quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Movimento de rua transforma o cenário político da Ucrânia

Ucranianos vão às ruas para protestar contra o presidente

Piotr Smolar
Protesto termina em confronto entre manifestantes e policiais em frente ao Gabinete Ministerial da Ucrânia, em Kiev. Ativistas pró- Europa tentaram invadir o prédio do governo, mas foram barrados pelas autoridades que chegaram a usar gás lacrimogêneo
No domingo (1º), a fúria levou às ruas centenas de milhares de ucranianos, que se reuniram no centro de Kiev para reivindicar a associação de seu país à União Europeia e protestar contra a violência policial ocorrida 48 horas antes.
Passados nove anos da Revolução Laranja, que havia impedido a eleição fraudulenta de Viktor Yanoukovitch à presidência, os manifestantes agora protestam em massa contra o mesmo homem, que está no comando de um país mais abalado do que nunca. O objetivo deles é impedir que mais uma vez roubem seu futuro.
Os ucranianos pareciam estar em uma depressão democrática profunda. A desistência do acordo de associação com a União Europeia por parte do presidente foi uma grande traição para os manifestantes e serviu de catalisador. Ela reavivou o fantasma de uma Ucrânia subserviente a Moscou, de uma Ucrânia condenada por seus dirigentes ao marasmo subvencionado, à corrupção, aos pequenos acordos entre amigos poderosos. A violência policial ocorrida na sexta-feira à noite contra milhares de manifestantes chegou a esboçar um possível destino como o de Belarus, onde os cassetetes se tornaram rotina para o governo central. Por enquanto, não é o caso.
A enorme crise de legitimidade do presidente Yanukovitch não pode ser tratada como um simples acesso de fúria popular. Ela deixa o regime diante de poucas opções: uma repressão irracional ou improváveis concessões políticas, fora o sacrifício de alguns peões.
Após vários meses de um consenso inédito entre o governo e a oposição a respeito da associação à UE, cada um parece estar de volta a seu lugar, atribuído durante a Revolução Laranja de 2004. O confronto retornou. Às vezes no sentido literal do termo, a exemplo desses ativistas fervorosos escondidos atrás de máscaras, que tentaram invadir a sede presidencial.
Os líderes da oposição pediram para os manifestantes não responderem às "provocações". Um deles, Arseni Yatseniuk, alertou contra a suposta vontade de Viktor Yanukovitch de instaurar o estado de exceção, usando os tumultos como pretexto. Mas será que os líderes da oposição estão realmente orientando a fúria popular ou estariam se contentando em traduzi-la em palavras?
O papel das redes sociais
Nesse movimento, as redes sociais tiveram um papel determinante, diferentemente de 2004. Foi através do Facebook e do Twitter que as imagens da repressão policial circularam, na quarta-feira. Foi através deles que o movimento EuroMaidan (criado em cima do nome da Praça da Independência, "Maidan" em ucraniano) se propagou. Foi através deles que se convocaram os protestos. É notável a semelhança com a febre cívica que tomou conta de Moscou na ocasião das fraudes eleitorais de dezembro de 2011.
Esse movimento de protestos é algo espontâneo, visceral. Muitos jovens que estão indo às ruas não têm nenhuma lembrança da Ucrânia comunista. Sua irritação se deve à inércia que paralisa o país. Mas, sem líderes, nada garante que essa mobilização vá durar. Tanto que, com exceção do boxeador Vitali Klitschko, novato na política, os líderes da oposição não têm crédito. Os ex-"laranjistas" desperdiçaram tantas oportunidades quando estiveram no poder que foram os principais responsáveis pela volta de Viktor Yanukovitch à presidência, em fevereiro de 2010.
Mas essa mobilização excepcional está transformando o cenário político ucraniano ao permitir que a oposição apresente uma frente unida e deixe de lado, por enquanto, a questão de sua liderança. Os oradores exigiram, além da demissão do ministro do Interior, eleições presidenciais e parlamentares antecipadas.
Os acontecimentos do último fim de semana podem vir a acentuar as divisões dentro do Partido das Regiões (situação). Vários deputados poderiam sair desse partido nos próximos dias, sendo que ele sozinho não possui maioria na Rada (Parlamento ucraniano).
Seria possível uma nova coalizão? A oposição clamava pelo bloqueio do funcionamento das instituições centrais, na segunda-feira (2), e não por uma briga no Parlamento. Resta observar a atitude dos "siloviki", os responsáveis pelas estruturas de segurança. O enorme nervosismo policial desde sexta-feira pode revelar divergências entre autoridades sobre a conduta a se manter.
Yanukovitch enfraquecido
Uma das chaves para a compreensão da Ucrânia moderna é o pluralismo oligárquico, que a diferencia da Rússia. A diversidade na cobertura televisiva das manifestações é prova disso. Um dos acionistas do canal Inter TV, favorável ao movimento, não é ninguém menos que Serhi Liovochkin, que, até a noite de sexta-feira, era o chefe da administração presidencial. Sua demissão, pouco após os episódios de violência policial, é um sinal importante das dissensões entre as elites.
Na Ucrânia, ninguém pode aspirar a um monopólio político, econômico ou midiático, ao contrário da Rússia. Só que Viktor Yanukovitch e seu clã, muito privilegiado nos últimos três anos, provocam a irritação de parte dos poderosos, estejam eles de olho ou não na UE. É pouco provável que Rinat Akhmetov, o bilionário de Donetsk, que foi o financiador do Partido das Regiões, vá defender o presidente a qualquer preço. A mesma dúvida vale para Dmytro Firtash, homem-chave do setor energético.
Yanukovitch saiu muito enfraquecido do episódio de Vilnius. Ele deu as costas para a UE comportando-se de forma gananciosa. Esse burocrata flexível, mas sem calibre, durante meses se mostrou um convicto pró-UE, mas de última hora preferiu os interesses a curto prazo –o dinheiro prometido por Moscou– à longa e exigente caminhada na direção da União Europeia. Ele deu preferência à opacidade e ao conforto dos seus –seu filho Alexandre é dono de uma das fortunas ascendentes do país– no lugar de uma promessa de desenvolvimento baseado em normas modernas. Ainda que o custo econômico do acordo de associação tenha sido muito subestimado pela própria União Europeia.
É esse povo traído que está saindo às ruas. A multidão não representava os 45 milhões de ucranianos, que sabemos serem muito divididos do ponto de vista geográfico e linguístico. Mas ela era a parcela mais esclarecida no plano cívico, a mais ativa. E a mais determinada.

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