Uma amiga e colega professora postou numa rede social na tarde desta 2a. feira um texto em tom de
desabafo. Depois de mais de duas horas de trânsito entre a USP Leste, em Ermelino Matarazzo,
zona leste, e o bairro da Lapa, na zona oeste, ela, de forma bem espirituosa, passou a agradecer
a todos os envolvidos.
Wagner Iglecias
Agradeceu “de coração” a JK, a Prestes Maia e a todos os responsáveis pelo caos que o paradigma rodoviário legou a São Paulo. Agradeceu ainda as competentes políticas de mobilidade urbana desenvolvidas pelo PSDB nos seus 20 anos governando o estado, bem como lamentou a Marginal Tietê duplicada e os trens superfaturados da CPTM. E antes que qualquer tucano a acusasse de petista, que é o padrão-resposta típico dos tucanos quando alguém critica as gestões daquele partido, ela agradeceu à política de desoneração do IPI dos carros feita pelo governo Dilma, “na direção do desenvolvimento que queremos”, para usar suas palavras.
Fui lá e comentei o post, acrescentando que faltou agradecer a Lula. Afinal, desde as câmaras setoriais do ABC, na década de 1990, viemos consolidando esse capitalismo automotivo que o país vive hoje. Câmaras que mais do que garantir o emprego dos trabalhadores numa época de terrível crise econômica, parecem, passados tantos anos, terem feito parte do compromisso de classes dos quais ele próprio, Lula, e em boa medida o PT, são originários. Afinal Lula e o novo sindicalismo nacional surgiram para a cena política numa época em que a vanguarda do capitalismo brasileiro situava-se na Via Anchieta, no ABC paulista. E essa aliança foi um dos pilares dos governos petistas.
Somado o petismo a JK, aos Prestes Maias, aos Malufs, aos tucanos e a tantos outros governantes, todos acabaram contribuindo para que a civilização do asfalto prevalecesse largamente neste país. Os resultados agora estão ai, com nossas cidades, as médias inclusive, inchadas de automóveis, sem que um modelo alternativo de mobilidade urbana tivesse sido pensado, tanto pelo Estado quanto pela sociedade, nesses anos todos. A pax lulista dos anos 2000, em que o ganha-ganha de empresários e consumidores prevaleceu e deixou a todos felizes, foi a cereja deste bolo indigesto. Mas no final alguém teria de perder. Provavelmente perdemos todos, com o colapso de nossas cidades.
Mas se um dia a ponta-de-lança do capitalismo nacional foi o ABC paulista, onde ela estaria hoje? Provavelmente nos espaços virtuais dos mercados financeiros e na fronteira agrícola do centro-oeste brasileiro. Deixando os mercados de lado, com todos os constrangimentos com que emparedam o Estado, e voltando a pensar no setor produtivo, a pergunta que fica é: o que mudou? Que aliança de classes pode estar por trás do agronegócio de exportação? Ou nem isso existe mais, e tudo se resumiria ao apoio eleitoral e parlamentar, em troca de subsídios, do setor mais dinâmico de nossa economia aos governos de turno? E mais: se por motivos óbvios caos urbano na escala em que vemos hoje em nossas grandes metrópoles o agronegócio não há de provocar, que impactos cotidianos pode trazer às regiões do campo intensivamente utilizadas para a produção monocultora de larga escala destinada à exportação?
Entre a indústria automobilística de meados do século XX e o latifúndio sojeiro deste século XXI o Brasil continua preso ao paradigma produtivista, e soluções alternativas parecem apenas discursos de campanha, sem conseqüências concretas. O que resta ao cidadão comum é protestar, entre o tom indignado e o espirituoso, contra um estado de coisas que parece imutável. Ou, pensando bem, que muitas vezes insinua-se que só tende a mudar para pior.
Wagner Iglecias é doutor em Sociologia e professor do Curso de Graduação em Gestão de Políticas Públicas e do Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina da USP.
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