domingo, 1 de setembro de 2013

Geopolítica e classes sociais


Geopolítica e classes sociais

Se conjunturas de crise como a de hoje trazem oportunidades, também é nestas horas de bifurcação que os países podem perder o bonde da história por longos períodos de tempo, caindo na vala comum do “desenvolvimentismo preguiçoso”.

Não há nenhuma evidência histórica de que exista uma relação necessária e monogâmica entre determinadas estratégias internacionais de poder e algum estado, regime político ou modo de produção particular. Nem tampouco, com alguma religião, fase do capitalismo ou classe social específica. Por isto, não é possível deduzir uma política internacional de um catálogo genérico dos interesses ou coalizões de classe. Como tampouco se pode atribuir - de forma necessária e permanente - uma política econômica ortodoxa ou heterodoxa, a alguma classe ou fração de classe exclusiva. Tudo dependerá, nos dois casos, das circunstâncias históricas, políticas e geopolíticas específicas de cada país. 

O sociólogo e economista austríaco, Karl Polanyi (1886-1964), foi quem propôs, talvez, em 1944, a tese mais original e instigante sobre a existência de uma “regularidade variável” e de longo prazo, na história do sistema interestatal e do capitalismo, entre as estratégias internacionais dos países e suas politicas econômicas e sociais, ou, de forma mais ampla, entre sua geopolítica e suas classes sociais. Resumindo o argumento: Karl Polanyi identifica a recorrência de um “duplo movimento” na história do capitalismo, que seria resultado da ação permanente e contraditória de dois princípios organizadores das economias e sociedades de mercado, cada um deles apontando para objetivos diferentes. Um seria o “princípio do liberalismo” econômico que propõe, desde as origens do sistema, a globalização ou universalização dos mercados autorregulados, através da defesa permanente dolaissez faire e do livre comércio. E o outro seria o princípio da “autoproteção social”, uma reação defensiva que se articula historicamente “não em torno de interesses de classes particulares, mas em torno da defesa das “substâncias sociais ameaçadas pelos mercados” (nota 1). Este princípio de “autoproteção social”, por sua vez, tenderia a se manifestar de duas maneiras diferentes: i) dentro de cada país, através de várias formas de luta, mobilização e democratização política e social, e de construção de redes igualitárias de proteção coletiva das suas populações; e ii) dentro do sistema internacional, através de uma reação defensiva/ofensiva dos estados que decidem proteger seus sistemas econômicos nacionais, frente a situações de crise e de aumento da competição e da belicosidade do sistema interestatal. No caso dos países europeus, estes dois movimentos de autoproteção social e internacional convergiram, na maioria dos casos, graças à natureza secular, extremamente competitiva e bélica, do seu sistema político. Mas o mesmo também ocorreu na luta anticolonialista de alguns países asiáticos, onde o sentimento de identidade e mobilização nacional cumpriu papel decisivo na soldagem de uma “comunidade de interesses” frente a um tipo de desafio externo que diluiu as fronteiras de classe e estimulou várias formas e políticas de proteção e fortalecimento nacional, e de solidariedade e igualdade social. Nestes casos, se pode dizer que ocorreu uma espécie de “renacionalização” das burguesias locais, e uma maior identificação de suas elites com seus territórios, suas populações e suas economias nacionais. Foi sobretudo nestas situações e circunstancias que se formaram os grandes consensos e as coalizões de poder responsáveis pelo sucesso econômico e internacional das potencias europeias e asiáticas. Por fim, se pode dizer, a partir da tese central de Polanyi, que não existem proprietários das ideias, das políticas, e das estratégias, a história ensina que uma mesma ideia ou estratégia pode ser apoiada por diferentes coalizões de poder, em diferentes momentos e países, dependendo do contexto internacional.

Agora bem, na segunda década do século XXI, o contexto mundial de crise, e aumento da belicosidade e da competitividade internacional está anunciando – uma vez mais – o surgimento de “condições externas” favoráveis à uma nova “era de convergência” entre as políticas de autoproteção social e nacional, dentro dos países situados nas escalões inferiores do sistema interestatal capitalista. Segundo Polanyi, como vimos, é nestas conjunturas que se abrem as portas para a formação dos consensos e das coalizões de poder capazes de questionar as assimetrias de poder e riqueza internacionais, e com força para sustentar políticas nacionais de crescimento e igualdade sociais aceleradas. Mas é também nestas horas de bifurcação que os países podem perder o bonde da história por longos períodos de tempo, caindo na vala comum do “desenvolvimentismo preguiçoso”, perdido na teia repetitiva e sonolenta das diatribes macroeconômicas, e movidos pela força quase inercial de infinitos interesses coligados e satisfeitos, sem uma hegemonia e uma direção estatal clara. Por absoluta falta de ousadia internacional e de uma estratégia econômica e social coerente, expansiva e de longo prazo.

Nota 1

Polanyi, K. (1944 [1980] , A Grande Transformação, Editora Campus, Rio de Janeiro, pág. 164

(*) José Luis Fiori é professor titular de Economia Política Internacional da UFRJ e coordenador do Grupo de Pesquisa do CNPQ/UFRJ "O Poder Global e a Geopolítica do Capitalismo". (www.poderglobal.net)

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