domingo, 23 de dezembro de 2012

Furtado e Niemeyer: Ambivalências dos nossos melhores estrategistas espaciais





“Somente uma jogada de craques poderia burlar o verdadeiro muro da defesa inglesa. Foi uma jogada de gênio do Tostão, pela esquerda, a Pelé que entregou de bandeja a Jair. Desta vez, Banks, o melhor goleiro do mundo, nada pôde fazer.” É esta a descrição de João Saldanha sobre a grande vitória do Brasil em cima da seleção da Inglaterra no dia 08 de Junho na copa de 1970.

Luciana Itikawa
Furtado e Niemeyer: Ambivalências dos nossos melhores estrategistas espaciais
DOIS DOS MELHORES ESTRATEGISTAS ESPACIAIS E AS GEOMETRIAS DO ATRASO
"Somente uma jogada de craques poderia burlar o verdadeiro muro da defesa inglesa. Foi uma jogada de gênio do Tostão, pela esquerda, a Pelé que entregou de bandeja a Jair. Desta vez, Banks, o melhor goleiro do mundo, nada pôde fazer." É esta a descrição de João Saldanha sobre a grande vitória do Brasil em cima da seleção da Inglaterra no dia 08 de Junho na copa de 1970.
São poucos os momentos na nossa história que nos damos o direito de sairmos do nosso "complexo de vira-lata"(3) para alçarmos à vanguarda da cultura e do pensamento. Nem sempre essa sensação sublime de plenitude coincidiu com o desenvolvimento econômico do país e é sobre a interlocução silenciosa entre dois demiurgos(4) que este texto trata.
Pelé é certamente o superlativo, mas foi a arquitetura tática de João Saldanha - meias, laterais e pontas-de-lança, que faz da Copa de 1970 (2) a nossa lembrança mais afetiva. Oscar Niemeyer, nesse sentido, é uma de nossas vaidades mais cultivadas: suas idéias estão reproduzidas nas colunatas das periferias, no logotipo de carro popular, no emblema de uma marca de aparelho de rádio. Celso Furtado, contudo, é mais conhecido nos círculos restritos das ciências humanas, e sua influência sobre toda uma geração de planejadores brasileiros e estrangeiros ainda é controversa.
Bases
Seria difícil afirmar que o gênio do Niemeyer afloraria ou seria reconhecido mundialmente em tempos de crise. Contudo, as bases materiais que deram as condições extraordinárias para que ele projetasse os edifícios da capital de um país foram construídas alguns anos antes, em boa medida a partir da contribuição original de Furtado sobre a teoria cepalina.
Planejamento, técnica e território são simultaneamente variáveis caras a parte dos economistas e arquitetos-urbanistas. Parte, porque tanto Furtado como Niemeyer são do seleto grupo das melhores espécies de estrategistas espaciais. É do economista, e não do arquiteto, esta frase: "Para aplicar a inteligência para ordenar sua cidade, tem que ter um plano, então me pus a estudar planejamento". (BELLUZZO, 2004)
Nem todo economista ou arquiteto pode ser considerado um planejador, basta perguntar a qualquer taxista das grandes cidades brasileiras. Futebol, economia e trânsito são moedas correntes para as divergências mais inflamadas dos brasileiros e pelas quais padecemos das piores enfermidades cardíacas.
Princípios
Furtado não foi o primeiro que introduziu a especialização geográfica como princípio básico ordenador das atividades econômicas, mas foi certamente ele que o sofisticou em teoria e prática. Niemeyer, felizmente, não se tornou um economista, mas foi justamente por sua amizade declarada por Fidel e sobre suas opiniões particulares sobre a economia política americana que impediram, muitas vezes, que ele conseguisse visto para dar suas palestras nos Estados Unidos.
São estrategistas espaciais porque nem todo arquiteto projeta na escala 1:500, e nem todo economista pensa as assimetrias econômicas como assimetrias espaciais. A visão de ambos a "olhos de pássaro" permitiu que eles pensassem e planejassem o território brasileiro a partir da perspectiva da democratização da riqueza e da cultura em ampla escala pelo espaço.
Plano Piloto
É de Lúcio Costa o Plano Piloto para Brasília, bem como é dele, baseado em algumas premissas de Le Corbusier, que as superquadras reproduzissem um ideal de convivência de diferentes classes sociais no térreo liberado por pilotis e adequadamente ajardinado. É de Niemeyer, contudo, a intervenção drástica na topografia daquele planalto para que a cobertura do edifício do Congresso Nacional coincidisse com a cota natural do terreno da Esplanada dos Ministérios.
