Filósofo José Antonio Zamora Zaragoza defende o surgimento de uma teoria social à altura dos desafios a serem enfrentados a partir da criação de vida em laboratório
Márcia Junges E Andriolli Costa
Márcia Junges E Andriolli Costa
A pesquisa científica avançou consideravelmente desde que James Watson e Francis Crick descobriram a estrutura da molécula do DNA, em 1953. O desafio hoje já não é mais “desentranhar o genoma ou manipular os genes”, como bem lembra o filósofo espanhol José Antonio Zamora Zaragoza. O futuro está na construção sintética da vida em laboratório. Os primeiros passos em direção a esse resultado já estão sendo dados. Em 2010, Craig Venter e sua equipe anunciaram a criação da bactéria Synthia, que, segundo ele próprio, foi “a primeira espécie autorreplicante que temos no planeta, cujo parente mais próximo é um computador”. Muitos debates foram levantados questionando se aquela havia sido realmente criação de vida ou uma simples imitação dela. Coloca-se em cheque, dessa forma, a própria definição do que é e do que não é “vida”, “natural” e “artificial”, fazendo a opinião pública e os próprios cientistas se dividirem neste terreno que ainda é incerto mesmo para os pesquisadores.
Para Zamora, no entanto, as preocupações sociais não deveriam se concentrar apenas nesta questão. Em entrevista realizada por e-mail à IHU On-Line, ele dá vazão às suas preocupações. “Em uma era presidida pela desregulamentação, pela subordinação do poder político aos interesses do capital, pela influência dos lobbies das corporações multinacionais (...) há razões mais do que suficientes para duvidar da possibilidade de um controle público e participativo da biologia sintética”. Não apenas isso, mas a lógica de mercado que rege a sociedade – e a própria pesquisa científica – leva ao questionamento sobre o lugar que as criações sintéticas ocupariam. Os limites éticos que regem a vida natural também se estenderiam à artificial? Seriam elas passíveis de registro como propriedade intelectual? Estariam sujeitas às normas de patentes? Para o filósofo tais perspectivas provocam “temores fundados” e é preciso uma teoria social à altura dos desafios enfrentados. Caso contrário, pontua, abre-se finalmente a porta, pela primeira vez, para uma “mercantilização completa da ‘vida’”.
José Antonio Zamora Zaragoza é graduado em Filosofia pela Universidade de Granada (Espanha) e possui doutorado em filosofia na Westfälische-Wilhelms-Universtät de Münster (Alemanha), com uma tese sobre o pensamento de Theodore Adorno. Desde 2005 é professor titular do Instituto de Filosofia, do Centro de Ciencias Humanas y Sociales de Madri - CSIC, Espanha. Trabalha especialmente com a Teoria Crítica, filosofia depois de Auschwitz, teologias políticas da modernidade e filosofia política das migrações. Entre seus trabalhos mais recentes, é autor de Justicia y memoria: hacia una teoría de la justicia anamnética (Barcelona: Anthropos, 2011) e Memoria – Política – Justicia: En diálogo com Reyes Mate (Madri: Trotta, 2010).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Que implicações políticas e filosóficas podem ser apontadas desde o ponto de vista da biologia sintética?
