Pe. Alfredo J. Gonçalves
Assessor das Pastorais Sociais
Adital
Talvez não seja exagero comparar a Vida Religiosa a um imenso arquipélago, formado pelas mais variadas formas de carismas e famílias. Tomemos de empréstimo o que diz o dicionário: arquipélago é uma palavra de origem grega que significa um conjunto de ilhas próximas umas das outras. De início sobressaem dois aspectos dessa definição. Trata-se, em primeiro lugar, de um conjunto. Este termo na linguagem matemática designa uma porção de coisas ou seres semelhantes e de alguma forma aglomerados. Podem ser ilhas, evidentemente, mas também números, plantas, animais, planetas ou comunidades religiosas. No campo da Vida Consagrada, uma residência se compõe de vários membros; uma comunidade local, de uma ou várias residências; uma província de várias comunidades; e a própria congregação, ordem ou instituto, de várias províncias ou regiões.
Em segundo lugar, coloquemos o acento na palavra ilha. Extensão ou prolongamento de terra cercada de água por todos os lados. Evidenciam-se o isolamento, a autosuficiência e a dificuldade de comunicação. A água, de fato, não obstante todos os meios de transporte à disposição, segue sendo um obstáculo a ser superado. Obstáculo dobrado quando intencionalmente apagamos o farol que orienta as embarcações ou fechamos o porto à sua aproximação. Mais grave ainda quando recusamos receber os náufragos que, em perigo de morte, debatem-se em braçadas desesperadas para escapar à tempestade, na tentativa de encontrar um lugar seguro. No interior da Vida Religiosa não é incomum que as diversas ilhas se isolem em arquipélagos de casas próximas, mas incomunicáveis entre si. Cada uma parece bastar-se a si mesma, ignorando as demais.
No pano de fundo de semelhante atitude encontra-se o contexto da cultura pósmoderna, do mercado total e da economia globalizada, onde a fragmentação e a "multidão solitária” (David Riesman) costumam ser a regra. De acordo com alguns estudiosos, o pensamento forte das grandes ideologias, filho direto do racionalismo iluminista, se deteriora gerando o ceticismo, o relativismo e o niilismo progressivos. Em não poucos casos, tal degeneração conduz ao beco sem saída da sociedade rígida, centralizada e totalitária, tanto à direita quando à esquerda. Historicamente, fundamentalismo e totalitarismo revelam-se como irmãos siameses, ambos de alta pericolosidade, que deixam no pergaminho do tempo um rastro macabro de fogueiras e ruínas, cinzas e cadáveres.
Em substituição às visões ideologicamente totalizantes, desenha-se o que se pode chamar de "era do vazio” (Gilles Lipovtsky) ou a "modernidade líquida” (Zyngmunt Bauman). Laços e relações, amizades e contratos, certezas e verdades – tudo tende a derreter-se ao sol implacável da crítica, da desilusão e da falta de sentido. "Tudo que é sólido desmancha-se no ar” (Marx e Engels). Perdem-se as grandes referências: as dúvidas e medos, perguntas e inquietações tornam-se superiores à capacidade humana de encontrar respostas e soluções adequadas. Daí a crise e a sensação angustiante de que o chão se abre aos nossos pés. Nesse terreno movediço e escoregadio, florescem e proliferam os sentimentos de tédio, insegurança e instabilidade, seja nas pessoas e grupos, seja nas comunidades e instituições em geral. Num universo destituído de estrelas, navega-se à deriva, ao sabor das ondas ou da moda.
Tornamo-os uma espécie de sobreviventes náufragos da grande tribulação, para citar o Livro do Apocalipse. Prevalece o que é efêmero, superficial, descartável – atributos do pensamento débil. Também a profissão dos votos evangélicos, em forma temporária ou perpétua, sofre do mesmo processo de degenerecência. O caminho da vocação religiosa ou sacerdotal não nos imuniza contra as tormentas de uma sociedade que agoniza em prolongada crise ou em processo de transição de paradima, como preferem outros autores. Não há vacinas fáceis nem analgésicos imediatos contra os males da crise. As mesmas dores de parto que dilaceram o tecido social dilaceram igualmente o tecido religioso, embora de forma diferenciada, em conformidade com o grau de fé ou a falta desta.