Tal recurso arquitetônico só foi possível com a extensa dimensão de terreno à disposição de Niemeyer para permitir o Pitágoras perfeito composto pela altura do pé direito e o talude-rampa que desce suavemente da Esplanada até o primeiro piso enterrado do Congresso. Para quem olha da Rodoviária Central de Brasília, a Assembléia dos Deputados e o Senado emergem de um platô único na mesma cota de cada um dos ministérios. Quem poderia supor que tal equidade topográfica fosse reproduzida como prática política?
'Só de Sacanagem'
A irreverência de Niemeyer não poderia suportar tamanha ingenuidade: "O projeto de Brasília tinha os objetivos mais nobres, havia o sonho de que mudando a capital poderíamos mudar o país. Aí, quando os políticos se mudaram para Brasília, tudo voltou à mesma merda". (NIEMEYER, 2007a) Um dia, um arquiteto perguntou a Niemeyer porque ele teria construído um Senado sem janelas e ele respondeu: "Só de sacanagem"(5).
A possibilidade de um horizonte reinaugurado estava nos anseios de ambos, seja pela manipulação engenhosa do terreno, quanto pela construção de uma alternativa original de um projeto para o país.
O próprio deslocamento da capital do país do litoral para o interior, já era um esforço brutal para contrariar a diversidade no tempo e no espaço no processo de acumulação.
Desconcentrar
Desconcentrar as oportunidades era a questão central de Furtado para enfrentar as desigualdades no país. Em outras palavras, os esforços de acumulação deveriam traduzir-se no progresso da técnica e sua difusão democrática pelo território eram condições necessárias para superação do subdesenvolvimento.
Brasília foi, dentro dessa lógica, a própria experiência na prática que Furtado almejava como solução para os países subdesenvolvidos: adoção de tecnologia compatível com as bases produtivas do país, combinada com a inventividade dos brasileiros. Niemeyer declarara: "Era preciso simplificar, transformar soluções básicas, renunciar a materiais estrangeiros cuja importação acarretava dificuldades econômicas e alfandegárias. (...) Mas logo chegaram os candangos vindos do Nordeste. Passado algum tempo, eles substituíram os úteis, eficientes e prudentes técnicos americanos incapazes de improvisar. E, sem as dispendiosas apólices de seguros, subiram nos andaimes e trabalharam três vezes mais rápido". (PETIT, 1995)
Defensor da Cultura
É sobre a centralidade da criação, ao enfrentar os obstáculos brasileiros, que Furtado se torna defensor da cultura, emancipadora da sociedade. Anos mais tarde, ao se tornar Ministro da Cultura no Governo Sarney entre 1986-1988, ele elabora a primeira legislação brasileira de incentivos fiscais à cultura. A tecnologia em questão - o concreto armado - foi usada magistralmente por Niemeyer. A construção civil no final da década de 50, no momento da construção de Brasília, já havia se desenvolvido consideravelmente. Este setor mostrava seu intenso dinamismo nas ousadas construções das principais capitais do país - Rio de Janeiro, Belo Horizonte e São Paulo. O próprio Niemeyer já havia participado dos principais expoentes da arquitetura moderna na ocasião: o edifício para o então Ministério da Cultura no Rio de janeiro, em 1936; o conjunto de edifícios na Pampulha em Belo Horizonte, em 1939; e os edifícios em comemoração ao bicentenário da cidade de São Paulo, no parque do Ibirapuera entre 1951-1955.
"Não fosse a exploração ao limite dos recursos do concreto armado, Niemeyer iria ser confundido como mais um dos inúmeros arquitetos que reproduziram o legado da arquitetura moderna europeia "
Não fosse a exploração ao limite dos recursos do concreto armado, Niemeyer iria ser confundido como mais um dos inúmeros arquitetos que reproduziram o legado da arquitetura moderna europeia. Era nessa exploração que cabia fazer os cálculos necessários que desafia os arquitetos até hoje: responder à mecânica dos solos, desafiar as distâncias máximas entre apoios e nos balanços; elevar a estrutura para tornar o chão democrático; ventilar, iluminar e dar solenidade necessária às atividades contidas. Entretanto, foi na originalidade da curva como elemento estrutural arquitetônico que ele ficou largamente conhecido (não confundir o voluntariosismo erótico de Niemeyer sobre as curvas femininas com a função estrutural das abóbadas).