José Antonio Zamora – A biologia sintética é um passo a mais do que conhecíamos até agora como biotecnologias emergentes. Já não se trata de desentranhar o genoma ou de manipular os genes, seja com fins legítimos ou não, mas sim de construir a vida sinteticamente em laboratório. Em um primeiro momento, a investigação se centra na síntese de partes de sistemas biológicos ou na construção de modelos de sistemas biológicos que não existem na natureza. Evidentemente, isso pressupõe um conjunto de novos desafios que afetam múltiplas questões, desde a própria definição de vida e da diferença entre "natural" e "artificial", até o modelo de sociedade e de humanidade a que o seu projeto responde. Por meio da convergência da biologia, da computação e da engenharia em escala nanométrica, pretende-se construir genes ou genomas completos. Isso permitiria o design de bactérias ou mesmo de seres multicelulares a serviço da produção de substâncias de interesse terapêutico ou comercial. Embora a opinião pública em geral esteja pouco informada, nas comissões de controle ético ou político, têm-se levantado certos alertas, especialmente em questões de segurança, a partir da segurança biológica relativa à interação dos produtos biossintéticos com outros seres vivos no ecossistema, até o possível uso terrorista de patógenos letais. Neste caso, o que ocupa a nossa atenção é a questão do controle e das instâncias sociais e políticas que devem intervir em tal controle. Como em outros campos da engenharia genética, as dificuldades provêm da pluralidade e da diversidade de agentes que intervêm na execução dos projetos de pesquisa, desde os governos públicos, as equipes científicas, as empresas biotecnológicas, os órgãos internacionais, etc. Em uma era presidida pela desregulamentação, pela subordinação do poder político aos interesses do capital, pela influência dos lobbies das corporações multinacionais, pela corrida (econômica) para adiantar resultados espetaculares associados com benefícios astronômicos, há razões mais do que suficientes para duvidar da possibilidade de um controle público e participativo da biologia sintética, especialmente se for construído um discurso baseado na promessa de dar solução, por meio da biologia sintética, a problemas múltiplos, desde os energéticos aos do meio ambiente, dos da saúde médica aos de melhoria das espécies, incluindo a humana. Esse discurso, além de deixar de lado a complexidade social e política das causas que geram esses problemas e submetê-la a uma proposta de engenharia social politicamente discutível, provoca temores fundados frente a uma suposta capacidade de projetar "vida" em laboratório que responda a necessidades, desejos e projeções daqueles que controlam o processo de produção biossintética.
Biopatentes
A outra questão é a que diz respeito à sujeição dos produtos biossintéticos a direitos de propriedade intelectual mediante a criação de patentes. Como se sabe, as patentes são, ao mesmo tempo, um instrumento de proteção das inovações tecnológicas e de exploração monopolista. Para que os produtos biossintéticos sejam considerados material biológico que podem ser patenteados (como matéria inerte, só a inovação e a aplicabilidade industrial bastariam para patenteá-los), eles teriam que possuir a capacidade de autorreplicação. Se nos ativermos ao regime clássico específico das biopatentes, a maioria dos futuros produtos e procedimentos biossintéticos seria patenteável. Dado que a criação em laboratório de organismos vivos multicelulares, mais ou menos complexos, não é previsível em curto prazo, parece que não se propõem as limitações relativas ao material biológico humano. Assim, pois, na construção de microrganismos de design, abre-se a porta, pela primeira vez, para a possibilidade de uma mercantilização completa da "vida". A vida sintética seria uma vida sob patente, uma vida de propriedade privada. Aqueles que defendem, nesse âmbito, uma investigação biológica aberta e livre enfrentam o poder dos fatos, pois tanto os cientistas acadêmicos quanto os corporativos trabalham atualmente para obter patentes em regime de monopólio: "Quem conseguir produzir biocombustíveis abundantes não só vai fazer muito dinheiro... fará história! Essas companhias ou países serão os triunfadores econômicos da próxima era, do mesmo modo que hoje são as nações ricas em petróleo" (J. Craig Venter). Como se pode ver, a concentração de poder econômico também afeta a produção biossintética com consequências tanto sobre o que se deve produzir, quanto sobre a valorização dos riscos ecossistêmicos, sociais ou políticos. A biologia sintética poderia dar razão às teses mais temíveis sobre "biopolítica".
Avanços do campo
Por outro lado, a biologia sintética parece apontar para um salto evolutivo sem precedentes. Já não se trataria de intervir no processo da evolução por meio de tecnologias humanas, sejam elas mais primitivas ou mais sofisticadas tecnologicamente (a espécie humana vem fazendo isso desde tempos imemoriais), mas sim de tomar as rédeas do processo evolutivo, de se converter nos designers da evolução "natural", por mais que o desenvolvimento científico nesse campo ainda esteja muito longe de poder fazer previsões seguras sobre os efeitos reais no longo prazo de uma completa diretividade humana. Isso leva conservacionistas e ecologistas a defender um princípio da precaução, leva os apologistas da biologia sintética a postular uma capacidade infinita de resposta tecnocientífica aos previsíveis ou temidos problemas derivados do próprio desenvolvimento científico-técnico. Mas, nesse último caso, estaríamos diante de uma crença não fundamentada em fatos.
IHU On-Line – Em que medida o Princípio Responsabilidade (Prinzip Verantwortung) de Hans Jonas nos oferece um aporte teórico para se pensar a questão da vida e de seus nexos com a técnica em nossos dias?
