domingo, 11 de agosto de 2013

Francisco: um líder no deserto


Francisco: um líder no deserto

Há uma crise de lideranças: não existem hoje no mundo líderes de importância, referências políticas, ideológicas ou morais de uma certa importância. Na América Latina, Lula se projeta, mas de longe. Na África, há Mandela. EUA e Europa são um deserto. Nesse quadro, acho que há que analisar o papel emergente do Papa Francisco. Por Esteban Valenti, Other News

A política está em crise, é uma verdade aceita mundialmente. Cada dia as pesquisas sérias demonstram um crescente desprestígio dos políticos, os cidadãos perderam a confiança em que a política de uma ou outra maneira ajudará suas vidas. Pelo contrário, a sociedade civil se desprende do mundo da política.

É um tema que requer uma análise profunda e extensa que deixamos para outra oportunidade. Uma das expressões dessa crise é a falta de líderes mundiais, de homens e mulheres que sejam um ponto de referência para as sociedades, para seu próprio país e transcendam fronteiras.

Mais pronunciada ainda é a crise de lideranças: não existem hoje no mundo líderes de importância, referências políticas, ideológicas ou morais de uma certa importância. Um se apresenta e um se extingue. Me refiro a Francisco e a Nelson Mandela. São as únicas personalidades que se destacam.

Barack Obama foi tragado pela história e pelo sistema, dá para fazer a lista de seus fracassos e suas renúncias, além de carregar com o peso de sua nação e sua vocação imperial inegável. A Europa é o maior deserto. A política e governante mais influente é Angela Merkel, que tem hoje, no velho continente, mais poder que Hitler em seu apogeu militar e não moveu um soldado, nem um tanque, nem uma ideia. Seu poder é o dos euros, nada mais, o mercado em sua forma mais impiedosa, o sistema bancário devorador. Merkel é o chicote dos países em crise, que são muitos e que estão afundados até o pescoço.

Putin, não é nem sequer referência dentro da Rússia, lhe devolveu um certo protagonismo internacional, é a máxima expressão do poder puro e total, mas ninguém no planeta o toma como referência política e ainda menos ideológica ou moral.

Se algum dos leitores sem ajuda de Google lembra os nomes dos três principais líderes políticos chineses, é uma casualidade. O país com os mais espetaculares resultados econômicos e sociais, não tem líderes carismáticos que se projetem. O último foi Deng Xiaoping, mas por múltiplos motivos ficou confinado em seus limites nacionais.

No mundo muçulmano não emergem figuras, as revoluções triunfantes, frustradas, derrotadas em muitos países nos mostram uma comunidade de nações dispersa, uma cultura profundamente fraturada, democracias que não terminam de nascer, revoltas contra tiranias substituídas por outras e um grupo de monarquias ou califados ancorados no século XII. Os bilhões de petrodólares certamente não geram lideranças, mas dívidas e favores, nada mais.

Na América Latina há mudanças importantes, figuras que lideram seus processos nacionais, mas já não existem as figuras com projeção universal. O mais parecido, mas longe, é Lula. Na África resta Mandela. Nada mais, nem sequer aquelas figuras anticoloniais e representantes do africanismo que foram expressão da revolta de um continente oprimido e explorado por outras nações.

Como pode ser observado, um verdadeiro deserto mundial ao qual há que agregar um aspecto: a falta de tensão, de contradições que são o clima propício para o surgimento de determinados líderes. O fim da guerra fria, das aventuras revolucionárias e sua substituição por uma rede de guerras localizadas e do terrorismo não gera, certamente, grandes lideranças, nem nada parecido. E não falo com nostalgia, comprovo.

Nesse quadro acho que há que analisar o papel emergente do Papa Francisco. Em apenas 4 meses de seu pontificado conseguiu concentrar uma grande atenção dos meios de comunicação e da população. O primeiro em emergir como um referente, um líder, neste caso, espiritual.

Até agora a Igreja Católica estava sumida nessa mesma crise de referentes que a política, que os governos, se parecia mais com um reino transnacional com uma mensagem evangélica que a uma religião que se concentra nos valores, no povo de Deus, em atrair com o exemplo e com as virtudes que predica e em muitos casos não pratica.

Envolvido em escândalos financeiros, de pedofilia, de intrigas palacianas, mantinha o núcleo duro de seu imenso aparato mundial, mas cada dia mais afastado dos problemas de nosso tempo, de seus fiéis e de seu próprio exército de sacerdotes. Um reino arqueado de quase os mesmos males que os países onde nasceu a instituição, na Europa. Era mais o Vaticano que a Igreja Católica. E chegou Francisco.

Parecia guiada pela frase de Coríntios 1, atribuída a Paulo de Tarso "O reino de Deus não consiste em palavras, mas em poder",

Como Francisco se define, é um padre da rua. E a escolha como Papa, longe de afastá-lo de suas práticas como arcebispo da Argentina, o firmou nesses aspectos. A princípio foram detalhes, mas nestes mais de 100 dias os foi afirmando e confirmando. Não são apenas os sapatos comuns como os que percorria as ruas de Buenos Aires, ou a malinha com sus objetos pessoais, carregando-a ao subir a um avião comum e silvestre da Alitalia, ou sua negativa a viver no cerco de seu real apartamento no Vaticano. É muito mais.