Niemeyer, mesmo quase 20 anos mais velho que Furtado, era o brasileiro que o economista sempre sonhou ter como legítimo representante de uma Nação criativa e desenvolvida.
Herdeiro
No começo da sua carreira, Niemeyer era o herdeiro de quase uma década de desenvolvimento econômico decorrente da onda inicial de industrialização tardia da primeira era Vargas. Os clientes de Niemeyer espelhavam as novas fortunas acumuladas no país. Entre essas novas riquezas estava um banqueiro que pediu a sede do seu banco, hoje localizado perto da Igreja da Candelária, no Rio de Janeiro. Sem problemas, a menos que o cliente compreendesse suas simpatias políticas com seu trabalho profissional.
Era 1946, e Niemeyer resolveu acomodar, no mesmo local do seu escritório, a sede do Partido Comunista Brasileiro. O cliente, em uma das suas ligações, assustou-se: "O presidente do Banco Boavista, barão de Saavedra, era um sujeito muito educado, um sujeito muito bom, aliás. Ele telefonava às vezes pra mim, uma vez telefonou e o pessoal atendeu: "Partido Comunista Brasileiro". Ele tomou um susto e no dia seguinte me perguntou: Vem cá, o que tu conversas com o Prestes?". (NIEMEYER, 2007a)
Ciclos de Expansão
Quase duas décadas mais tarde, a arquitetura de Niemeyer dava visibilidade a um dos setores mais dinâmicos que se beneficiou diretamente com o deslocamento da capital: o setor da construção civil pesada em infra-estrutura. Este desenvolveu-se acoplado aos grandes ciclos de expansão - o próprio Plano de Metas e o II Plano Nacional de Desenvolvimento, o II PND (1975-1979). (TAVARES, 2007) No Plano de Metas, o protagonismo da construção civil deveu-se, em boa medida, ao investimento autônomo do Estado, engendrado por Furtado anos antes no grupo BNDE-CEPAL coordenado por ele no Rio de Janeiro entre 1952-1954.
O maior arquiteto daqueles tempos, Le Corbusier, chegou até a desconfiar da extensão da engenhosidade técnico-administrativa para a transferência da capital de um país nos trópicos. Ele comentara com André Malraux: "Parece que Brasília vai ser paralisada. E este, respondeu sorrindo: Seria uma pena, mas que belas ruínas teríamos". (PETIT, 1995) Le Corbusier pode não ter sido tão preciso no seu comentário eurocêntrico, mas acertava involuntariamente quanto às ambivalências que aquele crescimento econômico esboçava.
Concreto Armado
Entre outras ambivalências, a difusão do progresso técnico - no caso a indústria do concreto armado - pelo "Brasil Profundo" revelou-se discrepante com a própria urbanizaçãobrasileira. A ousadia desta técnica no Plano Piloto contrastava com os assentamentos improvisados nas cidades satélites. Os candangos que haviam construído Brasília eram obrigados a morar nos espaços insalubres, amesquinhados e sem planejamento urbano, da vizinha Brasília.
A ausência no Plano de Metas das reformas sociais, sobretudo aquelas que enfrentavam frontalmente as estruturas arcaicas de concentração da terra e da propriedade, revelou-se o principal entrave à urbanização qualificada.