José Antonio Zamora – Hans Jonas enfrentou, em sua reflexão filosófica, questões centrais para o tema em questão, desde o impacto das biotecnologias na compreensão da vida, até os limites da ação tecnológica, passando pela organização social e política que possa se encarregar da ameaça ecológica. O novo imperativo que nasce dessa reflexão talvez pudesse ser formulado assim: “Aja de tal modo que as consequências do seu fazer não destruam a possibilidade de vida humana no futuro; converta o interesse da natureza e das gerações futuras em seu interesse”. Isso o levou a estabelecer uma "heurística do temor". Disso provém, como "primeiro dever" de uma ética orientada para o futuro, a necessidade de se prover de representações dos efeitos distantes das ações humanas. Daí resultaria o segundo dever, o de um "temor refletido". As razões para isso são evidentes. Frente ao proceder a apalpadelas assegurador da evolução natural da vida, a evolução tecnológica atual representa um salto qualitativo. A sua dinâmica acelerada produz, cada vez mais, fatos irreversíveis, e os riscos que ameaçam a vida tornam-se mais prováveis. Por isso, segundo Jonas, os desejos de "melhoria" devem ser subordinados ao dever da conservação.
Perdas e ganhos
Apesar de todas as incertezas sobre se uma perda "infinita" (da vida humana) irá se produzir, o perigo de que ela efetivamente ocorra dá prioridade ao prognóstico negativo sobre o positivo, apoiado nas possibilidades de ganhos "finitos" previsíveis. Jonas concebe a natureza como dotada de uma teleologia cujo resultado é um ser capaz de dar fins a si mesmo. O paradoxal é que essa capacidade pode se voltar destrutivamente contra a teleologia que o gerou. Jonas responde a essa possibilidade destrutiva convertendo o telos natural (de defesa da vida) em um dever ético. Esse salto entre o ser e o dever levanta a suspeita de uma reedição da metafísica tradicional, o que tornaria problemática a proposta de Jonas em uma era pós-metafísica. Mas não existe só essa dificuldade. Os apologetas da biologia sintética tiram consequências completamente diferentes das de Jonas. Dado que o resultado da teleologia natural nos colocou na condição de estabelecer fins sem condicionamentos naturais e que, de qualquer forma, somos obrigados a decidir, brinquemos de projetar a vida futura sem restrições morais. Apesar da aparente oposição, o que ambas as propostas compartilham é uma consideração abstrata das capacidades de ação dos indivíduos, que deixa de lado a inscrição de tal ação em estruturas sociais e econômicas que não só nos "condicionam", mas também "medeiam" toda ação individual ou grupal. Os limites da proposta de Jonas, assim como dos defensores da liberdade ilimitada da biologia sintética, são os limites de qualquer proposta meramente ética, sem o suporte de uma teoria social à altura dos desafios que enfrentamos.
IHU On-Line – Que implicações éticas se colocam a partir do domínio da natureza e da vida pela técnica?
José Antonio Zamora – Acredito que as exigências éticas não devem ser formuladas como um reino separado da realidade social, econômica e política, um reino em que se estabelecem princípios de ação. Isso vale para a ética em geral, mas também para uma ética do domínio técnico da natureza e da vida. O reino ideal do dever, no geral, não propõe problemas, por mais que queiram nos fazer acreditar no contrário aqueles que falam de conflitos de valores e disparidade de critérios morais. Eu acredito que é preciso saber dar conta de um fato elementar que quase todas as propostas éticas costumam passar por cima: com os nossos comportamentos, nós, indivíduos, reproduzimos estruturas e dinâmicas sociais que contradizem radicalmente o universo valorativo em que nos inscrevemos e com o qual nos identificamos. A ética se joga em primeiro lugar no desentranhamento crítico das mediações sociais da ação. Evidentemente, se esse desentranhamento deve ser realmente crítico, ele precisar negar o que existe, distanciar-se do que está dado, transcendê-lo. É isso o que costuma dar asas aos normativistas. Mas, talvez, baste um ponto de partida material e negativo: eliminar todo sofrimento socialmente produzido.