Sem as balizas pétreas que marcaram épocas precedentes, cada ser humano tende a voltar-se sobre o próprio umbigo. Não havendo ponto de referência, o prazer e o bem estar pessoal tomam o lugar do bem estar social, da busca pelo direito e pela justiça ou até mesmo da construção de um projeto político. O "eu” ou "ego” se converte na única referência que orienta o comportamento. Em consequência, o sentimento solidário do "nosso” dá lugar à defesa egoísta do "meu”. Individualismo e hedonismo, narcisismo e egoísmo constituem os sintomas mais evidentes dessa ausência de princípios sólidos. Aqui o paradoxo torna-se diário, flagrante e escandaloso: ao mesmo tempo que aumentam os meios e possibilidades de comunicação, nunca foi tão difícil comunicar-se de forma interpessoal, familiar e comunitária.
As relações virtuais e mantidas à distância, superficialmente iniciadas e mais superficialmente ainda deletadas, substituem o contato eu-tu, olho-no-olho, cara-a-cara. Estas últimas costumam interpelar e exigir mudanças, enquanto aquelas apenas divertem e ajudam a passar o tempo. Exemplo típico disso é uma mesa em que várias pessoas falam individualmente ao celular, quase sem dar-se conta dos comensais ao lado. O conceito de comensalidade (partilha de pão e vida) também se derrete, dando lugar à refeição rápida e solitária – o fast-food. Não que a nova tecnologia, se e quando bem utilizada, seja inimiga de relações autênticas e transparentes. A Internet, por exemplo, com suas redes sociais, abre um leque imenso de oportunidades para a formação e aprofundamento de novos laços. Permanece, porém, o risco de que atitudes como ovoyeurismo, o ficar e o estar numa boa, sejam substituídas por enconros de compromisso sério e duradouro. Que o digam as repetidas edições do BBB – Big Brother Brasil!
Nas ilhas da Vida Religiosa, o mutismo costuma ser o grande oceano intransponível entre uma e outra. Mutismo pode significar mar calmo nas ondas de superfície, mas muitas vezes esconde correntes tempestuosas subterrâneas, selvagens e desconhecidas. Verdadeira guerra fria no campo minado da vida consagrada, onde, em lugar de pontes e tentativas de aproximação, cada pessoa ou comunidade arma-se para a própria defesa ou prepara o ataque. Resultado disso são os momentos gélidos e constrangedores dentro das comunidades religiosas, os quais, por si só, falseiam a alegria e o entusiasmo da Boa Nova do Evangelho, bem como a convivência daqueles que são encarregados de transmití-la. A prática desmente o esforço de evangelização. É neste sentido que nada se encontra mais perto da religião do que a hipocrisia. Hipocrisia com a qual Jesus tropeça e combate com enérgica veemência, sobretudo entre os saduceus e fariseus, chamando-os severamente de "sepulcros caiados”.
Diferentemente do silêncio, mutismo é a recusa de comunicar-se, a insistência de isolar-se em si mesmo, de proteger o próprio terreno com as mais diferentes cercas, afastando do convívio tanto os pobres como os coirmãos. Pior é que, não raro, tais cercas se confundem com eficientíssimos projetos pastorais ou compromissos inadiáveis! Enquanto o silêncio é densamente povoado de sentimentos amáveis, de saudosas lembranças e de rostos amigos, o mutismo é deserto e infértil. Terreno árido e cheio de erva daninha que destila veneno e mágua, rancor e ódio. Normalmente contamina tudo e todos ao redor. O primeiro prepara o ambiente para a oração, a meditação e a contemplação, o segundo alimenta tensões e conflitos, nutrindo-se de relações belicosas.
Numa palavra, o mutismo não passa de um latifúndio vazio e ocioso que facilmente se transforma em momentos de tédio. Como tudo o que se acumula tende a apodrecer, também o tempo reservado unicamente para si mesmo pode degenerar em asfixiante gotejar de segundos que parecem minutos, de minutos que parecem horas e de horas que parecem dias. O silêncio, ao contrário, constuti um jardim profusamente povoado e florido, onde todos e cada um pode encontrar refúgio e refrigério. Jardim aberto à visita do próprio Deus, como na metáfora de Santa Tereza d’Ávila. O mutismo, apesar de ostensivamente mudo e surdo, sofre de ruídos e rumores infernais; ao passo que o silêncio constitui a ante-sala da Casa de Deus.
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