Usar direitos humanos como pretexto para intervenções militares pressupõe hierarquia entre povos cuja ilegitimidade foi identificada já no século XVII
José Luís Fiori
José Luís Fiori
“Eu via no universo cristão uma leviandade com relação à guerra
que teria deixado envergonhadas as próprias nações bárbaras.”
que teria deixado envergonhadas as próprias nações bárbaras.”
Hugo Grotius, O Direito da Guerra e da Paz, 1625
Mesmo assim, Grotius nunca imaginou a possibilidade de uma guerra que tivesse como objetivo promover ou universalizar o próprio “direito natural dos homens”. Para ele, os direitos humanos e a fé religiosa eram uma conquista de cada homem e da cada povo em particular, e uma guerra feita em nome dos “direitos naturais”, seria uma contradição em si mesma, ou seria uma “guerra de conversão”, como as Cruzadas que ele abominava, apesar de ser um cristão fervoroso. Quase dois séculos depois, o filosofo iluminista alemão, Immanuel Kant (1724-1804), reconheceu a existência desta mesma contradição, no caminho do seu projeto de uma “paz perpétua” universal. Mas Kant acreditava na superioridade dos europeus, e defendia sua “missão civilizatória” no mundo. Por isso, propunha seu projeto de paz, mas considerava que primeiro os europeus teriam que converter o resto do “gênero humano” à mesma “ética internacional civilizada” que eles haviam criado. Para Kant, portanto, “no grau de cultura em que ainda se encontrava o gênero humano, a guerra era um meio inevitável para estender a civilização, e só depois que a cultura tivesse se desenvolvido (Deus sabe quando), seria saudável e possível uma paz perpétua” (2).
Neste início do Século XXI, a contradição identificada por Grotius e Kant adquiriu muito mais força e extensão, com a multiplicação do numero de estados do sistema mundial, e com o fim da bipolaridade ideológica da Guerra Fria. Depois de 1991, muitos acreditaram na vitória do “cosmopolitismo europeu”, mas já no início do século XXI, todos perceberam que o sistema mundial segue sendo o mesmo, só que ficou ainda mais complexo e heterogêneo, do ponto de vista ético, cultural e religioso. E tudo indica que neste novo universo ampliado e sem ameaça comunista, as grandes potências ocidentais decidiram transformar a questão do “respeito aos direitos humanos”, no novo grande princípio ético legitimador das suas velhas “guerras civilizatórias”. Chama atenção, neste sentido, que todas estas guerras, das duas últimas décadas, tenham sido lideradas pelos mesmos países que compõem – simultaneamente — o “diretório militar” do mundo ocidental, e seu pequeno “círculo de criadores da moral internacional” (3) : Estados Unidos, Inglaterra e França. Ou seja, contra toda boa norma jurídica, neste momento da história internacional, os mesmos três países que formulam a ética, os direitos e as regras são os que julgam, condenam e punem quem eles consideram culpado, o que em geral já está definido de antemão. Com ou sem o consentimento do resto do “gênero humano”, que ainda não foi “civilizado”, e que não tem poder para dizer: basta!
1. Hugo Grotius, 2005, O direito da guerra e da paz, Vol I, Editora Unijui, Ijui
2. Immanuel Kant, 2008, “ A paz perpétua, um projeto filosófico”, Lusofia;Press, Covilhã,
3. Edward H.Carr, 2001, “The twenty years crisis, 1919-1939”, Harper Collins, London

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