Os limites do neodesenvolvimentismo expõem um paradoxo curioso: governos pós-neoliberais, comprometidos programaticamente com o crescimento da economia e com a redistribuição de renda, preservaram e reforçaram nos últimos dez anos, os pilares do Estado neoliberal no Brasil.
Giovanni Alves
Na verdade, a persistência do Estado neoliberal no Brasil se contrasta com a perspectiva de mudança social alimentada pelo capitalismo neodesenvolvimentista. Nesse sentido, algumas observações metodológicas tornam-se necessárias: primeiro, distinguir heuristicamente, de um lado, governo e, de outro lado, Estado político do capital. Depois, caracterizar o Estado político em sua etapa desenvolvida como sendo constituído por um Estado restrito ou sociedade política, incluindo nessa dimensão restrita, sua estrutura burocrática; e por um Estado ampliado ou sociedade civil e seu sociometabolismo. Estas ferramentas conceituais são importantes para desvelarmos criticamente os limites e os paradoxos do neodesenvolvimentismo, primeiro, como novo padrão de desenvolvimento capitalista no Brasil e depois, como frente política inspirada na ideologia do lulismo.
Nossa hipótese é que nos últimos dez anos de Lula e Dilma tivemos governos pós-neoliberais propriamente ditos que adotaram programas de crescimento da economia com aumento do gasto público e redistribuição de renda. É nesse sentido mais incisivo da programática política que eles podem ser considerados governos pós-neoliberais distinguindo-se, por exemplo, dos governos neoliberais da década de 1990. Desprezar a particularidade da nova conformação política neodesenvolvimentista, reduzindo-a, no plano de governo, ao neoliberalismo, como faz a extrema esquerda, é não apreender as nuances da luta de classes e os tons de cinza da dominação burguesa no Brasil.
Na verdade, as políticas de transferências de renda e gasto público visando diminuir as desigualdades sociais e fortalecer o mercado interno, distingue, por exemplo, o projeto neodesenvolvimentista do projeto neoliberal propriamente dita adotado na década de 1990 por FHC. Existem também diferenças entre neodesenvolvimentismo e neoliberalismo com respeito a políticas de combate a crise do capitalismo global, um tema importante tendo em vista que, o período do lulismo é o período da crise estrutural do capital. A frente política do neodesenvolvimentismo no ultimo governo Lula e Dilma recusou-se, por exemplo, a adotar políticas de austeridade, embora mantenham o tripé macroeconômico neoliberal (metas de inflação, câmbio flexível e superávit primário). Finalmente, existem diferenças entre a política do neodesenvolvimentismo e a política no neoliberalismo no plano geopolítico internacional. O primeiro – a diplomacia do neodesenvolvimentismo – alinhou-se aos BRICS e adotou uma postura independente com respeito à política exterior norte-americana (o que a distingue do alinhamento automático com os EUA operada pela diplomacia dos governos neoliberais).
Por outro lado, observamos, ao mesmo tempo, que os governos pós-neoliberais de Lula e Dilma não alteraram essencialmente o metabolismo político do Estado neoliberal instaurado na década de 1990 no Brasil, seja em sua dimensão restrita, como sociedade política e estrutura burocrática; seja em sua dimensão ampliada: a sociedade civil e seu sociometabolismo. Enfim, os governos pós-neoliberais, imbuídos do espirito do lulismo e em nome da governabilidade, optaram pragmaticamente por reproduzir o Estado neoliberal herdado da década de 1990; e pior, preservar essencialmente o Estado brasileiro de feição oligárquico-burguesa oriundo da ditadura militar.
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As categorias “pós-neoliberal” e “neodesenvolvimentismo” que utilizamos para caracterizar o capitalismo brasileiro dos últimos dez anos, estão profundamente amesquinhadas em sua forma de ser pela força das trágicas circunstancias históricas de duas transições politicas conservadoras ocorridas no Brasil nos últimos trinta anos.
Primeiro, tivemos a longa transição para a democracia política ocorrida com a crise da ditadura civil-militar (1979-1985). Apesar da Constituição-cidadã de 1988, preservaram-se as estruturas da sociedade política oligárquico-burguesa com incrustações autocráticas (o livro O que resta da ditadura: a exceção brasileira, publicado pela Boitempo Editorial em 2010, organizado por Edson Teles e Vladimir Safatle expõe com clareza a persistência da exceção brasileira apesar da redemocratização politica ocorrida no país).
