Chegada dos tablets à sala de aula anima alunos e tensiona professores, mas afinal que mudanças ele traz e como pode ser usado como ferramenta pedagógica?
Carmen Guerreiro
Carmen Guerreiro
Ana Tereza Ralston, diretora de tecnologia da educação da Abril Educação, que encabeça a adaptação de livros digitais das editoras Ática e Scipione, lembra que a afinidade dos jovens das gerações nascidas entre 1980 e 2000 com os novos gadgets, associada ou provocada pelo ritmo frenético de inovação vivenciado hoje, cria a falsa impressão de que a tecnologia só chegou à escola no século 21.
- Devemos considerar, no entanto, que computadores fazem parte do ambiente escolar há quase duas décadas, lousas digitais estão presentes em instituições públicas e privadas há anos, e muito antes já tínhamos televisores, projetores, rádios. Todos esses aparelhos são tecnologia, assim como a caneta, o papel, o giz e a lousa "analógica" também o foram, cada qual a seu tempo.
TendênciaPor isso, não há motivo para pânico editorial e pedagógico.
- Os livros didáticos não morreram. O que fizemos foi, com os recursos que o tablet oferece, aprimorar a apresentação do material. Nada indica que o livro didático vá acabar. Mas a forma como ele é trabalhado irá mudar - analisa Eli Guimarães, professor de língua portuguesa de 1º e 3º ano do ensino médio do Centro Educacional Sigma, de Brasília (DF), e um dos sócios da editora Geração Digital, que produz livros para o colégio.
Guimarães passou por um processo de um ano de reformulação de todo o material para adaptá-lo aos tablets, sugeridos como material opcional ao livro.
- Mas todos os alunos optaram pelo tablet. A aprendizagem e o processo de educação são mais atrativos nele - diz o professor.
Novo paradigma
O desafio é, portanto, fazer com que a tecnologia, que já faz parte da vida dos jovens, seja usada para potencializar o que é trabalhado em sala de aula.
- A sociedade espera muito do jovem de hoje: precisamos que ele saiba selecionar informações (e com elas construa conhecimento), trabalhe em colaboração, tenha autonomia, desenvolva habilidades de planejamento e, ao mesmo tempo, que dialogue com as velhas e novas formas de organização social. O uso instrumental da tecnologia ele já possui; o que buscamos agora é que ele faça usos significativos da tecnologia para alcançar tais objetivos. E, ao mesmo tempo, que o professor também esteja apto (preparado e formado) a apoiá-lo nessa jornada - observa Ana Ralston.
A solução pode parecer lógica, mas não é simples. Apropriar-se dos tablets na sala de aula, segundo especialistas, exige um novo paradigma de educação. É o que defende Martín Restrepo, fundador da Editacuja, editora de conteúdos para plataformas móveis, e diretor de tecnologia educacional do Mobile Education Lab, que ajuda escolas a trabalharem com tecnologias móveis. Segundo ele, tentar levar um método tradicional para o tablet não funciona, porque são experiências completamente novas que requerem uma dinâmica pedagógica diferente.
- Um desafio importante, então, é dar instrumentos para o professor criar atividades com novas metodologias, atividades transformadoras. Isso significa pensar em atividades fora da sala de aula, em conteúdos interativos, etc. - afirma.
Em literatura, ele sugere atividades para os alunos criarem as próprias narrativas, escolher cenários e personagens a partir de aplicativos para tablets, cocriar histórias e fazer a releitura da narrativa. Para turmas de alfabetização, lembra de experiências em que estudantes usaram mensagem de texto, de voz, e outros recursos para aprender a ler e escrever.
- O professor precisa pensar que conteúdo hoje pode ser transformado, pode ser pensado como um brinquedo Lego, constituído por pecinhas que posso readequar, cotransformar, sem um copyright do conteúdo.
CoautoriaRestrepo lembra que entramos em uma era em que deixamos de ser apenas consumidores para sermos também produtores de conhecimento e, nesse contexto, é importante que os alunos estejam tão envolvidos com o desenvolvimento da atividade quanto os professores.
Moisés Zylbersztajn, coordenador de tecnologias e da biblioteca do Colégio Santa Cruz, de São Paulo (SP), acrescenta que uma pedagogia centrada no aluno favorece a tecnologia.
