentar os lucros para beneficiar acionistas e o bônus dos funcionários. Se grupos europeus viam na importação de carne do Leste Europeu um excelente negócio, é porque tal opção ia ao encontro da enorme demanda por alimentos prontos baratos. Sacrificariam uma parcela maior de seu orçamento os consumidores em nome da garantia efetiva de que escândalos como o da carne de cavalo não ocorrerão mais? Na teoria, a resposta de boa parte dos analistas é um sim; na prática, porém, todo cuidado é pouco antes de respostas taxativas.
Em resumo, para que sistemas efetivos de rastreabilidade surjam, um requisito é necessário: caso não sejam capazes de estabelecer de maneira clara os limites para a mensuração dos atributos negociados na cadeia, os promotores da iniciativa correm o risco de montar uma estrutura alimentada por discursos vazios. O lado bom de escândalos como o da carne de cavalo é que podem motivar agentes econômicos, consultores e academia a amadurecerem o discurso. Em lugar das promessas de um mundo em que todos sabem tudo, por que não trabalharmos pelo reconhecimento dos custos envolvidos na materialização de tal realidade e a proposição de alternativas econômica viáveis? Para tanto, estamos diante de um enorme desafio, já que grupos com interesses conflitantes teriam que sentar à mesa e negociar parâmetros para o seu relacionamento. Este, por sinal, será o tema de nosso próximo texto.
Esta matéria é de uso exclusivo da AgriPoint, não sendo permitida a cópia e réplica de seu conteúdo sem prévia autorização do portal e de seus autores.
O mais interessante no “escândalo da carne de cavalo” é que o caso nos traz de volta à realidade. Nela, é bem provável que as empresas, que investiram milhões de euros para explicar aos seus consumidores a atenção dispensada no processamento dos alimentos vendidos, tenham evitado gastos da mesma magnitude para que a propaganda se traduzisse em protocolos sérios de controle de qualidade. Não sejamos injustos, entretanto: em grande medida, deslizes como o escândalo na Europa derivam de uma abordagem irrealista para a questão da rastreabilidade. Vendendo a ilusão de que tudo estava sendo vigiado, as empresas evitaram discutir o estabelecimento de sistemas realistas de controle daquilo que processavam, o que levou a um erro tão primário, e que representa um duro golpe a diversas marcas.
Mais especificamente, é evidente que uma empresa dedicada aos mercados de massa é incapaz de explicar aos seus consumidores com exatidão de onde veio aquilo que consomem. A ideia idílica de que um dia seremos capazes de saber exatamente de onde saiu cada alimento que consumimos é algo que, atualmente, somente habita as cabeças de quem não calcula custos. Em determinados nichos, a iniciativa é capaz de render bons frutos – e o café oferece os seus exemplos – mas imaginemos uma empresa que vende lasanha congelada em hipermercados do Primeiro Mundo especificando em cada embalagem a procedência exata da carne ali contida e a data de abate do animal, para citar apenas dois exemplos. Os custos de tal nível de controle seriam enormes, e provavelmente inviabilizariam a venda de linhas de produto com uma vocação pelo preço baixo.
Não raramente, porém, passou-se a impressão de que as empresas eram capazes de mais do que, na prática, podiam – ou estavam dispostas – a fazer. Diante da impossibilidade de estabelecimento de um sistema que controlasse cada detalhe da produção, muitas organizações optaram pelo pior caminho: ao invés de contar a verdade, e discutir alternativas e limites, preferiram vender um mundo de sonhos, em que tudo estava sendo mensurado, algo inviável. Os consumidores, claro, acreditaram. Afinal, não nos enganemos: as pesquisas demonstram que o tempo gasto por cada indivíduo para escolher um produto em uma gôndola de supermercado está na casa dos segundos. Por mais que acrescentemos informação às embalagens, chegaremos a um ponto em que a taxa de absorção de tais dados já não valerá o investimento em sua produção.
Para finalizar, tanto consumidores quanto empresas, por mais preocupações que tenham, caracterizam-se pelo comportamento maximizador na esfera econômica. Exceções existem, é bem verdade, mas o estereótipo comum é o do comprador que busca barganhas e o da organização que quer aumentar os lucros para beneficiar acionistas e o bônus dos funcionários. Se grupos europeus viam na importação de carne do Leste Europeu um excelente negócio, é porque tal opção ia ao encontro da enorme demanda por alimentos prontos baratos. Sacrificariam uma parcela maior de seu orçamento os consumidores em nome da garantia efetiva de que escândalos como o da carne de cavalo não ocorrerão mais? Na teoria, a resposta de boa parte dos analistas é um sim; na prática, porém, todo cuidado é pouco antes de respostas taxativas.
Em resumo, para que sistemas efetivos de rastreabilidade surjam, um requisito é necessário: caso não sejam capazes de estabelecer de maneira clara os limites para a mensuração dos atributos negociados na cadeia, os promotores da iniciativa correm o risco de montar uma estrutura alimentada por discursos vazios. O lado bom de escândalos como o da carne de cavalo é que podem motivar agentes econômicos, consultores e academia a amadurecerem o discurso. Em lugar das promessas de um mundo em que todos sabem tudo, por que não trabalharmos pelo reconhecimento dos custos envolvidos na materialização de tal realidade e a proposição de alternativas econômica viáveis? Para tanto, estamos diante de um enorme desafio, já que grupos com interesses conflitantes teriam que sentar à mesa e negociar parâmetros para o seu relacionamento. Este, por sinal, será o tema de nosso próximo texto.
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Saiba mais sobre os autores desse conteúdo:
Sylvia Saes São Paulo - São Paulo
Bruno Varella Miranda São Paulo - São Paulo
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