A "urbanização sem cidade"(6) e suas consequências sobre a saúde pública, é uma das heranças mais perversas da ausência da cidade na agenda do desenvolvimento brasileiro. Niemeyer dizia enfaticamente: "Brasília não é a cidade do futuro porque a nossa sociedade ainda é do passado". (PETIT, 1995)
Periferias Precárias
Com a urbanização precária nas periferias das cidades brasileiras simultaneamente crescia uma enorme massa de subempregados: "Os trabalhadores têm de ficar pechinchando empregos porque as grandes empresas não querem criá-los. Estranhamente, elas não criam empregos, mas enfrentam problemas de falta de mercado para seus produtos. (...) A parte da população que não participa dos benefícios do desenvolvimento é tão grande que este passa a ser um dos principais problemas, senão o prioritário, de quem governa o Brasil. É impressionante ver esses desempregados e subempregados querendo invadir as terras no próprio campo e nas cidades".(FURTADO, 2003)
Niemeyer foi, portanto, encurrulado na própria contradição da modernidade brasileira, que o projetou internacionalmente: "Construí edifícios públicos para o Estado, trabalhei para os ricos, para os poderosos. Nada mais que isso. Arquitetura é coisa de elite. Nunca pude trabalhar para as classes desfavorecidas, para esse mundo de pobres que constitui a maioria dos meus irmãos brasileiros. Entretanto, eu gostaria de estar mais próximo deles, trabalhar para eles, levar-lhes a minha colaboração, a minha solidariedade e, de mãos dadas, caminhar com eles para um mundo sem miséria, sem ricos nem pobres, um mundo de sonho e esperança". (PETIT, 1995)
Nem Arquitetura, Nem Engenharia
Nem a arquitetura, nem a engenharia brasileiras conseguiram dar conta de pelo menos duas contradições urbanas: a urbanização de risco(7) e a universalização do acesso às infraestruturas urbanas. Uma engenharia que consegue engendrar a maior hidrelétrica do mundo em potência instalada - a Itaipu, cuja principal barragem possui 195 metros de altura, não foi capaz de prover condições de controle dos riscos nos assentamentos urbanos informais. Isso significaria conter anualmente o deslizamento das encostas e alagamento nas planícies que poupariam inúmeras vidas.
O mesmo pode ser dito do acesso às infraestruturas urbanas, notadamente o saneamento, que muito contribuiria para o controle das doenças de água parada(8). A mecânica dos fluidos era um princípio já utilizado pelos romanos antes da era cristã, ou seja, levar e trazer água do morro não é empecilho da técnica.
FURTADO: O "ARMADOR" NA PERIFERIA DO CAPITALISMO
A precocidade dos gênios não seria suficiente se ambos não representassem, de fato, as forças progressistas de um projeto de modernização nacional. Niemeyer aos 32 anos projetava, junto com Lúcio Costa, o Pavilhão do Brasil para a Feira Internacional de Nova Iorque em 1939; enquanto Furtado, aos 30, foi nomeado Diretor da Divisão de Desenvolvimento da CEPAL em 1950.
Após um ano de intensa jornada de trabalhos e debates na CEPAL, Furtado ao ser escolhido por Raul Prebisch foi, no entanto, advertido: "Vou obter sua reclassificação para que você possa assumir suas responsabilidades de direção. Há uma grande resistência por sua idade". Furtado, contudo, não considerava um empecilho: "Eu completara trinta anos e me considerava tão velho quanto se pode ser antes da senilidade. Para quem nascera no sertão, na época em que nos refugiávamos na caatinga para escapar das incursões de Lampião, e aprendera como primeira língua estrangeira o latim, o tempo vivido me parecia incomensurável". (FURTADO, 1985)
Prebisch tivera também uma trajetória de rápida projeção política. Quando assumiu o Banco Central na Argentina com apenas 34 anos, inspirava pouca autoridade frente aos banqueiros conservadores. Decidiu, então, ganhar peso: "a gordura confunde as idades". Furtado já não tinha essa mesma aptidão: "Não era essa uma saída para mim: era um jogador de tênis inveterado e queimava qualquer excesso de calorias que ingerisse". (FURTADO, 1985)
Plano de Metas
Se o Plano de Metas contribuiu para eleger a indústria na periferia como mecanismo de superação da deterioração dos termos de intercâmbio com o centro, foi na fragilidade da sua sustentação financeira que quatro anos mais tarde o Brasil iria testemunhar outra crise, a de 1963-1967. "O principal entrave estava nos constrangimentos criados pela forma de inserção internacional e pela estreiteza dos mercados internos. Criar zonas de livre comércio entre economias subdesenvolvidas também não iria levar muito longe". (FURTADO, 1991)
"O Plano de Metas e o Plano Trienal compõem seu principal legado político, porém é no capítulo Nordeste que ele vai demonstrar com destreza seus dotes de estrategista espacial "
O Plano de Metas e o Plano Trienal compõem seu principal legado político, porém é no capítulo Nordeste que ele vai demonstrar com destreza seus dotes de estrategista espacial.
A SUDENE, nesse sentido, vale aqui um generoso adendo, uma vez que sua inspiração "periférica" vem, sobretudo, do seu curioso deslocamento do Brasil profundo - o Nordeste, para a centralidade das rodas produtivas e políticas do país - o Sudeste. "O Nordeste acumulara, historicamente, o maior atraso social do país. A criação da Sudene, que me coube dirigir, desde sua implantação em 1959 até golpe militar, era uma tentativa de impulsionar o desenvolvimento nessa área tão desvalida"(9).