- Na prática tradicional, o professor define tudo a priori. Organiza toda a aula sozinho e tem previsto tudo o que vai acontecer. Chega à escola com tudo montado e despeja a informação no aluno, exigindo em uma avaliação que ele exponha o mesmo conteúdo - diz.
O tablet, para ele, favorece uma nova pedagogia, em que o educador constrói junto aos alunos um instrumento de avaliação, planeja junto, permite que os jovens saibam de antemão o vão aprender e tenham autonomia para mudar o rumo da aula, compartilhar seus registros, acompanhar o raciocínio do professor fazendo suas próprias pesquisas.
No Santa Cruz foram comprados 100 iPads, que podem ser reservados para determinado horário ou atividade por qualquer professor.
Moisés lidera uma equipe de tecnologia com formação pedagógica. Faz parte do seu trabalho receber as ideias dos educadores e ajudá-los a formatá-las em projetos e práticas pedagógicas com o uso do tablet. O maior ganho observado até agora, para o coordenador, foi levar a tecnologia para a sala de aula, em oposição aos laboratórios de informática, que levam o aluno a um ambiente separado. Com isso, o tablet é, aos poucos, considerado mais um material de trabalho e não uma ferramenta isolada.
Nas aulas de língua portuguesa de Celina Diaféria, que ensina o 8º ano do fundamental no colégio, o tablet foi usado em um projeto já existente: ela costumava propor que os alunos fizessem uma crítica da sociedade a partir de contos fantásticos e que tratam do absurdo (com os textos "O homem de cabeça de papelão", de João do Rio, e "O homem do furo na mão", de Ignácio de Loyola Brandão). Com o iPad, a crítica escrita deu lugar a vídeos. Celina pediu, interdisciplinarmente com o professor de artes plásticas, que os jovens selecionassem seu conto fantástico preferido e produzissem uma adaptação em vídeo com o tablet, usando a técnica de stop motion.
- A ideia, na verdade, é estimular a imaginação deles - explica.
A experiência no Centro Educacional Sigma é diferente, mas também tem dado bons frutos. O material desenvolvido para o tablet pela equipe do professor Eli Guimarães foi produzido a partir das experiências de sala de aula dos professores do colégio.
- São pessoas que estão dando aula, não são autores distantes da realidade da sala de aula - destaca.
Multimídia
O trabalho foi minucioso, pois os educadores rediagramaram todos os livros inserindo elementos de interatividade em todas as páginas, fossem eles imagens, vídeos ou outras mídias.
Distinto da linha do Santa Cruz e de outras escolas, o Sigma estabeleceu que o tablet fosse apenas um receptor de conteúdo para o aluno, e não ferramenta de produção. Para isso, ele continua usando cadernos.
- Não há uma ruptura com a tradição. Há aprimoramento - avalia.
Guimarães dá o exemplo das suas aulas de língua portuguesa: ao trabalhar narrativa e descrição, ele inseriu um vídeo de um ambiente inóspito.
- No lugar de explicar como a descrição é importante, dou um exemplo visual - diz.
Para ensinar variantes linguísticas na oralidade, ele disponibilizou áudios.
- Com o tablet conseguimos mostrar a pronúncia, o l dos gaúchos, o r retroflexo do interior de Minas, e assim por diante, de forma mais fácil para o aluno entender.
O professor também enumera as vantagens de atualizar o conteúdo do material com rapidez e facilidade, e de inserir informações e exemplos complementares no texto em formato de pop-ups, que aparecem na tela após o toque. Como resultado, Guimarães avalia que a queda na reprovação e o aumento do envolvimento com a atividade proposta, tanto em aula como na lição de casa, são sinais de sucesso do material digital.
AvaliaçãoOutra forma de adaptar estruturas tradicionais para o tablet é lançar mão da tecnologia para a aplicação de provas. É o que fez o professor de língua portuguesa do paulistano Colégio Visconde de Porto Seguro, Adalberto Gomes da Silva, com turmas do 2º e 3º ano do ensino médio. Usando a plataforma de ensino a distância Moodle, ele desenvolveu junto a seus colegas diferentes formatos de avaliação que dificultam a cópia:
- Funciona assim: montamos 20 questões e o sistema cria diferentes grupos de 10 questões, o que resulta em uma prova diferente para cada aluno. O sistema é desativado 45 minutos após o início da prova, não dando tempo para o aluno pesquisar na internet ou consultar os colegas. Como os testes são no formato de múltipla escolha, o sistema corrige sozinho as questões e fornece aos professores estatísticas dos resultados.