Depois, tivemos a “transição” política para um novo projeto de desenvolvimento capitalista ocorrido em 2002, após o débâcle do modelo neoliberal implantado na década de 1990 no Brasil. Apesar do caráter pós-neoliberal da intencionalidade política do governo Lula, preservou-se a morfologia política e social do Estado neoliberal no Brasil, herdado da ditadura militar e dos governos neoliberais. Enfim, a força da inércia histórica da ordem burguesa no Brasil com as particularidades concretas de objetivação do capitalismo brasileiro (colonial-escravista e prussiano-dependente de cariz hipertardio), colaborou para as “transações” conservadoras pelo alto, principalmente num país capitalista, elo mais forte do imperialismo na América Latina.
O fenômeno político do lulismo, com seu “reformismo fraco” sem confronto com o capital (como diria André Singer) significa, de certo modo, a afirmação da incapacidade efetiva da esquerda brasileira de cariz social-democrata (o PT, por exemplo) em refundar o Estado político brasileiro tendo em vista principalmente a débil correlação de forças social e política entre capital e trabalho na sociedade brasileira, corroída e corrompida em seu metabolismo social por trinta anos de ditadura militar (1964-1984) e neoliberalismo (1990-2002). O amesquinhamento do reformismo hipertardio brasileiro, sob o nome de neodesenvolvimentismo, é expressão da miséria social e política da sociedade brasileira incapaz de ir além da ordem burguesa senhorial. Enfim, nas condições históricas adversas de enfrentamento social com a ordem do capital, optou-se irremediavelmente pelo trágica linha do menor esforço, preferindo-se operar, em nome da governabilidade, o “reformismo fraco” nas margens estreitas do Estado neoliberal.
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É importante salientar um dos traço “virtuosos” do estilo político do lulismo: combater a miséria sem confronto com o bloco de poder hegemônico do capital. O lulismo é o espírito hegemônico do projeto da socialdemocracia no Brasil que visa hoje compatibilizar, nos marcos da ordem burguesa neoliberal, um projeto de redistribuição de renda e combate a pobreza extrema e pobreza sem confronto com o capital. As virtudes políticas indiscutíveis do lulismo compõem, ao mesmo tempo, os limites do neodesenvolvimentismo. Isto é, o que salientamos como sendo os limites do neodesenvolvimentismo é a incapacidade orgânica da frente política pós-neoliberal que governa o País há dez anos em promover investimentos sociais de amplo espectro na educação, saúde, transporte publico e efetuar reformas sociais capazes de resgatar a dívida social secular, tendo em vista, em última instância, a manutenção e preservação da forma política do Estado neoliberal no Brasil.
Por isso, com a explicitação dos limites do neodesenvolvimentismo, o governo Dilma adota políticas contestadas de privatização do patrimônio público visando operar a lógica da governabilidade do Estado capitalista, nas margens estreitas do Sistema da Dívida. Na verdade, como observa Maria Lúcia Fatorelli, do Movimento pela Auditoria-Cidadã da Dívida Pública, a exigência de crescentes volumes de recursos para o pagamento de juros e amortizações da dívida tem impedido a realização dos investimentos necessários, o que tem sido utilizado como justificativa para a contínua e inaceitável entrega de patrimônio estratégico e lucrativo. Portanto,
“para continuar alimentando o sistema da dívida em âmbito nacional e regional, o governo sacrifica o povo com pesados tributos, ausência de retorno em bens, serviços e investimentos, e ainda rifa o patrimônio público”.
Na verdade, a blindagem financeira do orçamento público, do neoliberalismo ao neodesenvolvimentismo, é a garantia de que o Estado neoliberal, herdado de Collor e FHC e preservado nos dez anos de Lula e Dilma, tem mesmo por função estabilizar o valor dos ativos das classes proprietárias que compõem o bloco de poder neoliberal. Ao comprometer-se na “Carta ao Povo Brasileiro” a respeitar os contratos e, portanto, a não contestar a legitimidade do processo de privatização ocorrido sob os governos neoliberais, o governo Lula, fez uma escolha imbuído de pragmatismo politico – traço visceral do lulismo –, visando buscar a governabilidade mantendo (e fortalecendo) a estrutura política do Estado neoliberal no Brasil.
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Na verdade, o Estado neoliberal no Brasil constituiu não apenas o sistema da dívida, salientado por Fatorelli, mas constituiu também, por exemplo, os parâmetros da gestão macroeconômica neoliberal da economia (o tripé constituído pelas metas de inflação, câmbio flexível e superávit primário); ou ainda o sistema político e o cipoal de controle do gasto público (por exemplo, a Lei de Responsabilidade Fiscal); e o sistema das mídias hegemônicas – os meios de comunicação de massa, o oligopólio do quarto poder midiático que manipula a opinião pública. Eis, deste modo, os elementos compositivos do sistema intocável de constrangimentos estruturais do Estado neoliberal. O Estado neoliberal ergueu-se sob a base oligárquico-autocrática da Estado político do capital herdado da ditadura civil-militar. Existe uma linha de continuidade do sistema de dominação burguesa oligárquico-autocrática instaurada pela ditadura-militar e o Estado neoliberal no Brasil, preservado pelos governos pós-neoliberais.
