terça-feira, 12 de novembro de 2013

A esquerda de direita está no poder

É uma constatação cruel mas necessária: atualmente, existem dois partidos de direita na França. Um partido de tendência neofascista, a UMP, ao tempero FN; e um partido neoliberal que ainda usa o nome socialista, mas só por preguiça.

Gérard Mordillat

Gérard Mordillat

O senhor Valls, por sinal, sugeriu a mudança do nome, consciente de que o termo «socialista» é atualmente vazio de sentido para ele e seus assemelhados, como o termo «gaullista» para os senhores Sarkozy, Copé, Fillon e consortes. Aliás, a propósito dos socialistas, tornou-se banal falar de «a esquerda de direita», o que obriga os comentaristas a distinguir certas declarações individuais como de «socialistas de esquerda». Haveria, portanto, socialistas que recusam o próprio nome de socialistas – homens de direita disfarçados de homens de esquerda, se se prefere – e socialistas que, contra a maioria de seu próprio partido, tentam preservar a herança de Jaurès.
Quer dizer, a confusão governa. Nas eleições municipais que se anunciam, essa confusão corre o risco de aumentar, pois, em Paris, de qualquer jeito, o PCF decidiu apresentar uma lista comum, desde o primeiro turno, com o PS. Mais com qual PS?
Com o daqueles que têm assento no governo ou com alguns irredutíveis para os quais o «socialismo», segundo Jaurès, trabalha «para a realização da humanidade». Uma humanidade que «ainda não existe ou apenas se insinua. No interior de cada nação, ela está comprometida, rachada, pelo antagonismo de classe, pela inevitável luta entre uma oligarquia capitalista e o proletariado. Só o socialismo, absorvendo todas as classes na propriedade comum dos meios de trabalho, resolverá esse antagonismo e fará de cada nação, enfim reconciliada com consigo mesma, uma parcela da humanidade».
À luz dessas palavras e de seus atos é que o senhor Hollande é socialista? É que o senhor Moscovici também o é? E o senhor Valls? E o senhor Strauss-Kahn? E o senhor Sapin? E o senhor Cahuzac, que recusa a luta das classes? E o senhor Lamy? E todos esses ministros tão ansiosos para participar da parada na universidade de verão do Medef e preferindo mostrar-se desanimados quando se trata de circular pelas aleias da Fête de l’Huma [festa do jornal L'Humanité]? E… e… e… etc.
Não se pode, naturalmente, colocar todos os socialistas no mesmo saco Vuitton. No plano municipal, é incontestável que os eleitos socialistas trabalham sem reservas para melhorar a sorte de seus concidadãos, para tentar tornar-lhes a vida mais fácil, para desenvolver as atividades artísticas e culturais, etc. Penso notadamente nas ações levadas a efeito nos 11 e 20 distritos. Sem dúvida, estes socialistas aí fazem o que podem e fazem parcialmente o que é preciso, pois poderiam fazer mais em relação à moradia, mas eles agem. Agora, se colocamos o nosso interesse nos membros «socialistas» do governo, o balanço é todo outro. A lista de renegações, faltas, traições é tão longa que seria fastidioso detalhar. Apenas para lembrar: a assinatura do tratado Merkozy, a separação de fachada entre os bancos de depósito e os bancos de negócios, a ausência de um reajuste significativo do Smic [salário mínimo], o abandono da luta histórica da classe operária pela diminuição do tempo de trabalho, o adiamento da idade de aposentadoria, a ruína confirmada do hospital público, a ausência de lei para impedir as dispensas por razões financeiras, a escolha do capital contra o trabalho, Florange, PSA, etc. Chega, a corte está cheia!
A armadilha está aí.
Se votamos pelo socialismo «municipal» e, desse modo, por milagre, o partido da rosa evita assim a derrota anunciada, o governo verá nisso a adesão dos cidadãos à sua política; ao contrário, se é a Berezina, os mesmos socialistas «de governo» dirão que esse voto é sem significação, senão que puramente local, e continuarão com sua insuportável política. Num caso como no outro, o eleitor será roubado em seu voto, como foi após o referendo a propósito do tratado constitucional rejeitado por uma enorme maioria de franceses (incluída aí uma maioria de militantes socialistas) e repassada ao Parlamento nos mesmos termos sob o nome de tratado de Lisboa, com o apoio maciço dos eleitos socialistas. Uma denegação da democracia que «nem toda a água do mar poderia apagar», disse Lautréamont.
Mas tudo isso é sem importância.
A urgência seria impedir o Front National, nas próximas eleições municipais e europeias, de votar útil. E, desde já, o coro dos «socialistas» de governo entona a pleno pulmão a necessidade, que faz lei. Mas, ao mesmo tempo, quando os cidadãos não votam segundo o desejo dos «socialistas» de governo, seu voto é desprezado, anulado; mas, ao mesmo tempo, o senhor Valls tem proposta e até mesmo uma ação em perfeito acordo com as ideias da senhora Le Pen, de Ciotti, Guéant, Hortefeux e dos outros, acrescentando a isso a hipocrisia de expulsar, de perseguir em nome da «humanidade».
Antes de votar, se colocarmos a questão: que temos em comum com os «socialistas» de governo? A resposta é mortal: nada. Que eles têm em comum com os senhores Sarkozy, Copé, Fillon e seus amigos? A resposta é assassina: quase tudo, fora algumas nuanças sobre o ensino, a pesquisa e a justiça. O que os distingue são apenas posturas no grande teatro da política espetáculo. Uns jogam a ser de esquerda, os outros a ser de direita, mas todos cantam em coro a arenga thatcheriana «não há alternativa», são os apologistas do capital, da propriedade privada. Ninguém pode ter esquecido a primeira página estupefaciente do Paris Match em que François Hollande e Nicolas Sarkozy pousavam lado a lado, com o mesmo terno, a mesma atitude, defendendo à uníssono o sim ao referendo. Dois gêmeos saídos do mesmo ovo neoliberal, exibindo a mesma arrogância, o mesmo desprezo pelos cidadãos, esses rebaixados, esses rústicos, cujo voto era organizado para divertir a galeria.
Então, como poderíamos, uma vez mais, votar útil, ainda confiar nos «socialistas» de governo?
Nós não podemos. Não podemos mais. Não podemos ser ao mesmo tempo os críticos mais determinados e os aliados de circunstância dos socialistas municipais que, por seu silêncio – de fato –, fazem perdurar uma política abertamente de direita, antissocial e contra a seguridade social. Em nome de não sei qual moral de circunstância, a confusão não deve ser cultivada, não  pode mais ser. Ela não está mais em questão. Hoje em dia, os «socialistas» de governo não são mais simplesmente falsos irmãos, nem adversários, mas inimigos (de classe) que devemos enfrentar, custe o que custar. Uma cadeira no conselho municipal de qualquer cidade que seja não vale que abdiquemos de nossas convicções, de nossa vontade de transformar o mundo e de realizar a humanidade que Jaurès desejava. Valer dizer que é preciso ter a coragem de romper claramente com esse «socialismo» em pele de coelho, que é feito de demagogia e mentiras. Essa ruptura política é salutar mesmo para nossos camaradas socialistas, esses militantes espremidos entre a aflição e a indignação com isso que se pratica hoje em dia na França em nome do «socialismo». As posições são claras: os «socialistas» de governo são descaradamente um partido de direita e, nos cabe incarnar a esquerda com atos, deixar de ser amáveis e compreensivos, e nos endereçar contra eles e suas réplicas de l’UMP-FN. Como diria o outro: a mudança é agora!
Gérard Mordillat é escritor e cineasta

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