segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Em Nova York, ter um emprego ou dois não significa ter uma casa

Alpha Manzueta sai de um emprego às 7h da manhã e começa em seu segundo trabalho ao meio-dia. Nesse meio tempo, Manzueta vai até o lugar que ela tem chamado de lar nos últimos três anos – um abrigo para sem teto e moradores de rua.

Mireya Navarro
Após uma jornada de trabalho como segurança, Alpha Manzueta, volta do emprego para o abrigo onde vive, em Nova York
Após uma jornada de trabalho como segurança, Alpha Manzueta, volta do emprego para o abrigo onde vive, em Nova York
"Eu me sinto presa", disse Manzueta, 37, que tem uma filha de 2 anos e meio e que, em uma quarta-feira recente, parecia decidida em seu uniforme de segurança, acenando para controlar o tráfego e fazer osveículos liberarem o meio-fio do Aeroporto Internacional John F. Kennedy. "Você tenta, tenta, tenta e não chega a lugar nenhum. Eu ainda estou morando no abrigo".
Como a população sem-teto que vive em abrigos em Nova York alcançou o recorde de 50 mil pessoas, hoje um número crescente de nova-iorquinos sai do trabalho e, em seguida, se dirige a dormitórios públicos, segundo funcionários municipais e defensores dos sem-teto. Atualmente, mais de uma em cada quatro famílias que moram em abrigos, ou 28% do total, contam com pelo menos um adulto empregado, segundo os números disponibilizados pela prefeitura, enquanto 16% dos adultos solteiros que vivem em abrigos têm emprego fixo.
Esses sem-teto – grupo formado, em sua maioria, por mulheres – desempenham vários tipos de funções de baixa remuneração, como seguranças, caixas de banco, vendedores, instrutores de informática, auxiliares de saúde a domicílio e auxiliares administrativos. No trabalho, os sem-teto têm que se comportar como adultos e arcar com todas as responsabilidades inerentes a suas funções profissionais, mas, dentro dos abrigos, eles têm que obedecer ao toque de recolher e provar que estão ativamente em busca de um teto e economizando parte de seus salários.
Os defensores das moradias populares dizem que os sem-teto empregados são a prova do crescente do fosso entre os salários e os aluguéis – que subiram em Nova York mesmo durante a última recessão – e, considerando-se a escassez de unidades habitacionais subsidiadas, de quão difícil é escapar do sistema de abrigos da cidade, mesmo para as pessoas que estão empregadas.
"Um apartamento de um quarto na região leste de Nova York ou no sul do Bronx ainda custa US$ 1.000 por mês", disse Patrick Markee, analista sênior de política pública da Coalition for the Homeless (Coalisão para os Sem-Teto e Moradores de Rua), grupo de defesa de direitos e de serviços de habitação. "Ter um emprego não é garantia suficiente para tirar essas pessoas da pobreza e da falta de moradia".
David Garza, diretor-executivo da Henry Street Settlement, que administra três abrigos para famílias e um abrigo para mulheres solteiras com doenças mentais, disse que há cinco anos seus abrigos instalavam 200 famílias por ano em habitações permanentes. Segundo Garza, no ano passado, a instituição conseguiu instalar apenas 50 famílias em residências permanentes.
"Sem disponibilizar unidades habitacionais para pessoas de baixa renda, esse é um labirinto sem saída", disse Garza.
Os sem-teto empregados estão constantemente fazendo malabarismos com as demandas de seus dois mundos.
Uma mulher de 45 anos chamada Barbara, que trabalha meio período como representante de atendimento ao cliente no setor de transporte público, disse que tem que manter itens como lâminas de barbear e de cortadores de unha em um centro de armazenamento, pois seu abrigo não autoriza a entrada desses objetos por razões de segurança.
Segundo Barbara, às vezes, ela carrega uma sacola cheia de roupas sujas para o trabalho para levar à lavanderia após o expediente, pois as máquinas do abrigo estão sempre quebradas ou sendo usadas.
Mas, segundo ela, não há como escapar do barulho e do sono irregular de um dormitório compartilhado com outras oito mulheres.
Como a maioria dos sem-teto empregados que foram entrevistados para esta reportagem, Barbara não quis fornecer seu nome completo por medo de perder sua privacidade ou seu emprego. Ela é sem-teto desde 2011, quando seu seguro-desemprego acabou e ela não conseguia mais pagar o aluguel de seu apartamento no Brooklyn. Ninguém no trabalho dela sabe sobre sua situação atual, disse ela.
"Quando se trata da minha vida profissional, eu quero que as pessoas pensem que sou uma pessoa bem resolvida, que eu não estou vivendo de salário em salário nem que a minha única opção é fazer compras em brechós", disse ela.
Às vezes, os trabalhadores sem-teto descobrem uns ao outros.