Descentralização e Incentivos
Para Furtado, a economia do Nordeste era viável se a SUDENE aliasse descentralização administrativa com incentivos fiscais à industrialização e gestão responsável dos recursos (FURTADO, 1959). Além disso, para ele, modernização regional somente com a indústria não seria suficiente porque era necessário também resolver a questão de abastecimento de alimentos nas zonas urbanas. Furtado, anos mais tarde, percebia que o enrijecimento da estrutura social nordestina impedia as reformas econômicas necessárias. Suas estratégias espaciais estavam corretas, mas as táticas de reformas sociais nunca foram levadas à cabo.
Crescimento econômico combinado com democracia também é contribuição de Furtado, se pensarmos, sobretudo, a partir da forma como o crescimento da era JK adiou por 10 anos o avanço das forças reacionárias pós-suicídio de Vargas em 1954. Para Francisco de Oliveira (1997), importa ressaltar como Furtado livrou-se da tentação autoritária ao combinar desenvolvimento com autonomia dos Estados, por meio do pacto federativo.
Década Democrática
Tal década democrática encontrou uma considerável sobrevida, se não fosse o rápido avanço da oposição interna na primeira crise pós- Plano de Metas entre 1963-1967. Os curtos anos de crise na balança de pagamentos deu rápido combustível ao avanço das forças conservadoras, portadoras de uma visão bem diversa sobre a condução do desenvolvimento econômico do país. A organização das elites excluídas do Plano de Metas - leia-se setor financeiro e parte do setor primário-exportador, conseguiu ainda agregar o descontentamento de alguns setores populares e da classe média. O trágico episódio seguinte com a eleição da dobradinha Jânio-Jango é a manifestação clara das ambivalências da modernidade incompleta, ou nas palavras de Furtado: "construção interrompida".
Um dos aspectos dessa modernização conservadora fica evidente na resposta de Niemeyer a um militar de alta patente, ávido por um retrocesso estético. Niemeyer ao ser instado a projetar em Brasília o edifício do Ministério da Guerra fora coagido pelo então general Lott a projetar algo próximo ao gosto "adequado" às elites da época: "Espero que não seja como aqueles prédios modernos, eu prefiro os clássicos". E Niemeyer, de pronto, responde: "Você vai para a guerra com uma arma antiga ou nova?"(10).
Peregrinação na AL
A peregrinação de Furtado pelos países latino-americanos é a prova mais evidente da incorporação teórica sobre suas vivências espaciais. As estratégias espaciais decorrem, portanto, do seu profundo conhecimento sobre as heterogeneidades e especificidades do subdesenvolvimento. Certa vez, ele dissera: "Para entender a vida da sociedade é preciso saber como é que se mata a fome, primeiro". (FURTADO, 1997)
Apesar de ter se deslocado por diversos países na dianteira da CEPAL entre os anos 1949-1957, foi no seu posterior retorno pós-golpe em 1964 a Santiago do Chile, que ele vai reelaborar e rediscutir as premissas de planejamento, desenvolvidas enquanto ocupou cargo como ministro nos três mandatos dos presidentes Juscelino, Jânio e Jango.
O Chile constituíra-se no primeiro polo de atração da primeira onda da diáspora brasileira de quase toda uma geração de intelectuais banidos da vida política. Era nos encontros com outros intelectuais e políticos brasileiros e chilenos que emergiram algumas das críticas à análise cepalina(11).
Teoria Centro-Periferia
Se a teoria centro-periferia enunciava as geometrias da subordinação como o descompasso entre a incorporação do progresso técnico e o desenvolvimento das forças produtivas, foi necessário o curto exílio de Furtado no Chile no imediato pós-golpe, para que ele reformulasse algumas arestas. Faltava qualificar as assimetrias econômico-espaciais como assimetrias de poder: "Por que o Brasil não reduziu o subdesenvolvimento, se seu PIB cresceu 100 vezes no século XX?" (FURTADO, 2003)
A adoção de padrões de consumo incompatíveis com o nível de produção do país manteria sistematicamente nosso regime de subordinação econômica. As assimetrias de poder, reveladas pelo isolamento político dos movimentos sociais, eram paralelas às assimetrias de riqueza. Para Furtado, era fundamental enunciar uma "teoria do excedente", que nomearia a apropriação dos esforços de acumulação por "elites aculturadas". A dependência econômica configurava-se, nas suas entranhas, como uma forma de dependência cultural.
