Em
março completaram-se 10 anos de guerra no Iraque. Neste conto, o retrato do
sofrimento da população iraquiana com os efeitos da invasão americana ao
país.Diz a ele “adeus” segurando suas lágrimas para que não a veja chorar antes
da sua partida. Ela não lembra mais quantas vezes se despediu do seu único
filho, na hora de deixar a casa para juntar-se à sua unidade do Exército.
Viviam uma guerra feroz que durou muitos anos e matou milhares das pessoas.
Cada vez que seu filho deixava a casa, ela tentava se distrair enquanto a
sombra da morte a perseguia com sua risada sarcástica, insinuando que seu filho
não voltaria, deixando as batidas do seu coração iguais às batidas do velho
relógio na sala, esperando a volta do seu filho. Cansada pelo sono, ela foge
dele até que fecha os olhos e dorme.
Os
dias passam lentamente, feito caravana no deserto, até o dia que ela escuta o
barulho do seu filho batendo à porta da casa, seus olhos brilham de alegria
novamente. Ela agradece a Deus e se alegra com a chegada do filho e diz a ele:
“Seu pai morreu sonhando com o Iraque livre, e hoje eu sonho com o fim dessa
guerra para me alegrar vendo você casado e com filhos.” Ele respondia dizendo:
“Não se preocupe, minha mãe, Deus está conosco. Esta guerra terminará logo e a
paz vai reinar.” Ele sabia o quanto ela se preocupava com ele e sempre queria
sossegá-la. Assim os anos passam até que um dia ela acorda e o povo está nas
ruas dançando e celebrando. Ela pergunta a seu vizinho Abu Ahmad: “O que foi?”
Ele diz a ela: “Alegre-se, Um Salam, a guerra acabou. Nós ganhamos a guerra.”
“Ganhamos?!”, ela pergunta para si mesma. Bom, tudo o que queria era que a
guerra acabasse e que seu filho estivesse vivo. Sim, ela ganhou a guerra
naquela noite de 1988, em seguida fechou os olhos e dormiu profundamente como
se tivesse ficado anos sem dormir.
Dizem
que a felicidade não dura para sempre, mas no tempo da ditadura ela vive
escondida, perseguida. Um Salam abre os olhos numa madrugada de 1990 e liga a
TV como sempre, e se surpreende com a declaração da porta-voz oficial de
Exército: “O que foi separado voltou à origem, e nossas tropas estão
controlando o Kuwait!” O pesadelo era como se fosse um filme de terror que você
volta a assistir pela segunda vez, sabendo que todos seus atores principais vão
morrer antes do final. No mesmo dia, ele foi chamado para se juntar ao
Exército.
A
contagem regressiva acelerava antes das tropas da coalizão começarem seu ataque
para libertar o Kuwait. A hora zero chega e o ataque começa ferozmente. O
bombardeio aéreo não pára e Salam e seus colegas sentem que sua morte é certa,
então decidem fugir. Ele volta para casa e sua mãe se alegra com a sua volta e
faz questão de escondê-lo, mas seus olhos não dormem, pois ela sabia que a pena
pra quem fugisse do Exército, naqueles dias, era a execução. Desta vez a roda
da guerra é rápida e esmaga em menos de um mês e meio milhares de soldados. A
guerra termina e uma anistia é dada para os desertores, e então Um Salam
respira aliviada, seu filho ganhou uma nova vida.
Depois
da guerra, a vida volta ao seu ritmo normal, e as pessoas voltam a suas
rotinas. Salam é liberado do Exército e realiza o sonho de sua mãe, casando-se.
A guerra do Kuwait foi muito curta, mas foi também o começo do embargo
comercial contra o Iraque. Os preços começaram a subir e Salam e sua mãe
começaram a sentir o impacto do embargo, principalmente depois que a mulher
dele ficou grávida. Salam saía para trabalhar todos os dias pela manhã e só
voltava à noite. Sua mãe, porém, agradecia a Deus dia e noite pela paz no país
e rezava para seu filho ter sorte, todos os dias que abria seus olhos de manhã.
Como sempre, ela acordava bem cedo e preparava o café para ele antes de ele
sair para trabalhar.
O
filho do Salam nasce, e ele o chama de Shukr, para agradecer a Deus pela sua graça.