Deirdre Cunningham, 21, que trabalha em dois empregos de meio período – como caixa de banco e como balconista de uma loja de eletrônicos em Manhattan –, disse que, a certa altura, uma colega de trabalho da loja a convidou para ir a um evento noturno. "E eu disse: 'Eu não posso ir, pois tenho toque de recolher', e essa colega de trabalho me perguntou: 'O que você quer dizer com toque de recolher?'"
"E eu respondi, 'Eu moro em um abrigo', e ela disse: 'eu também'".
Cunningham, que tem uma filha de 4 anos, disse que sempre foi muito aberta em relação a suas dificuldades. "Várias pessoas também têm problemas", disse ela .
Ela disse que saiu da casa de seus pais, em South Bronx, em 2011, por não querer expor sua filha a "problemas familiares". Dois anos e três abrigos mais tarde, ela conseguiu se mudar, em agosto passado, para seu próprio apartamento de um quarto no Bronx, cujo aluguel custa US$ 900 por mês e que ela paga com a ajuda de um subsídio para locação concedido pela Coalition for the Homeless. Mas essa ajuda vai durar apenas dois anos.
"Agora que a minha situação habitacional está sob controle, é hora de eu voltar para a escola, conseguir um emprego melhor e ser uma mãe melhor para a minha filha", disse Cunningham, que concluiu um curso de assistente de médica, mas aspira a ser jornalista.
"Minha filha quer estudar balé", diz ela.
Um estudo encomendado pela cidade de Nova York e realizado pelo Vera Institute of Justice em 2005 concluiu que "ao contrário da crença popular", 79% dos chefes de família sem-teto tinham históricos profissionais recentes e mais da metade possuía qualificações – que chegavam até o nível universitário – que os tornavam empregáveis.
A maioria, segundo o estudo, havia passado por eventos "desestabilizadores" antes de ir parar no abrigo. Ou seja: em geral essas pessoas perderam o emprego, foram despejadas ou deixaram de receber algum benefício social e foram parar na rua.
Em 2004, o prefeito Michael Bloomberg anunciou um projeto ambicioso para reduzir a população sem-teto da cidade – que na época somava 38 mil pessoas – em dois terços no período de cinco anos. O plano previa a transferência de recursos financeiros do sistema de abrigos para a criação de unidades habitacionais para pessoas de baixa renda aliadas a serviços sociais.
Para tornar o sistema de abrigos menos convidativo, o município também parou de dar prioridade às famílias sem-teto na concessão de unidades habitacionais públicas e passou a dificultar o retorno ao sistema para aqueles que já haviam deixado de utilizá-lo.
Em 2011, quando o apoio financeiro fornecido pelo Estado e pelo governo federal foi retirado, a cidade cancelou um programa que concedia, pelo período de até dois anos, subsídios para a locação de imóveis no intuito de ajudar as famílias a saírem dos abrigos e irem para seus próprios apartamentos.
Hoje em dia, o número de moradores de abrigos em Nova York gira em torno de 50 mil pessoas, de acordo com a Secretaria Municipal de Serviços para os Sem-Teto. Mais de 9 mil são adultos solteiros e mais de 40 mil fazem parte de famílias, incluindo 21,6 mil crianças. O custo médio mensal para que o governo abrigue uma família é superior a US$ 3 mil; o custo médio mensal para manter uma única pessoa é superior a US$ 2,3 mil.
Linda I. Gibbs, vice-prefeita do governo Bloomberg para a área de saúde e serviços sociais, disse que a prefeitura não dispõe de recursos para arcar com a demanda por habitação subsidiada depois que os recursos do governo federal e do governo estadual secaram.
Os defensores dos sem-teto dizem que o município deveria voltar a fornecer assistência habitacional aos residentes dos abrigos, o que incluiria priorizar essas pessoas na concessão de unidades habitacionais públicas.
Mas, em entrevista, Gibbs reiterou a posição de longa data do governo Bloomberg, segundo a qual mais benefícios só atraem mais pessoas para abrigos. "Isso impulsiona mais a demanda", disse ela. "É uma situação sem saída".
Gibbs disse que as autoridades estão cogitando expandir um programa municipal que ajudaria as famílias em risco de perder suas casas a não serem despejadas.
Mas pessoas como Manzueta, a segurança do aeroporto, ainda precisam de uma saída.
Ela disse que conseguiu manter seus empregos, que pagam US$ 8 por hora, e fazer cursos para aprender novas funções. Mas, com uma ordem de despejo estragando seu registro de crédito e incapaz de pagar mais de US$ 1.000 por um aluguel, ela ainda não conseguiu um apartamento.
"Nova York", disse a nova-iorquina Manzueta, "é a cidade mais difícil do mundo para se viver".
Tradutora: Cláudia Gonçalves

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