Durante 27 anos conheci Nelson Mandela só por sua fama. Eu o tinha visto uma vez no início dos anos
1950, quando ele foi à minha faculdade de pedagogia para ser jurado em um concurso de debates.
Depois disso, só fui encontrá-lo em 1990.
DESMOND TUTU
DESMOND TUTU
Quando Mandela saiu da prisão, muitas pessoas temiam que ele revelasse ter pés de barro. A ideia de que pudesse confirmar sua reputação parecia boa demais para ser verdade.
Espalhou-se um cochicho dentro do CNA [Congresso Nacional Africano, partido de Mandela] de que ele tinha sido muito mais útil na prisão do que seria fora dela.
Quando ele saiu, aconteceu a coisa mais extraordinária. Embora muitos da comunidade branca ainda o tachassem de terrorista, Mandela tentou compreendê-los. Seus gestos comunicavam sua posição com mais eloquência que palavras. Por exemplo, chamou seu carcereiro branco para ser convidado VIP em sua posse na Presidência. Também convidou à residência oficial as viúvas de líderes brancos.
Betsie Verwoerd, cujo marido, HF Verwoerd, foi assassinado em 1966, não pôde ir porque estava doente. Ela vivia em Oranje, onde os africânderes [descendentes dos colonizadores holandeses] se congregavam para viver com exclusividade. E, como ela não pôde ir, Mandela deixou tudo de lado e foi tomar chá com ela, ali, naquele lugar.
Ele dizia a respeito dos africânderes: "Dá para entender muito bem o que devem estar sentindo." Mandela fez um gesto de conciliação com eles usando o "springbok" (uma espécie de gazela sul-africana), símbolo da equipe nacional de rúgbi, rejeitada por muitos negros por ser um esporte ligado aos brancos.
O golpe de mestre de Mandela foi na final da Copa do Mundo de rúgbi, em 1995, quando ele entrou no campo usando o agasalho da seleção. Quase qualquer outro líder político teria parecido desastrado fazendo isso, mas Mandela o fez com elegância.
O público inteiro, composto provavelmente por 99% de brancos, explodiu em gritos de "Nelson! Nelson!". Foi extraordinário. E quem teria acreditado que o povo dos "townships" [subúrbios negros] comemoraria uma vitória sul-africana no rúgbi?
É claro que já o vi com raiva. Após o massacre de Boipatong, em 1992, em que morreram 42 pessoas, o CNA abandonou as negociações, e Mandela ficou lívido. Ele afirmou que os serviços de inteligência tinham avisado [o então presidente] FW de Klerk que algo fora do comum ia acontecer. Não sei se De Klerk ignorou o aviso. Madiba disse que estava claro que vidas negras não significavam nada para eles.
Em outra ocasião, Mandela me disse que, quando ele e De Klerk estavam na cerimônia do Nobel da Paz, em Oslo, algo o deixou profundamente aborrecido. Havia um grupo cantando "Nkosi Sikelel' iAfrika", visto como o hino da luta pela libertação, e De Klerk e a mulher dele continuaram a conversar durante o hino --não demonstraram respeito.
Mas sua raiva nunca superava sua paciência ou sua capacidade de perdão. As pessoas diziam "vejam o que ele conquistou em seus anos no governo --que desperdício foram aqueles 27 anos passados na prisão".
Mantenho que seu período na prisão foi necessário porque, quando foi preso, estava cheio de raiva. Mandela era relativamente jovem e tinha sido vítima de um erro da Justiça; ele não era um estadista, disposto a perdoar --era o comandante em chefe da ala armada do partido, que estava inteiramente disposta a recorrer à violência.
O tempo que ele passou na prisão foi crucial. O sofrimento torna algumas pessoas amargas, mas enobrece outras. A prisão virou uma prova de fogo que queimou tudo o que era ruim. As pessoas nunca podiam dizer a Mandela: "Você fala em perdão da boca para fora. Você não sofreu. O que sabe sobre perdão?" Vinte e sete anos lhe conferiram essa autoridade.
Um dos maiores traumas de sua vida foi o que aconteceu entre ele e Winnie [ex-mulher]. Mandela realmente a amava. A mágoa de terem se separado depois de ele sair da prisão foi profunda.
Foi maravilhoso ele ter conhecido Graça, mas a gente se entristece um pouco, porque Winnie passou por tanta coisa, e teria sido o final perfeito se os dois tivessem vivido felizes para sempre.
A melhor maneira de recordar Mandela é pegar aquilo que ele ajudou a criar e converter em sucesso. Mandela tinha clareza quanto ao fato de que ninguém é indispensável. Ele fazia questão de destacar que ninguém era maior que o movimento. Mas sabemos que não era assim.
Qualquer pessoa que se torna líder, em qualquer lugar do mundo, sabe que ele é uma referência. E precisa perguntar a si mesmo: o que posso aprender com ele?
DESMOND TUTU, 82, é arcebispo emérito e Nobel da Paz pela luta contra o apartheid
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