Adalberto criou, ainda, o aplicativo para tablets "Quem é você?" para as aulas de literatura do ensino médio. Inspirado no famoso jogo "Cara a Cara", em que um dos jogadores descreve um personagem por suas características físicas e o outro deve adivinhar quem é, o aplicativo seleciona um escritor e, sem falar o seu nome, dá dicas para que o aluno identifique sua identidade. Na versão que fez como teste, o professor escolheu apenas autores de livros da lista da Fuvest, o que aumentou o interesse dos jovens. Segundo ele, os estudantes precisam relacionar vida e obra dos escritores e usar os conhecimentos prévios trabalhados nas aulas para conseguir jogar.
Cidadão digitalNo mesmo colégio, Eliane Cristina Correa, professora de língua portuguesa do 9° ano do ensino fundamental, desenvolveu com seus alunos um trabalho menos de avaliação e aferição de conteúdos, e mais um instrumento de debate. Acostumada a trabalhar todos os anos o livro Cidadão de Papel, de Gilberto Dimenstein, ela decidiu introduzir os iPads da escola na sua turma quando descobriu que o autor havia transformado sua obra em um aplicativo para tablet, com diversos recursos multimídia como notícias externas, vídeos, infográficos etc.
Em paralelo, fez o mesmo trabalho com os alunos da Escola da Comunidade, projeto educacional do colégio para jovens da favela Paraisópolis. Ela promoveu então um fórum de discussão on-line para que os alunos das duas escolas (e tão diferentes realidades) pudessem debater sobre cidadania, e posteriormente a turma do Porto Seguro foi até a Escola da Comunidade para concluir o trabalho.
AplicaçõesEliane ficou emocionada com o resultado do trabalho. Segundo ela, nunca tinha tido uma resposta tão boa dos estudantes nesse projeto do Cidadão de Papel antes do iPad.
- Eu não tinha receptividade, por mais que falasse que era importante discutirmos esses temas sociais. Eles não querem ler sobre o que é triste. Depois de dez anos trabalhando o livro, foi a primeira vez que consegui, mas consegui mesmo, fazer com que eles parassem para pensar, discutir e mudassem de ideia quanto a essas questões sociais.
A professora se empolgou tanto com o resultado do trabalho com o Cidadão de Papel no iPad que desenvolveu um ebook para a plataforma e o publicou na App Store americana (loja de aplicativos para o sistema iOS, que dá suporte ao iPad, iPhone e iPod Touch). O livro digital de Eliane segue o exemplo de Dimenstein, porém para trabalhar O Alienista, de Machado de Assis, com um roteiro de estudo com linguagens diferentes, vídeos, podcasts e infográficos.
- Passei a usar o iPad para o que chamamos de leitura compartilhada. O professor lê com o aluno e compartilha a experiência. Quem é Machado de Assis? Aí vinha um vídeo do YouTube. Vamos ver o que ele escreveu? Aí eles entravam na internet para ver - descreve.
ConjunçãoEla observa também que os alunos entenderam que não é possível ler O Alienista sem conhecer as teorias cientificistas do século 19, o que Darwin falou sobre o determinismo, e pesquisaram tudo isso ao mesmo tempo em que liam para entender a ironia de Machado.
- Eles se apropriaram ainda mais de uma tecnologia que achavam que já dominavam.
Eliane também pediu que os estudantes fizessem sua própria narrativa gótica (baseados n'O Castelo de Otranto, de Horace Walpole) com bonecos de massa de modelar e o aplicativo iMotion, para fazer vídeos com a técnica de stop motion.
- Eles gostaram tanto que, depois de passar de ano, nas férias, ainda me mandavam por e-mail novos vídeos.
Os jovens também se interessaram pelo gênero e foram, por conta própria, atrás de textos de Anne Rice e Stephen King.
- O professor que não correr atrás de dominar essas linguagens não pode ser um professor desse século. Ele não consegue se aproximar do aluno - sentencia Eliane.
