domingo, 1 de setembro de 2013

‘Esqueça da moralidade’ em ‘Os Guardiões’


‘Esqueça da moralidade’ em ‘Os Guardiões’

No premiado documentário israelense ‘The Gatekeepers’ (Os Guardiões), do diretor Dror Moreh, agentes do Shin Bet pela primeira vez concordam em transmitir ao público muitas das informações então sigilosas sobre os mais diversos procedimentos israelenses de espionagem. Por Luciana Garcia de Oliveira

Todos nós sabemos que não é sempre que nos surpreendermos com documentos reveladores de uma guerra, de um regime de exceção ou mesmo sobre as atuações de um serviço secreto em um território sob a ocupação militar. Esse é o caso de alguns territórios palestinos desde 1948 e, mais recentemente após a Guerra dos Seis Dias, em 1967. Foram durante esses acontecimentos que o serviço secreto Shin Bet (que em hebraico significa “Serviço de Segurança Geral”) monitorou muitas atividades da população árabe-palestina dentro de Israel e nos territórios ocupados da Cisjordânia, na Faixa de Gaza e mesmo nos campos de refugiados em países estrangeiros, como é o caso do Líbano. 

Agora, é possível conferir isso por intermédio dos depoimentos de seis agentes do Shin Bet, que pela primeira vez concordaram em transmitir ao público muitas das informações então sigilosas sobre os mais diversos procedimentos israelenses de espionagem, tais como os métodos controversos nos interrogatórios dos presos políticos palestinos e os assassinatos seletivos autorizados, no premiado documentário israelense ‘The Gatekeepers’ (Os Guardiões), do diretor Dror Moreh. 

Entre os depoimentos sobre as ações do Shin Bet, foi devidamente destacado o escândalo do episódio do sequestro do ônibus em Israel, em 1984. O ônibus havia sido cercado, e os reféns libertados. Porém, mesmo diante da rendição dos dois sequestradores palestinos, a qual havia sido previamente registrada nos meios de comunicações israelenses e palestinos, ambos reapareceram assassinados em circunstâncias misteriosas, com marcas de intensa violência e com os ossos quebrados. De acordo com o jornal ‘Haaretz’, no artigo ‘The Shin Bet scandal that never died’, o colunista Gideon Levy reafirma que o episódio seria um escândalo para a política e o então governo israelense, uma vez que os responsáveis nunca responderam legalmente pelo crime cometido e tais violações nunca, de fato, foram divulgadas nos meios de comunicação. 

Muito além dos fatos históricos, os agentes revelaram ações do Shin Bet na Cisjordânia, Faixa de Gaza e no sul do Líbano, bastante recentes, datados de 2005 até 2011. No discurso de cada um, são reveladas informações acerca da atuação nos campos de refugiados palestinos, por intermédio de agentes infiltrados dentro da sociedade palestina, as precárias (e propositais) condições das prisões secretas administrativas e a incidência de tortura, a fim de se obter “confissões” durante os interrogatórios administrativos. Alguns métodos de tortura foram revelados por alguns dos depoimentos em ‘Os Guardiões’, como as técnicas de afogamento, privação de sono, espancamento na cabeça e choques elétricos nas regiões íntimas masculinas.

O cerceamento da liberdade palestina, aliado a práticas humilhantes de revistas individuais nos postos de controle israelense e durante os mandados de busca domiciliares, sobretudo na madrugada, foram reveladas nos depoimentos e em algumas imagens históricas e recentes dessas ações de “emergência”. Em algumas imagens transmitidas no documentário é possível ver algumas dessas invasões domiciliares e o modo pelo qual as crianças são aterrorizadas no meio da noite, como parte do projeto de atemorização palestina, a fim de que seja enfim estimulada uma fuga em massa para outros territórios, fora do âmbito israelense. 

Tais circunstâncias estimularam para que a resistência palestina se tornasse cada vez mais organizada nos territórios ocupados e na diáspora, da mesma forma, com a adoção de práticas e treinamento de guerrilha, e com ações terroristas por parte de alguns grupos mais extremistas como as brigadas Ezzul Deen Al Quassam, vinculado ao grupo Hamas. 