Teoria Crítica
Um imperativo ético à altura dos acontecimentos que a humanidade viveu ao menos nos últimos dois séculos seria, para formular com Theodor W. Adorno , pensar e agir para que os ingentes sofrimentos padecidos pelos seres vivos não se repitam, sejam eliminados. Daí se trataria de analisar o papel que o domínio da natureza e da vida pela técnica desempenhou na produção de tais sofrimentos, por mais que tal domínio tenha se legitimado a partir do objetivo de libertar a humanidade de todo o sofrimento desnecessário. A Teoria Crítica , para dar o exemplo mais emblemático, oferece uma análise, que não perdeu atualidade, da conexão entre o domínio da natureza interna e externa e as estruturas sociais de dominação próprias da sociedade capitalista. Não se trata de imputar à técnica um caráter destrutivo per se, mas sim de radicá-la na totalidade social dominada pelo capital e, a partir daí, mostrar que a barbárie social, ecológica, humana com que nos deparamos resulta da mediação imposta pelo capital tanto para as relações do indivíduo consigo mesmo, quanto com os outros indivíduos e com a natureza. As implicações éticas dessa análise não podem consistir em apelos genéricos à responsabilidade individual ou à responsabilidade das instâncias políticas ou dos cientistas, por mais que tal responsabilidade seja necessária e exigível, mas sim na crítica das mediações sociais que impedem uma práxis digna desse nome, mediações que impedem relações dos indivíduos consigo mesmos, com os outros e com a natureza não fundadas na dominação e na instrumentalização, mas sim na solidariedade compassiva e empática. Acredito que, a partir daí, é possível enfrentar os problemas e necessidades para os quais a biologia sintética pretende oferecer uma "solução técnica", desentranhando a sua gênese social, localizando-os nas estruturas e nos processos sociais que devem ser envolvidos nas soluções e buscando respostas que poderíamos chamar de "miméticas" ou "empáticas", isto é, não destrutivas ou aniquiladoras da natureza interior e exterior.
IHU On-Line – Como é possível compreender ética e moralmente a responsabilidade do cientista ante os experimentos que criam e replicam a vida?
José Antonio Zamora – Vivemos em sociedades altamente complexas, com um grau muito elevado de diferenciação e de coordenação. Essa diferenciação e divisão do trabalho impede uma abordagem dos fenômenos sociais a partir de um setor particular ou a partir de agentes individuais. A investigação científica e tecnológica faz parte de um aparato burocrático e administrativo que costuma se reger por políticas científicas sobre as quais os cientistas têm somente uma influência limitada. Por outro lado, as burocracias modernas se caracterizam por aquilo que Zygmunt Bauman chama de cultura racional burocrática, que elimina da gestão administrativa toda interferência moral. Não é que faltem comitês de ética, nem que não se exija o acompanhamento do trabalho científico pelas pertinentes reflexões morais ou políticas. Também existem limites legais. Os próprios cientistas exigem esse acompanhamento, e um exemplo é oferecido no artigo publicado na revista Science pelo grupo de Craig Venter anunciando a criação da bactéria "Synthia". Mas o que é determinante é o predomínio no âmbito da investigação científica dos princípios de competitividade e eficácia (em primeiro lugar econômica). Isso não significa que não haja uma elaboração de discursos de legitimação, fundamentalmente instrumentais, que exaltam os benefícios que a sua pesquisa irá proporcionar à sociedade. Não faltam os balanços de riscos e benefícios. Também não faltam as propostas mais ou menos futuristas de um controle democrático das decisões por parte dos afetados, graças ao avanço das novas tecnologias da informação e da comunicação. Mas os saberes especializados se distanciam cada vez mais da sua compreensão por parte dos cidadãos, e as capacidades tecnológicas, também as desenvolvidas no design e na criação de novos seres "vivos", vão à frente dos lentos e custosos processos de decisão política, quer se envolvam mais ou menos os cidadãos. Se olharmos atentamente os discursos em favor das vantagens da biologia sintética, comprovaremos que, no fundo, ressoa uma ultima ratio: "Podemos fazê-lo, portanto vamos fazer". Porque, se nós não fizermos, outros o farão, e para eles irão os lucros. Como em qualquer outra atividade no sistema capitalista, quem não produz lucros se afunda. Não há meio termo. As considerações morais, com os seus relatórios e os seus comitês éticos, passam a fazer parte do que conhecemos em outros âmbitos como "música de acompanhamento". Não é que ela careça completamente de valor, mas ainda é preciso demonstrar que a ética aplicada chega a produzir transformações significativas dos processos sociais e econômicos sobre os quais se pretende influir.
