sábado, 27 de julho de 2013

O povo é detalhe



Lúcio Flávio Pinto
Adital

Maiorana e Jader Barbalho. Ilustração:http://chargesdojornalpessoal.blogspot.com.br/p/blog-page.html

As causas públicas são a arma que os políticos utilizam em proveito próprio. É o que está acontecendo entre Jatene e Jader, como entre O Liberal e Diário do Pará. Os escândalos se sucedem, mas essas elites não mudam. Quem pode mudá-las?
Nem uma aragem sequer da primavera política brasileira de junho parece ter soprado sobre o calor sufocante do Pará. Uma sucessão de fatos recentes demonstra que a elite local continua a ignorar a sociedade e presumir imutável a própria capacidade de manipulação coletiva, capaz de mantê-la inatingível pelo clamor das ruas e as evidências da realidade.
O Estado continua partilhado e disputado por dois grupos, que recorrem a práticas plebiscitárias para se afirmar. Quem não está incondicionalmente com um, está contra ele, é tratado como inimigo. A ele, os rigores da lei, quando a lei é usada. Já quem não está empoleirado no poder sente-se autorizado a tudo para derrubar o opositor e assumir seu lugar. Não há a mediação do interesse público nas contendas nem uma "terceira via”, muito menos novas lideranças. O Pará é um Estado de conquista e submissão – ainda. Até quando?
Os dois grupos políticos majoritários dão espetáculos seguidos de desprezo pela causa pública, alternando-se na autoria das desfeitas e malfeitos. Pode-se escolher qualquer deles para começar a reconstituição dessa guerra espúria.
O grupo do senador Jader Barbalho, por exemplo. De ator principal, ele passou a um papel coadjuvante, mas ainda decisivo na definição da disputa política. Jader subiu ao governo com o tucano Simão Jatene sem qualquer constrangimento. Trinta anos antes era Jatene, desconhecido como político e inexistente como fonte de poder, que entrou na vida pública como cego, guiado por Jader.
O músico e economista pulou a cerca da academia para assumir a secretaria de planejamento no primeiro governo de Barbalho. Continuou contrito jaderista e nessa condição ocupou o estratégico cargo de secretário-geral, quando Jader assumiu dois ministérios (da reforma agrária e da previdência social) na administração de José Sarney, aquele que não devia ter sido o primeiro presidente civil depois da ditadura militar. E nessa condição, partilhada por seu novo padrinho, o médico Almir Gabriel, se manteve até a fundação do PSDB, dissidência nacional do PMDB, que deixou de ser o guarda-chuva partidário. Só então Jatene e Almir começaram a descobrir os podres do antigo líder. Mas matizaram as críticas a ele conforme as conveniências políticas e eleitorais. Não foi por princípio doutrinário ou moral que combateram o cacique peemedebista.
Antes da segunda eleição de Jatene, Jader apostou suas fichas no PT. Sem dúvida, foi o principal sustentáculo da vitória de Ana Júlia Carepa. Deslocado do centro das decisões quando a petista ocupou o trono, lavou as mãos e deixou a governadora ser derrotada, a primeira a não se reeleger desde que o instituto foi posto em prática.
A posição de Jader favoreceu Jatene, que retribuiu recolocando o ex-novo-quase aliado de volta ao topo da máquina pública. Mas o lugar é pequeno demais para tanta cobiça e logo ficou faltando espaço para o grupo de Jader. Com sua votação em declínio eleição após eleição, ele tinha que fazer alguma coisa para se fortalecer, do contrário só lhe restaria a Câmara Federal em 2014. Jader colocou de novo um pé no barco do PT sem deixar o caiaque de Jatene. Mas as duas embarcações se distanciaram tanto que o equilibrismo se tornou impossível. Jader ficou com o PT.
De forma indecisa e claudicante, como é do seu estilo, Jatene vasculhou pretextos para afastar o já incômodo acompanhante. Insuflado por seus aliados mais constantes, especialmente o grupo Liberal, tomou, afinal, uma decisão, mais de três anos depois do início do seu segundo mandato: demitiu os peemedebistas do governo mais próximos de Jader ou que não aceitaram jurar nova fidelidade. O rompimento se concretizou.
Foi nessa conjuntura que os veículos de comunicação de propriedade do potentado do PMDB paraense cometeram um erro grave. Na escalada de uma campanha que desencadearam contra a administração estadual, o jornal e a emissora de televisão do grupo divulgaram, como sendo da muito criticada Santa Casa de Misericórdia do Estado, imagem do ano passado obtida em um hospital de Honduras. Era justamente a imagem mais chocante de um conjunto com outras fotos que realmente se referiam à Santa Casa: uma criança aparecia em uma caixa de papelão, ao lado de camas hospitalares.