Viagem aos EUA
Depois de exilar-se brevemente no Chile, Furtado decide ir aos Estados Unidos em setembro de 1964. Ele declarara que sua ida era um desejo de "ser uma pesssoa qualquer": "dificilmente se encontra um povo que desperte tanta simpatia no plano pessoal quanto o norte-americano, e dificilmente se encontrará um país cujo comportamento possa parecer tão odioso como os Estados Unidos." Sua memória afetiva remontava à época quando serviu o Corpo Expedicionário Brasileiro na Segunda Guerra Mundial e integrou o V Exército dos Estados Unidos nas operações na Itália. (FURTADO, 1991)
O espírito democrático revelado pela ausência de estratificação da sociedade e de qualquer traço de reverência pela hierarquia eram aspectos admirados por Furtado. Mas era a curiosidade pela matriz cultural que engendrava uma nação inteira a universalizar-se que o moveu a deslocar-se da periferia para o centro do capitalismo. Novamente, Furtado colocava a centralidade da cultura para entender a subordinação.
Independência do Indivíduo
A ele interessava a ideia de que a independência do indivíduo pressupunha autonomia econômica, e que esta era mais facilmente alcançada quando se tinha acesso à propriedade da terra. Essa preocupação o acompanhou em toda a sua produção, apesar de não ter conseguido formular instrumentos objetivos que romperiam com essa concentração de poder econômico. Somente em 2001, após uma longa jornada de pressão dos movimentos sociais, foi aprovado o Estatuto da Cidade com a regulamentação dos instrumentos fiscais e urbanísticos para o exercício da função social da cidade e da propriedade.
A abundância de recursos para a pesquisa nos EUA e a convivência com grandes nomes nativos e estrangeiros da pesquisa econômica, no entanto, não produzia em Furtado nenhum efeito que ele denominasse como ousadia e criatividade. Ao contrário, estupefato, Furtado confrontava-se com certo esquematismo ou conservadorismo dos colegas de pesquisa. Sobre muitos acadêmicos que conviveu, ele testemunhava: "ninguém se atrevia a afastar-se do paradigma dominante, temendo uma inevitável desqualificação acadêmica".
Furtado estava no centro do capitalismo, mas sua indignação era da periferia. É dessa época, no entanto, que ele escreve: Dialética do Desenvolvimento, símbolo da originalidade da visão sobre as teorias de subordinação econômica: "Era quase uma questão de afirmação de autonomia intelectual sistematizar essa negação dos paradigmas da economia norte-americana sobre a desqualificação do conceito clássico de excedente de Marx. Era necessário um pensamento independente que refletisse sobre os pressupostos reais do subdesenvolvimento". (FURTADO, 1991)
Temor nos EUA
Nos países latino-americanos, não se sentia exilado, mas nos Estados Unidos temia que esse exílio se tornasse longo demais. Um incidente diplomático em 1965 iria contrariar seu temor.
Ao retornar aos EUA após uma curta viagem à Inglaterra, seu visto de entrada foi negado. Além disso, depois de um ano trabalhando no Centro de Estudos do Crescimento Econômico na Universidade de Yale, Furtado desconfiava que as autoridades militares brasileiras estivessem manipulando para que seu contrato como professor não fosse renovado: "Nos EUA meu campo de ação confinava-se no mundo universitário. E o clima geral era de pouca simpatia por alguém que se fizera notório por atividades ditas "subversivas" na América Latina". (FURTADO, 1991)
Europa
Após lecionar em Yale, ele deixa os EUA e vai para outro centro, dessa vez no núcleo intelectual progressista da Europa, a Faculdade de Direito e Ciências Econômicas da Universidade de Sorbonne em 1965. É sobre a coincidência histórica da residência de Furtado e Niemeyer no tempo e no espaço que outro capítulo dessa interlocução silenciosa começa a seguir.
NIEMEYER: O "PONTA DE LANÇA" NO CENTRO DA CULTURA MUNDIAL
Para Furtado, o regime militar foi o período de grande retrocesso na história do país: "neutralizou por duas décadas todas as formas de resistência dos excluídos, exacerbou as tendências antissociais do nosso desenvolvimento mimético". (FURTADO, 2000) Os elevados padrões de consumo da alta classe média, que sistematicamente corrompiam parte substancial da poupança interna, tinham na sua face mais perversa a esterilização das possibilidades de superação desse modelo a partir da formulação interna de soluções originais.