Pesquisa fundamental e aplicada
Na biologia sintética, pode-se observar algo que está ocorrendo em outros âmbitos da pesquisa científica. Esta se dividia tradicionalmente em pesquisa fundamental e pesquisa aplicada. Os cientistas que trabalhavam na primeira costumavam argumentar que eles desentranham a realidade, aportam conhecimentos, mas nem determinam seus usos, nem orientam as aplicações que podem derivar das suas pesquisas. Eles se movem em um âmbito que, em alemão, descreve-se com o termo wertfrei (neutro a partir do ponto de vista valorativo). Quem analisa as reações nucleares não tem que ser responsabilizado pela construção e, menos ainda, pelo uso da bomba atômica. Outra coisa é a pesquisa aplicada, pois esta se inscreve em estratégias e programas voltados a uma implementação efetiva dos experimentos científicos no campo econômico, social ou militar. Pois bem, atualmente, vivemos uma hegemonia e um predomínio da pesquisa aplicada sobre a pesquisa fundamental. Ela é a que realmente adquiriu um caráter diretivo, de modo que a inscrição da pesquisa nas lógicas produtivas e de controle social e político das populações orienta o conjunto da pesquisa e também afeta a pesquisa fundamental. Isso é muito relevante também por outra razão: estão sendo realizadas e implementadas tecnologias que não somos capazes de explicar ou de compreender completamente do ponto de vista teórico. Embora alguns cientistas reconheçam os riscos que isso pressupõe, seguir "avançando" no design e na criação de vida em laboratório se justifica como uma "necessidade" imposta por uma suposta teleologia irreversível no desenvolvimento tecnocientífico. Isso parece dar razão a Günther Anders, que, em A obsolescência do homem, denuncia o desnível entre o que o ser humano é capaz de pensar e imaginar e o que ele é capaz de produzir. As capacidades de pensar e imaginar do ser humano tornaram-se obsoletas, atrasadas ante o que ele é capaz de produzir ou fabricar. Se for assim, estaríamos diante de uma obsolescência da própria ética, que não pode prescindir da capacidade de pensar e imaginar.
IHU On-Line – Em que medida a “ética da responsabilidade”, de Max Weber , é importante para ajudar a pensar o papel dos cientistas ante as suas descobertas?
José Antonio Zamora – O conceito de "ética da responsabilidade" apela à necessidade de se levar em conta os efeitos reais e de justificá-los eticamente na hora de tomar decisões e de considerá-las normativamente. Com ele, Max Weber aponta para a insuficiência de posições éticas que centram sua reflexão na correspondência dos motivos e dos propósitos das ações com determinados valores éticos. Em certo sentido, podemos perceber aqui a clara consciência do hiato que existe nas sociedades modernas entre as motivações e os propósitos, de um lado, e os resultados, de outro. Se essa consciência levou Kant à conhecida formulação de que só pode ser absolutamente boa uma boa vontade, ela levou Max Weber a propor a necessidade de se levar em conta os resultados. Mas o problema que se esconde por trás de ambas as posturas é o problema da mediação das ações individuais e a possibilidade de assumir os seus efeitos, sejam ou não guiadas por propósitos moralmente irrepreensíveis. De certo modo, a filosofia moral que acompanha o triunfo do sistema capitalista dirigiu os seus dardos contra o vínculo entre intencionalidade e resultado. Pensemos por um momento na conhecida fórmula de Mandeville , "vícios privados, virtudes públicas". O que é moralmente censurável do ponto de vista da convicção moral – o egoísmo – pode ter efeitos públicos benéficos – a riqueza generalizada. O que converte o egoísmo privado em benefícios generalizados para as "nações" é a mão invisível do mercado (Adam Smith ). Em 1919, quando Max Weber deu a sua palestra A política como profissão, a confiança nessa mediação tinha sofrido questionamentos muito fundamentais. Mas o seu conceito de "ética da responsabilidade" não se dirigia contra essa confiança para questioná-la, não pretendia criticar uma suposta entrega dos efeitos das ações a mecanismos anônimos que garantem o melhor resultado possível graças à competitividade de indivíduos guiados por um egoísmo racional, mas sim contra os revolucionários da República dos Conselhos de Munique que, segundo ele, pretendiam impor na práxis política suas convicções éticas (ideologia). O impulso conservador desse conceito não deve ser esquecido hoje.