No dia seguinte, em editorial de primeira página, o Diário do Pará reconheceu o erro grosseiro (mesmo que se referisse à Santa Casa, a foto se mostrava gritantemente como uma montagem). Mas não soube explicar como ele aconteceu. Disse que a empresa ainda estava investigando as causas do erro. Segundo a versão mais corrente na redação, o jornal recebeu de uma fonte (que não se sabe se foi identificada) denúncias de fatos sobre os problemas na Santa Casa. Ao invés de deslocar repórter e fotógrafo para checar as informações, o jornal se limitou a assumir as denúncias que a fonte transmitiu, incluindo a foto do hospital de Honduras como sendo da Santa Casa de Belém.
O intrigante é como falharam de forma tão primária os controles de edição do jornal. Normalmente, o próprio Jader Filho, o principal executivo do grupo RBA, faz a supervisão final da primeira página – e às vezes até mais do que uma simples supervisão. Não raro, reabre a página, quando ela já está fechada, retira matérias, muda foto, faz inclusões e exclusões. Com seu poder e seu interesse, chega a realizar grandes mudanças numa edição que está pronta.
Se esse é o seu procedimento e ele não participou de uma encenação, da montagem consciente de uma fraude (de resto, condenada a durar pouco e causar enormes prejuízos quando fatalmente fosse descoberta), ele não percebeu a farsa e quem estivesse em condições de alertá-lo também deixou passar o erro, em meio ao atropelo de uma campanha contra o governo sem os freios do rigor profissional.
A falha cometida é muito fácil de ser detectada, é algo que se percebe quase de imediato, a uma simples verificação. Como, no seu editorial, o jornal prometeu que "vai apurar responsabilidades”, a dedução é de que iria à cata da "motivação” da fonte que forneceu o material. O jornal teria sido vítima de uma armadilha? Ou sua sofreguidão combinou com a irresponsabilidade da pessoa que mandou a foto errada?
São hipóteses que em nada atenuam a gravidade do erro cometido pelo jornal, palidamente assumido no dia imediato à publicação da foto e depois esquecida. A direção podia, se quisesse, apurar logo o que aconteceu, se resultante de incompetência ou má fé. Só assim podia se eximir da explicação dada pelo próprio governador, que reagiu com uma rapidez surpreendente e impressionante para a sua proverbial lentidão nas decisões: foi fraude intencional.
A hipótese permaneceu no ar como plenamente possível. Podia ser o paroxismo da campanha. Mesmo tomando como justificativa a defesa da saúde pública, sua inspiração política é evidente. Nisso, o Diário do Pará não inova: é prática usual de O Liberal e de muitos órgãos da imprensa, no Brasil e no mundo. Mas há um agravante no caso do Diário: seu dono é um político profissional e ele estava sendo prejudicado politicamente pelo governador. A tentação é deixar de fazer jornalismo no jornal, que vira arma política.
Há muito tempo o Diário do Pará não sofria revés tão profundo nos seus esforços de profissionalização, fugindo da sombra soturna do dono. Mesmo que se admita que a falsa imagem da Santa Casa não tenha sido providenciada por Jader ou seus comandados, como explicar erro profissional tão crasso, mais rústico do que as numerosas escorregadas que o jornal dá todos os dias, que vão da gramática aos princípios éticos? Se não houve o propósito da vingança política, há um nível muito baixo de qualidade profissional, que acaba expondo o jornal a pagar –e caro– até pelo que não fez, mas que tudo sugere que podia ter feito.
Nesse caso, a obsessão pelo poder e a extrema presunção pessoal de Jader Barbalho o levaram a um erro rudimentar. Mal a imagem do hospital de Honduras apareceu no jornal e na TV RBA, começaram a aparecer as contestações, denúncias e ironias. Se a intenção era desmoralizar o governo Jatene, seu efeito foi o mesmo de um perfume barato. E qualquer pessoa dotada do mínimo de informação seria capaz de prever esse desastre.
O governador e seu principal parceiro, o grupo Liberal, trataram de ampliar ao máximo o aproveitamento desse verdadeiro escândalo. Não com o propósito de melhorar a situação na Santa Casa, ou da saúde em geral, ou de aproveitar o incidente para prestar as informações que o caso requeria. Tudo isso virou circunstância: o que interessava era a luta com o adversário.
A entrevista coletiva do governador, como imediata resposta ao ataque do inimigo, materializado poucas horas antes, foi um feito inédito no currículo dubidativo de Simão Jatene. Não o elevou nesse charco, antes o fez chafurdar em terreno propício aos manipuladores da verdade. O local foi escolhido a dedo. Talvez até tenha sido sugerido pelo procurador geral do Estado, já que foi no anódino comando da Polícia Militar que os últimos integrantes da PGE tomaram posse.
O casarão não tem identificação, fica num terreno que parece até abandonado, seu acesso é meio labiríntico, situa-se atrás de muros altos e à ilharga do palácio que serve de abrigo ao Tribunal de Justiça do Estado. Quem quer ter o controle sobre o que se realiza naquele local não deve achar opção melhor. Serve esplendidamente para esconder, transformando o que se vai fazer em ato fechado. Com a cobertura da nada simpática Polícia Militar.