O Papa e a segurança férrea e total era quase um sinônimo depois do atentado contra João Paulo II na praça São Pedro. A insegurança e o contato direto com seu povo, com os fiéis e com os outros, mas que são convocados por este personagem novo e renovador, são uma constante. Em Roma, no Rio de Janeiro, em cada aparição. E o perigo, de deixar a proteção do Papamóvel blindado, de viajar em meio de potentes carros escuros em seu carrinho cinza entre as multidões do Brasil, já construíram não apenas uma imagem, mas uma épica. O Papa se arrisca, confia nas pessoas, e que aconteça o que Deus quiser. Em um mundo de medos extremos, de dirigentes blindados, ele se expõe. Será muito difícil abandonar agora essa atitude e não creio que Francisco tenha alguma intenção de fazê-lo. Assim está dando excelentes resultados e tem ainda uma sólida trajetória nesse sentido.

Mas onde mais se expôs o novo Papa é em seus discursos, em suas declarações à imprensa. Não é só a partir das Encíclicas papais que fala um Papa, o faz de maneira muito mais contundente em sua vida cotidiana e em seus contatos permanentes com o mundo, em suas missas e seus discursos. E Francisco não perde oportunidade de comunicar. Já não são mensagens, já não é uma postura, é toda uma visão que transmite.

Essa combinação de sua vida pessoal, de seus gestos, de sua renúncia aos ornamentos e às imagens do poder terrenal, com seu discurso constante e permanente a favor dos mais débeis, dos pobres, dos que protestam e não se resignam à injustiça, a favor da UTOPIA...em um mundo de realismo feroz e não precisamente mágico, é uma mensagem muito forte. Como é um forte na história da Igreja o pronunciamento sobre os homossexuais. Ocupa as primeiras páginas da imprensa por sua ousadia.

Francisco declarou que foi morar no mesmo alojamento onde residem os visitantes que chegam ao Vaticano: a Casa Santa Marta onde pernoita, mas também toma o café da manhã, almoça e janta, porque dessa maneira fala com os bispos e os sacerdotes e sente o pulso de sua igreja, é um método e uma mensagem. A pequena mudança introduzida nas potestades da outrora todo-poderosa cúria romana e, em particular, do secretário de Estado, de que agora os bispos se dirigirão diretamente ao Papa, sem passar por nenhum filtro, é uma reforma profunda e radical.

O Papa saiu para disputar os corações, as almas e a moral de milhões de pessoas no mundo, em particular dos jovens com uma mensagem de valores, não apenas proclamados como evangelho, mas como uma forma de vida.

Eu sou ateu, fui católico praticante, não coincido com visões da igreja católica sobre a vida familiar, social, sexual, as diversidades e é possível que essas diferenças se mantenham, mas prefiro mil vezes um mundo onde uma grande instituição e um líder se destaquem por sua sensibilidade social, por promover valores de irmandade, de solidariedade, de fraternidade entre os seres humanos, que um mundo onde todos nos precipitamos pelo tobogã da decadência de todos os valores. E Francisco se destaca em forma constante há quatro meses, com um discurso com uma sensibilidade social progressista. E não por isso há que apropriar-se do alheio, é a mensagem original da igreja católica em suas origens, mas também foi um impulso que se foi esgotando, dispersando, confundindo nos luxos do poder.

Prefiro mil vezes João XXIII que Pio XII ou inclusive que a Ratzinger. Não por simpatia, mas porque o mundo necessita tensões morais. Prefiro discutir, dissentir pela esquerda, desde uma visão laica que luta por um mundo mais justo, mais irmão, mais decente que conviver todos no lodo, bem lambuzados. Não gosto do consolo da decadência compartilhada.

Teremos que perguntar-nos se a própria esquerda não deve retomar a rua e sair bastante do palácio. A rua do contato com as pessoas, a rua da audácia em suas ideias e em sua busca na realidade, mas também nos sonhos milenares de um mundo mais justo. A mensagem de Francisco é também contra a resignação, todas as resignações.

Milhões de jovens e não tão jovens, receberam, recebemos nesses dias uma catarata de mensagens papais com um sentido franciscano, de seu fundador, do povoado de Assis e o mundo político, os que detêm o poder, os que temem as folhas e as multidões quando se agitam, os que se falam dentro dos palácios devem estar incômodos. Eu não me sinto incômodo em absoluto, muito pelo contrário.

Me encanta, me desafia intelectualmente, me dá esperanças. Para alguns será a voz de Deus, e têm todo seu direito, para outros é a voz de um homem, que desde um trono escolheu este caminho, esta linguagem, essas atitudes e interpela a todos.

(*) Jornalista, escritor, diretor da UYPRESS e BITÁCORA, no Uruguai. Ex-coordenador geral da IPS.

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