A ética das questões científicas
Ao contrário da profissão de político, Max Weber separa claramente o trabalho do cientista das questões éticas, já que este só se encarrega do como dominar a vida tecnicamente, mas não pode responder à questão sobre a possibilidade de produzir ou não esse domínio e de que maneira ele deve ser produzido. A ética, em geral, e a ética da responsabilidade, em particular, afetam os fins, para os quais a ciência é incompetente. Mas essa separação é a que foi problematizada pela própria evolução da ciência e da técnica. Como vimos ao nos referirmos a Hans Jonas, o que caracteriza esse princípio da responsabilidade atualmente é a crescente dificuldade de prever com segurança os efeitos de processos tecnológicos cada vez mais acelerados e de responder de forma responsável a eles. O seu caráter imprevisível e a sua irreversibilidade são, para Jonas, o que vincula a ética da responsabilidade com uma "heurística do temor". Entre duas previsões inseguras, é preciso se colocar no pior dos casos. Em resumo, o que há de aproveitável na ética da responsabilidade de Max Weber foi recolhido e aplicado ao novo nível da evolução tecnológica por Hans Jonas. Aos limites da sua proposta, já me referi anteriormente.
IHU On-Line – Quais são os limites e possibilidades de aplicação do mesmo estatuto moral e proteção jurídica que se aplicam aos seres vivos àqueles criados em laboratório?
José Antonio Zamora – A biologia sintética ainda se encontra em uma fase caracterizada mais pelas promessas do que pelos resultados efetivos. Em sentido estrito, Craig Venter não criou uma nova bactéria em laboratório, mas transferiu um genoma sintético ao citoplasma de uma célula já existente, célula que não tem capacidade de replicação. Com isso, não quero dizer que não se tenha criado uma ferramenta biotecnológica com enormes possibilidades e riscos. Não se escondem de ninguém as importantes consequências que pode ter a quebra dos limites da vida natural e humana pela tecnociência genética nos âmbitos da moral, da liberdade e da igualdade. Isso já está ocorrendo com a clonagem, o uso de células-tronco, a reprodução assistida, a produção de órgãos, etc. Contudo, os problemas que enfrentaríamos se, no futuro, fosse possível criar em laboratório seres multicelulares capazes de se autorreplicarem, ou se fôssemos capazes de supostas "melhorias" das espécies vivas existentes pela incorporação de sequências de genoma sintético, esses problemas derivariam do enorme salto que isso suporia na discricionariedade do design e na possível submissão da vida sintética à vontade daqueles que a produzem. Não estaríamos falando já de meras "retificações" – seja para fins terapêuticos, eugênicos ou econômicos – na dotação genética de seres vivos preexistentes (o que sem dúvida também levanta problemas específicos), mas sim da criação de seres vivos à vontade e por decisão. A nova disponibilidade sobre o próprio substrato orgânico ou sobre seres vivos projetados à la carte pode questionar a dignidade de tais seres. Essa é a tese de Jürgen Habermas .
Entre a combinação de acaso e necessidade, sob a influência da mudança de ambientes que parece guiar a evolução natural e a completa disponibilidade do design à la carte (especialmente se levarmos em conta que essa disponibilidade seguramente refletiria os interesses e as vontades de atores sociais muito diversos, dos indivíduos particulares aos poderes econômicos, políticos e científico-técnicos), talvez só a primeira garanta um grau suficiente de "indisponibilidade" compatível com a "dignidade da vida". Certamente, nem toda forma de vida possui o mesmo grau de autonomia, nem a toda forma de vida é garantido o mesmo grau de inviolabilidade, ou, em seu caso, indisponibilidade. Mas parece que a completa disponibilidade elimina qualquer grau de autonomia e submete a vida de forma completa a um planejamento regido por interesses necessariamente particulares. Isso atentaria contra o estatuto moral que, com toda a gradação que se queira, atribuímos à vida em geral. Uma questão diferente é saber se o design genético realmente é capaz de garantir, como sonham algumas pessoas seguindo um modelo da engenharia, uma completa disponibilidade sobre a vida sintética, e isso não somente em nível de seres vivos complexos, mas inclusive de microrganismos.