Ao assumir o comando do espetáculo do desmentido, o governador do Estado se comportou como mensageiro (para usar expressão mais polida) do grupo Liberal, mais até do que como antagonista político de Jader Barbalho. Ainda mais porque seu governo foi levado às barras da justiça acusado de ato de improbidade administrativa para favorecer a empresa de táxi aéreo de Romulo Maiorana Júnior, ato ilegal e lesivo ao interesse público.
O governador, como o grupo RBA, transformou um assunto sério em pastiche. Moldou uma questão do mais elevado interesse público em pedra de atirar em telhado alheio, num ambiente dominado pela fancaria e a mixórdia, pela rivalidade de predadores e parasitas do erário, e dilapidadores do patrimônio público.
Claro que a Santa Casa de Misericórdia tem falhas, insuficiências, deficiências e vícios, que se arrastam há muitos anos e atravessam governos, os de Jader, Almir, Ana Júlia e Jatene. Mesmo que todos eles tivessem feito o que não fizeram, cumprindo sua missão de forma competente, as mortes de crianças teriam diminuído, as parturientes seriam mais bem tratadas, os indigentes não sofreriam tanto – mas os problemas persistiriam e até podiam ter se agravado.
Qualquer pessoa medianamente informada e com um mínimo de boa fé sabe que a Santa Casa é o ponto de afunilamento de dramas humanos nascidos nos municípios, cuja incúria em matéria de saúde (ou de educação e tudo mais) é produto mais de má gestão e desonestidade do que da falta de recursos.
A vaia que os prefeitos deram na presidente (que continua a exigir o tratamento de presidenta) Dilma, na semana passada, em Brasília, foi merecida. Prefeitos e vereadores lidam com gente de carne e osso e não têm a proteção de palácios e armadas. Sabem das misérias do dia a dia. Mas os prefeitos não têm legitimidade para vaiar outros gestores públicos. Vaia maior é o que devem receber. Vaia e peia (moral, é claro), tal o grau de desbaratamento da coisa pública que engendraram.
O atual secretário de saúde é uma pessoa séria e respeitada. Tem história suficiente para descer das suas tamancas e ir ao encontro de manifestantes que ocuparam a área em frente à secretaria. Hélio Franco travou um diálogo duro e às vezes ríspido com os manifestantes. Mas ninguém teve autoridade para colocar-lhe o dedo no nariz e apontá-lo como corrupto ou incompetente. Seus erros não atingiram esse nível, paradigma da classe política brasileira.
Os problemas sociais brasileiros têm décadas ou séculos de cultivo perverso. Não se mantêm porque não podem ser resolvidos. As soluções não são fáceis, mas não são impossíveis. Tem-se esta certeza agora. As manifestações de protesto revelaram uma novidade: parcela mais expressiva da população brasileira sabe que há saída, que essa saída pode ser alcançada e que o maior obstáculo é mesmo humano. E não tem mais paciência de esperar pelas respostas. Também não tolera mais a embromação, a rotina da conversa para boi dormir, como a de Jatene, Jader, Diário do Pará e O Liberal.
O secretário Hélio Franco deve ter suas razões para fazer parte de um governo que já demonstrou a forma equivocada de tratar a saúde pública. Um governo que imobiliza grandes recursos em grandes obras do setor sem fazer o mesmo quanto ao funcionamento dessas estruturas. Um governo que contribui para que a mecânica viciada desse tipo de política acabe por sacrificar quem atende e onde atende a população, aquela que madruga na busca por uma senha ou que se vê obrigada a aceitar sacrifícios e maus tratos no atendimento. Há, de fato, insuficiência de médicos (e enfermeiros) e essa lacuna é criada por uma forma distorcida de formação desses profissionais. Mas o principal problema é a má estrutura onde os médicos atuam (ou não atuam).
A campanha dos veículos de comunicação do senador Jader Barbalho não está preocupada em melhorar a prestação de serviços ao povo, mas em expor o governo às próprias mazelas, projetando suas deficiências e incongruências para delas obter rendimento político. Se na próxima eleição o PMDB for vitorioso, em sua provável aliança com o PT, esse papel crítico da imprensa será esquecido, da mesma forma como uma improvável recomposição com o PSDB teria esse mesmo efeito. Os rompantes de fiscalização do poder público são cíclicos e de duração certa, geralmente curta. Feito o acerto ou conquistada uma nova posição de poder, tudo muda e cessa o canto da musa da verdade.
Os cidadãos que têm ido às ruas ou manifestado por outra via a sua indignação com esse estado de coisas podiam até pensar no seguinte protesto em relação a esses grupos: escolher um dia (de preferência, o domingo) para não comprar nenhum dos jornais e não sintonizar em qualquer das emissoras de rádio e televisão dos dois grupos. Seria o dia da audiência zero contra o uso e abuso político (e comercial) dos meios de comunicação no Pará.
Será que se podia começar a mudar a atitude daqueles que, com seu dinheirinho e seu voto, constituem o alicerce frágil dessas construções solenes?

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