Portanto, sob os constrangimentos da mundialização do capital no elo mais forte do imperialismo na América Latina, os governos pós-neoliberais deixaram intactos, deste modo, o complexo de sistemas de poder hegemônico e dominação burguesa no Brasil instaurado pela ditadura militar e apropriados pelo neoliberalismo nos últimos cinquenta anos de civilização brasileira.
Entretanto, o Estado político do capital preservado e mantido pelos governos pós-neoliberais no Brasil sustenta-se não apenas nos elementos sistêmicos discriminados acima (sistema da dívida, sistema da macroeconomia neoliberal sistema político e sistema mediático), mas implica também a própria estrutura burocrática do Estado brasileiro e o sistema de controle do metabolismo social herdado da ordem neoliberal.
Portanto, nossa hipótese principal é que o limite crucial da economia política do neodesenvolvimentismo é a sua incapacidade de ir além da forma política do Estado neoliberal, o novo Estado político do capital nas condições históricas do capitalismo flexível. Na verdade, os governos pós-neoliberais de Lula e Dilma, não apenas preservaram e mantiveram a estrutura sistêmica do Estado neoliberal, mas a aperfeiçoaram, introduzindo, por exemplo, no corpus burocrático oligárquico do Estado brasileiro, novos modus operandi da modernidade flexível do capital (é o caso, por exemplo, da organização do trabalho da administração publica, a gestão flexível sob o espirito do toyotismo). Enfim, os governos pós-neoliberais mantiveram a estrutura orgânico-burocrática do Estado político, não alterando a dinâmica administrativa da máquina pública lastrada no poder do capital.
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É importante salientar que o Leviatã brasileiro mantem uma estrutura corporativa centralizadora que acumula vícios de praticas patrimonialistas sedimentadas em décadas de Estado oligárquico-burguês no Brasil. Embora os governos pós-neoliberais tenham buscado restaurar a estrutura administrativa do Estado brasileiro, sucateado durante a década neoliberal, ampliando, por exemplo, o quadro de funcionalismo publico, adotaram, ao mesmo tempo, a título de modernizar a maquina pública corrompida e ineficiente, métodos de gestão de matriz toyotista, informatização e centralização de processos de controle que reforçaram os vícios autocrático-burocráticos da máquina politico-estatal brasileira.
Deste modo, o lulismo optou por “modernizar o atraso”, recusando-se a promover uma democratização efetiva do aparelho estatal. Pelo contrário, observa-se a sobrevivência das antigas estruturas burocrático-administrativas do Estado brasileiro oriundo da ditadura militar. Como observou Gilberto Bercovici:
“a Constituição democrática de 1988 recebeu o Estado estruturado sob a ditadura militar (1964-1985), ou seja, o Estado reformado pelo Decreto-Lei 200/1967 no bojo do PAEG (Plano de Ação Econômica do Governo), elaborado por Roberto Campos e Octávio Gouvêa de Bulhões (11964-1967).”(“’O direito constitucional passa, o direito administrativo permanece’: a persistência da estrutura administrativa de 1967”, O que resta da ditadura, p.78)
Portanto, do Estado Novo varguista (1937-1945) à ditadura civil-militar (1964-1985), não se alterou em seu âmago burocrático, a estrutura da maquina estatal no Brasil que serve há séculos à reprodução da ordem burguesa autocrática. O Estado brasileiro, distante do território nacional-popular (que o diga a construção de Brasília em 1961), é a expressão histórica suprema do poder político centralizado do capital nas condições de um capitalismo dependente hipertardio que formou-se enquanto Estado-nação reagindo contra (e compondo-se, ao mesmo tempo) com oligarquias regionais patrimonialistas. Deste modo, cultivou-se uma cultura burocrática ambivalente que, se por um lado admite a corrupção e trafico de influência entre interesses oligárquicos parciais, por outro, adota procedimentos de racionalização da máquina estatal e modernização da gestão da administração pública que aprofundam a alienação do trabalhador público e dos cidadãos-usuários dos serviços públicos.