IHU On-Line – Em face das descobertas da biologia sintética, é adequado mencionar que, ao menos em alguma medida, o homem se tornou o criador de si mesmo?
José Antonio Zamora – Em 1962, o Grupo Empresarial Químico CIBA reuniu em Londres um grande número de prêmios Nobel para discutir o futuro do ser humano. O encontro foi intitulado Man and his future. "Temos o privilégio – dizia Julian Huxley , nesse encontro – de viver em um momento decisivo da história do cosmos, aquele em que o prodigioso processo evolutivo tornou-se consciente de si mesmo na pessoa do pesquisador. [...] Descobrimos que a evolução é um processo dialético ou cibernético", mas "agora carregamos a responsabilidade da ulterior evolução do nosso planeta". Naturalmente, essa responsabilidade também incluía a evolução do ser humano. A meta à qual Huxley apontava era a criação de um "homem novo" por meio do desenvolvimento da biologia molecular e celular. Certamente, não podemos considerar que o projeto de criar um "homem novo" seja uma novidade. Mas até agora associávamos esse projeto à liberdade e à capacidade do ser humano de construir o seu próprio futuro a partir delas. O termo "homem novo" se associava a uma regeneração moral, política, social ou cultural, isto é, a transformações em âmbitos que transcendem a ordem natural. A novidade da biologia sintética é que ela vem associada a uma naturalização do ser humano que translada o âmbito da intervenção ao controle ou à modificação da sua evolução natural, precisamente como chave essencial da transformação e da mudança social. Ao remontar todos os fenômenos do que genericamente se poderia denominar como âmbito do espírito (linguagem, consciência, moral, cultura, etc.) à sua base biológica e, em última instância, genética, pensa-se que é mais eficaz e direto agir sobre a genética para produzir mudanças no ser humano de ordem também social e cultural. Isso tem verossimilhança? É evidente que estamos muito longe de desentranhar como se produz o desdobramento do genoma ao longo da ontogenia, e o sonho de produzir modificações no âmbito do espírito (sociedade e cultura) por meio de mudanças genéticas não passa de um sonho, mas, para os defensores dessa intervenção, tratar-se-ia de uma dificuldade em médio ou longo prazo, superável por meio do desenvolvimento de novas ciências: a biologia evolutiva, a psicologia, as ciências cognitivas, as neurociências, as ciências da computação, etc. Além disso, embora o desenvolvimento atual dessas ciências não permita nem uma previsão, nem um controle dos resultados, esse não parece ser um obstáculo para continuar intervindo na ordem genética e vinculando tal intervenção a promessas pouco críveis de superação do homem pelo homem.
IHU On-Line – Que implicações éticas surgem dessa autopoiesis?
José Antonio Zamora – Temos que considerar, em primeiro lugar, que a possibilidade de projetar um ser humano (sua consciência, sua moral, seu pensamento, sua vontade, etc.) a partir de uma intervenção em sua dotação genética está muito longe de ser certa. O que não quer dizer que o projeto de intervenção na dotação genética do ser humano com fins eugênicos ou econômicos não tenha, ele mesmo, implicações morais, assim como teriam os efeitos não desejados ou colaterais de tal intervenção, embora não se obtenha o seu objetivo pretendido. Para este último, creio que o princípio de precaução é imprescindível, ainda mais quando se trata de modificações que afetarão futuros seres humanos. Mas, para além de um julgamento moral sobre os riscos não reconhecíveis com relação à dotação genética dos indivíduos, é preciso dizer que o próprio projeto de planejar geneticamente futuros seres humanos e, a partir daí, determinar a sua conduta e o seu pensamento é o reflexo de uma vontade de poder desmedida, ela mesma moralmente condenável, pois atenta contra a dignidade dos outros e a sua autonomia.
IHU On-Line – De que forma conceitos como liberdade e determinismo podem ser relidos a partir da experiência do pós-humano?
José Antonio Zamora – Eu não sei se é correto falar de pós-humano para se referir a seres humanos com um código genético modificado. Em todo caso, uma determinação genética da conduta humana está longe de ser um fato provado. Isso também pode ser transferido para uma dotação genética modificada, embora tal modificação pudesse pressupor um grau de condicionamento heterônomo eticamente inadmissível, exceto em raras exceções de caráter terapêutico.
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