FuturoEm que nível o professor do futuro vai precisar dominar essas tecnologias para conseguir trabalhar, ainda não é algo que consigamos prever com certeza, embora possamos imaginar. O uso dos tablets, segundo Martín Restrepo, da Editacuja, ainda está passando pelo entendimento das pessoas.
- Precisamos de mais conteúdo para essas plataformas, e não estamos falando de Power Point, mas de conteúdo que explore a internet, o GPS, as redes sociais, a colaboração e a cocriação. As escolas precisam conhecer boas práticas, investir em plataformas de criação coletiva e na formação de professores - diz.
Outra previsão de Restrepo é que as escolas possam assumir, em menor escala, o papel de editoras, pois também vão criar e compartilhar seus conteúdos.
Com o avanço de tecnologias de inteligência artificial, redes de telecomunicação melhor preparadas, internet 4G mais madura, processamento de dados melhor, ainda há muito que pode mudar.
Restrepo aponta que recentemente foi divulgado o último Horizon Report, feito no mundo todo (mas pela primeira vez no Brasil) com uma projeção de como as tecnologias móveis serão trabalhadas nas escolas até 2017 (www.nmc.org/horizon-project).
Como aplicar?
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Há muitas formas de criar um projeto ou atividade usando o tablet, mas nenhuma receita pronta. Especialistas sugerem caminhos para quem quer dar os primeiros passos. A primeira dica é de Adriana Martinelli, coordenadora da área de Educação e Tecnologia do Instituto Ayrton Senna:
- Quando o professor chega à conclusão de que não sabe como fazer, é porque a adoção da tecnologia está sendo um apêndice. O ideal de um trabalho de tecnologia é não pensar na tecnologia em si, mas que seja uma ferramenta natural. Outra sugestão é de Ana Tereza Ralston, diretora de tecnologia da educação da Abril Educação. Para ela, é importante os professores analisarem, em seu planejamento, quais conteúdos são mais desafiadores de ensinar e, a partir disso, o que seria útil para ajudá-los a ensinar aquele tópico específico. - Ele deve ter um objetivo e usar a tecnologia só quando for relevante - diz. Adalberto Gomes da Silva, professor de português do Colégio Visconde de Porto Seguro, diz que os educadores precisam investir em dois momentos: o de conhecer o tablet e o de deixar que os alunos o conheçam antes de iniciar a atividade. - Muitos têm medo de usar o tablet porque acham que não vão dar conta da reação dos alunos, pois assim que você chega com os iPads na aula os alunos ficam bem agitados, querem navegar, tirar fotos dos colegas... Aí é que entra a estratégia: vale a pena perder esse tempo inicial, deixá-los reconhecer e se acostumar com o aparelho, e depois inserir o conteúdo desejado. |
O desafio da formação
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Trabalhar com tecnologia quando os alunos têm mais familiaridade do que os educadores com o assunto sempre cria um desafio de formação de professores. Esse é um dos trabalhos do Mobile Education Lab (MEL), criado no Brasil pelo colombiano Martín Restrepo, fundador da Editacuja, editora de conteúdos para plataformas móveis. A MEL é uma comunidade para criadores de conteúdo digital de educação em plataformas móveis, e tem como objetivo descobrir, experimentar e inventar experiências de educação móvel. Restrepo tem viajado pelo país descobrindo boas práticas e ajudando escolas públicas e privadas, além de ONGs e fundações de empresas, a criar estratégias para usar a tecnologia dos tablets e smartphones na sala de aula e em aulas on-line.
A MEL atua também como repositório de experiências e como formadora de professores, da seguinte maneira: ela forma educadores como multiplicadores, para que voltem às instituições onde trabalham e ensinem seus colegas. Durante a formação, os educadores participam de uma incubadora de atividades educacionais, que permite que professores tragam necessidades e ideias, e a assessoria da MEL e da Editacuja os ajuda a colocar em prática. "Assim vamos quebrando o mito do uso da tecnologia na escola e vamos dando segurança para eles na aplicação dessas atividades", diz. O mais interessante é que os cursos podem ser "pagos" com a moeda criativa, que circula dentro da MEL: quanto mais o profissional participa das atividades e cria projetos, mais ele ganha o "dinheiro" que vale para pagar cursos na plataforma e outros benefícios na comunidade, como livros digitais - o conceito foi desenvolvido junto à Cidade do Conhecimento, da Universidade de São Paulo. Conheça: http://comel.io |
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