A modernização tecnológica e organizacional do Estado brasileiro contribuiu efetivamente para reforçar os traços autocráticos do metabolismo politico do poder estatal alienado dos cidadãos-usuários do serviços públicos. Na verdade, todas as subversões ocorridas na história brasileira, do Estado Novo de Vargas ao Estado autocrático-militar instaurado em 1964, aperfeiçoaram a máquina estatal, em vez de a despedaçarem ou democratizarem. Os partidos que, cada qual por seu turno, lutavam pela supremacia, viam no ato de posse desse enorme edifício estatal a presa principal do vencedor, obcecado pelas figurações do inimigo, no limite, a própria nação, que precisa ser protegida contra si mesma – o povo, incontrolável e ameaçador.
Mesmo o neoliberalismo, ao manter a máquina burocrática, apesar de enfraquecê-la no tocante às políticas publicas, reforçou seus vieses de controle autocrático imbuído do imperativo gestionário. Os governos pós-neoliberais preservaram a máquina burocrático-militar, modernizando-a. Por exemplo, a adoção flagrante da gestão toyotista na administração pública é um exemplo de modernização conservadora do edifício estatal.
A Reforma Administrativa conduzida pelos governos neoliberais visava incorporar a lógica empresarial como prática administrativa do corpo burocrático estatal, mantendo-se no entanto, o modelo oligárquico na organização. O governos pós-neoliberais operam no interior do Estado neoliberal constituído a partir da Reforma Administrativa neoliberal. O caso do Poder Judiciário brasileiro é exemplar da modernização conservadora da res publica. Por exemplo, a adoção pelo CNJ (Conselho Nacional da Justiça) de práticas de gestão por metas, por exemplo, transformando tribunais em linhas de produção de sentenças, expressa o primado da gestão empresarial na coisa pública. Na verdade, o exemplo reforça o “princípio de subsidiariedade” incorporado na Constituição outorgada pelos militares em 1967 e 1968, que entendia o Estado como subsidiário da iniciativa privada. O próprio marechal Castelo Branco afirmou em sua mensagem ao Congresso Nacional em 1965 que desejava com a reforma administrativa, “obter que o setor público possa operar com a eficiência da empresa privada”.
A lógica de organização adotada pela modernização da administração pública sob a Reforma Gerencial inspirada em Bresser Pereira e preservada sob os governos pós-neoliberais incorporou o espírito da gestão empresarial que busca maximizar o lucro da empresa estatal, ao invés da persuasão do interesse público. Salienta Gilberto Bergovici (no livro O que resta da ditadura):
“A chamada ‘Reforma do Estado’ da década de 1990 não reformou o Estado [...] não modificaram a administração pública ainda configurada pelo Decreto-Lei 200/1967, apenas deram uma aura de modernidade ao tradicional patrimonialismo que caracteriza o Estado brasileiro.” (p.89)
Paulo Arantes, nesse mesmo livro, é mais incisivo ainda quando afirma:
“Do Banco Central ao Código Tributário, passando pela reforma administrativa de 1967, a constituição de 1988 incorporou todo aparelho estatal estruturado sob a ditadura”. (“1964, o ano que não terminou”, O que resta da ditadura, p.221)
Portanto, existe uma linha de continuidade candente, com respeito à organização estatal-burocrática, entre Estado neoliberal e ditadura civil-militar. A reforma gerencial do Estado ocorrida nos governos neoliberais da década de 1990 e herdado pelos governos Lula e Dilma, apenas confirmam a normalidade brasileira restaurada.
Deste modo, podemos caracterizar o Estado neoliberal no Brasil como sendo um Estado politico-oligárquico, produto de reformas administrativas de cariz modernista (como adotadas no governo FHC) que encontra-se constrangido pelos interesses do capital financeiro e pelos interesses privados do bloco de poder (empreiteiras e grandes empresas oligopólicas nacionais e internacionais do ramo industrial-financeiro, agro-industriais e dos serviços). Na verdade, o Estado neoliberal é uma tecnologia de poder que, como observou Paulo Arantes, destina-se a “garantir a segurança jurídica da plataforma de valorização financeira em que nos convertemos no quadro da atual divisão internacional do trabalho da acumulação” – segundo ele, um regime de acumulação sob dominância financeira marcado pela discricionariedade, pelo compadrio e pelo privilégio.
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O Estado neoliberal é um Estado político corrompido pelas próprias condições da acumulação capitalista que envolve cada vez mais o Estado nas estratégias de espoliação (acumulação por espoliação). Nas condições de crise de valorização, a transferência de renda para setores parasitários rentistas por meio do Estado neoliberal tornou-se crucial para o grande capital – nesse caso, o Estado neoliberal apresenta-se como verdadeira “máquina de sugar fundos públicos”.