Foi um ano após os acordos de paz de Oslo (1993), entre o governo de Israel e o presidente da Organização pela Libertação da Palestina (OLP), intermediado pelo então presidente norte-americano Bill Clinton, que ocorreu um dos piores ataques terroristas em Israel. Um ônibus cheio de passageiros fora explodido nas ruas da capital, vitimando 22 israelenses e causando um sentimento de revolta, ceticismo e muito ressentimento, principalmente entre aqueles que acreditaram nos acordos firmados entre o primeiro ministro Yitzhak Rabin e o presidente da OLP Yasser Arafat.

O atentado gerou grandes manifestações em Israel, mas nenhuma tão violenta como as advindas por parte dos colonos de extrema-direita sionista. Naquele momento, na cidade sagrada de Jerusalém, havia milhares de judeus revoltados nas ruas, exigindo o fim dos acordos com a autoridade palestina, a expulsão total e imediata dos palestinos do que eles consideram como sendo a “Terra de Israel”, e a destituição do primeiro-ministro Yitzhak Rabin do seu cargo. O clima violento pode ser assistido em algumas das cenas do documentário. Mesmo assim, os seguranças e alguns agentes do Shin Bet não acreditaram na possibilidade de assassinato. 

A morte de Yitzhak Rabin diminui drasticamente a crença pela possibilidade de acordos de paz entre os israelenses, ao mesmo tempo em que o Estado de exceção nos territórios ocupados tornou-se cada vez mais intenso e violento. Nesse mesmo passo, a raiva palestina é intensificada, ondas de atentados terroristas atingem alvos civis e as punições coletivas ficam mais fortes, gerando, por sua vez, um clima hostil e perigoso.

A questão do combate ao terrorismo possibilitou que o Shin Bet fosse autorizado a executar alguns assassinatos seletivos, como a perseguição e a morte de uma das lideranças do Hamas, Yahya Ayyash, conhecido como o “Engenheiro”. Ayyash, considerado como o precursor da implementação dos ataques suicidas no conflito Israel – Palestina, foi responsável direto pela morte de cerca de 70 israelenses. Sua morte foi resultado de uma ação minuciosa de monitoramento e espionagem do Shin Bet na Faixa de Gaza. No dia 5 de janeiro de 1996, Yahya Ayyash foi assassinado após atender à uma ligação de um celular carregado por explosivos, e a sua morte gerou intensas manifestações e muitas ameaças na Faixa de Gaza. Em decorrência dessa situação, muitos procedimentos da segurança israelense aumentaram vertiginosamente.

Se o conceito de vitória, de acordo com um dos depoimentos, é “ver o outro sofrer”, o documentário pôde revelar que Israel esta longe de ser o vencedor dessa guerra. Muito surpreendentemente, os ex-dirigentes do Shin Bet admitiram que a preocupação exacerbada pela segurança, refletida na crescente repressão, representada no cerceamento da liberdade de locomoção dos palestinos, revelam que não somente Israel perdeu a guerra, como a vida e a rotina israelense estão piores com o passar do tempo, mais angustiantes e assustadoras. Alguns chegam até a comparar as ações do Estado israelense ao da Alemanha nazista.

A mudança no discurso dos funcionários do governo de Israel é bastante visível no filme. Se antes, logo no início da produção, defendiam a ideia de que não poderia haver negociação com aqueles que eram considerados “grupos” ou “indivíduos terroristas”, no final são unânimes em defender o diálogo com qualquer grupo e partido político palestino e mesmo iraniano. A mesma unanimidade com relação à possibilidade da melhora da vida dos israelenses, qual seja, para todos eles, tal mudança somente será possível diante de uma mudança radical e estrutural na política israelense com relação aos palestinos. Medidas como o fim da ocupação e a proclamação do Estado Palestino são citados, como exemplos que possibilitam a volta ao diálogo entre ambos os lados. 

Se a vitória é identificada pela melhora da vida das sociedades em guerra, por hora Israel perdeu a guerra. 

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