Todos em casa se alegram e esquecem o tempo das guerras. No relógio na sala,
porém, o barulho de tique-taque continuava com a mesma monotonia do tempo da
guerra como se fosse um tempo paralisado. Às vezes, no silêncio da noite, o
barulho lembrava aqueles momentos terríveis, então ela rezava imediatamente, o
que acalmava sua alma, e só assim ela conseguia dormir. Não é de se admirar,
pois as guerras implantam sementes de medo nos corações das pessoas, sementes
que crescem como espinhos. Assim, mesmo depois que as ervas daninhas da guerra
morrem, o homem não as retira de sua mente; algumas delas se mantêm no seu
pensamento, estragando sua alegria e fazendo-o se sentir culpado quando fica
alegre, como se estivesse abusando no seu destino.
O
fantasma da guerra aparece novamente pela terceira vez em 2003 e os EUA começam
a ameaçar o Iraque novamente. Desta vez as pessoas estão perplexas, o que será
que vai acontecer? Ninguém sabe. Uma coisa é certa: esta é a terceira vez, e,
como diz o ditado popular que Um Salam gosta de repetir, “a terceira é
certeza”. Salam não foi chamado para o Exército desta vez por causa da sua
miopia, que piorou nos últimos anos, o que acabou tranqüilizando sua mãe. Dias
depois, Um Salam acorda com os barulhos dos gritos das celebrações, então ela
sai para a rua para ver o que aconteceu, e agora o cenário havia mudado. Os
soldados nas ruas não são iraquianos, mas americanos. Ela pergunta para o seu
vizinho Abu Ahmad, que detestava Saddam depois que este executou seu filho que
fazia parte de um partido da oposição: “O que aconteceu?” Abu Ahmad responde:
“Alegre-se, Um Salam, os americanos arrancaram o tirano e vão implantar a
árvore da democracia e liberdade em seu lugar.” Ela disse a ele: “Seja o que
Deus quiser. Somos pessoas simples e não temos nada em nossas mãos além de
rezar para que a bondade de Deus domine este país.”
A
guerra termina rapidamente, os americanos declaram o cessar-fogo e desmontam o
Exército e as forcas policiais; e então começa uma onda de assaltos,
assassinatos e explosões. Os americanos tentam tranqüilizar a população, sem
sucesso. Salam sai para comprar pão antes de escurecer. Seu vizinho, Abu Ahmad,
o vê saindo de casa e os dois começam a andar juntos.
Salam
demora a voltar, já passa das seis horas da tarde e ele ainda não voltou.
Vários pensamentos passam pela mente de Um Salam e ela começa a se preocupar,
sua nora a acalma dizendo que Abu Ahmad fala inglês e vai ajudar Salam no caso
de eles serem parados por uma blitz americana. O tique-taque do relógio desta vez
era como se fossem batidas na bigorna na cabeça de Um Salam. Ela não pára de
olhar o relógio da sala de estar por um segundo. Finalmente, alguém bate na
porta de sua casa. Um Salam abre a porta e vê Abu Ahmad parado na sua frente
como se fosse um fantasma mudo. Ela percebe o que algo aconteceu e desmaia.
No
dia seguinte Um Salam, deitada em sua cama, abre os olhos para ver sua nora e
neto ao seu lado, junto à esposa de Abu Ahmad, com os sinais de tristeza na
suas faces. Ela pergunta: “Onde está Salam?” Sua nora chora e sai do quarto.
Ela volta a perguntar: “Onde está Salam, Um Ahmad?” Então a vizinha conta que
seu filho morreu. Um Salam agarra a roupa da sua vizinha e pergunta: “Ele
morreu como mártir defendendo seu país?” A resposta foi “Não”. Então ela pergunta
novamente: “Ele morreu como traidor ajudando os inimigos?” A preposta novamente
foi “Não”. “Então o que aconteceu?”, ela pergunta histericamente. Um Ahmad
responde: “Uma patrulha americana atirou nele e em meu marido por engano,
quando estavam voltando da padaria, achando que eles estavam carregando
explosivos, atiraram em Salam e quase acertaram em meu marido também. Abu Ahmad
disse que eles chamam este tipo de falecimento de “Danos Colaterais”.
O
silêncio domina o lugar, exceto pelo tique taque do relógio na sala de estar e
o gemido da viúva de Salam no seu quarto. Um Salam fecha seus olhos, desta vez
para sempre.
Texto publicado originalmente no Portal Terra, em junho de 2009.
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