A cultura estatal-burocrática constitutiva do Brasil moderno impediu que tanto a esquerda quanto a direita pudessem efetivar uma crítica contundente do Estado político do capital – inclusive de seu sistema de representação política (que não discutimos aqui). Ou ainda: do Estado do capital como sistema de controle do metabolismo social – o Estado ampliado –, que iremos tratar no próximo artigo, quando discutiremos as classes sociais no neodesenvolvimentismo. O que explica, de certo modo, a incapacidade – pelo menos no plano da programática social e política – de apreender uma alternativa sociometabólica ao capital como modo estranhado de controle social.
A esquerda estatista tornou-se expressão ideológica da incapacidade hegemônica de ir além do capital como modo de controle estranhado do metabolismo social. O melhor exemplo são os neokeynesianos que cultuam o Estado político para se contraporem às forças do mercado, colocando como força moral capaz de reformar ou humanizar o capitalismo. Eles não discutem, por exemplo, a “extinção” do Estado político, isto é, sua democratização radical. Pelo contrário, desprezam o metabolismo social estranhado que o Estado político representa em si e para si. Por outro lado, a direita oligárquica cínica, critica o Estado para afirmar o mercado como abstração alienada, ocultando que hoje o capitalismo acumula a maior parte de sua riqueza abstrata utilizando-se do Estado político. O Estado só é mínimo para o trabalho, mas é máximo para o capital.
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Portanto, a título de síntese, podemos caracterizar o Estado neoliberal brasileiro em sua dimensão restrita de sociedade política, incluindo a estrutura político-burocrática, como sendo constituído
- por um Estado oligárquico-corporativo que, a partir da década de 1990, fortaleceu-se como forma política, passando por um processo de modernização conservadora, caracterizada pela racionalização de procedimentos e controle, com introdução de sistemas informacionais e formas de gestão de cariz toyotista;
- por um Estado político constrangido pelo capital financeiro (o sistema da dívida pública) que mantém no cerne macroeconômico o tripé neoliberal: cambio flexível, metas de inflação e superávit primário. É importante salientar como pilar estrutural da nova ordem capitalista financeirizada, o sistema político e a Lei de Responsabilidade Fiscal, que constrange o orçamento público priorizando, deste modo, o pagamento da dívida pública;
- por um Estado político burguês-patrimonialista permeável aos grandes interesses privados de grupos econômicos e políticos. Por exemplo, as renúncias fiscais da frente política do neodesenvolvimentismo contribuíram para enfraquecer a capacidade do Estado brasileiro de mudar a dinâmica do reformismo fraco atendendo a demandas sociais.
Por ser permeável aos interesses dos grupos econômicos privados, o Estado neoliberal fragiliza-se como res publica. Por exemplo, a ministra-chefe da Casa Civil, Gleisi Hoffman, diante das críticas da oposição sobre o descontrole fiscal do governo Dilma, afirmou em entrevista no jornal Folha de São Paulo de 05/11/2013:
“O problema do fiscal não é a despesa, é o baixo crescimento, conjugado com uma política agressiva de desonerações ao setor privado.”
Diz ela que em 2012 o impacto da desoneração federal foi de R$ 49,8 bilhões, ante os R$ 10,2 bilhões registrados em 2011. Em 2013, a desoneração federal vai atingir os R$ 80 bilhões! Ao mesmo tempo, manteve-se em dez anos o gasto com pessoal (4,6 em 2003 e 4,3 em 2013) – o que expõe a lógica da lean production [produção enxuta] aplicada ao Estado político; e aumentou-se a transferência de renda para programas de combate a pobreza e pobreza extrema, de 7,1% para 9,5% do PIB – o que explica, deste modo, o capital político do lulismo cuja lastro social encontra-se no proletariado pobre, base eleitoral hoje do Partido dos Trabalhadores.
Giovanni Alves é doutor em ciências sociais pela Unicamp, livre-docente em sociologia e professor da Unesp, campus de Marília. É pesquisador do CNPq com bolsa-produtividade em pesquisa e coordenador da Rede de Estudos do Trabalho (RET), do Projeto Tela Crítica e outros núcleos de pesquisa reunidos em seu site giovannialves.org. É autor de vários livros e artigos sobre o tema trabalho e sociabilidade, entre os quais O novo (e precário) mundo do trabalho: reestruturação produtiva e crise do sindicalismo (Boitempo Editorial, 2000) e Trabalho e subjetividade: O espírito do toyotismo na era do capitalismo manipulatório (Boitempo Editorial, 2011).
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