Para ele era inconcebível que o crescimento não encontrasse reverberação na criatividade do povo: "Por que em determinada cultura o esforço acumulativo (foi) absorvido pela construção das pirâmides?". Para ele, é uma "pena que o papel da criatividade haja perdido nitidez". (FURTADO, 1997)
Projeção
Para além dos retrocessos políticos, o regime militar ao expulsar os principais expoentes da criatividade nas ciências e nas artes(12), os projetou como nomes de intensa visibilidade internacional. Furtado, que já havia concluído em 1948 seu doutorado em Economia na Universidade de ParisSorbonne; em 1965, por decreto de Charles De Gaulle, é o primeiro estrangeiro nomeado pela mesma universidade.
Curiosamente, Niemeyer, também por decreto de De Gaulle, é autorizado a trabalhar na França com a mesma legitimidade dos arquitetos franceses. O arquiteto, que já havia conseguido larga notoriedade internacional em razão das obras em Brasília, foi rapidamente aliciado pelo governo francês. Ele que saíra 15 dias antes do golpe militar em março de 1964, acabou fixando residência na França.
PC Francês
É dessa época um dos edifícios que marcariam a coincidência entre seu pensamento político e sua trajetória profissional. Em 1967, ele projeta o edifício-sede do Partido Comunista Francês, que é inaugurado em 1971. No dia da inauguração, ele é convidado a almoçar na sala do secretário-geral do partido: "Almoçar sim, mas no refeitório com todo o pessoal". Era a opção não apenas de um comunista, mas de um arquiteto. Niemeyer, ao contrário de instalar o refeitório dos trabalhadores no subsolo, como era de praxe, colocou-o no último andar, para que os trabalhadores pudessem aproveitar a luz natural e a vista de Paris enquanto almoçam.
É curioso que a reverência de Niemeyer pela importância política do Partido não lhe deu permissão que ele projetasse no edifício qualquer sinal de monumentalidade. O edifício pacato e de curva sinuosa apenas encosta na plataforma, de onde emerge a abóbada da sala de congressos, também pequena.
Escritório em Paris
Em 1972, Niemeyer abre um escritório em Paris, na avenida Champs Elisées, número 90. É nesse período que ele projeta a Casa da Cultura em Havre, a Bolsa de Trabalho em Bobigny, e alguns esboços de uma torre no bairro de La Defénse. Ele não escondia o deslumbramento: "De qualquer maneira, na França e no ambiente cultural oferecido por este país, encontrei um equilíbrio para todas as minhas preocupações, atento a tudo e curioso de tudo, como um provinciano que mergulha de repente na vida de uma metrópole". E ainda: "Em Paris, qualquer pessoa, mesmo um carioca (...), circula satisfeito pela cidade". (PETIT, 1995)
A projeção no território francês também o propulsiona a construir em outros países que vivenciavam situações políticas progressistas. É nesse momento de alteridade política que ele mergulha na exploração de um largo léxico arquitetônico-urbanístico em Israel, Itália e Argélia.
Outros Projetos
Em Israel, ele projeta a Cidade de Negev, em 1964, na qual a maior preocupação era criar uma cidade acolhedora, no meio do deserto. Ao se preocupar em deixar os carros na periferia urbana e promover a densidade e encurtar as distâncias, privilegiava os contatos humanos e o pedestre. Na Itália, ele projeta o edifício sede da editora Mondadori, em 1968. Neste projeto, conhecido pela semelhança com o Palácio do Itamaraty em Brasília, Niemeyer "pendura" a estrutura do edifício nas suas vigas superiores e promove diferentes distâncias entre as esforços na vertical. Em 1969, ele projeta a Universidade de Constantine, na Argélia. Nesta universidade ele reúne as salas de todas as áreas do conhecimento em um único edifício, cuja extensão lhe forçou criar uma estrutura que desafiou os engenheiros locais: "Os engenheiros de lá falaram que era impossível, que a comprida viga deveria ter 1 metro de espessura. Chamei os engenheiros brasileiros e eles deixaram com 30 centímetros!"(13).
Reconhecimento no Exterior
Se o começo do regime militar expulsara Niemeyer da vida política, fora ele recebia reconhecimento. O nosso "ponta de lança", nesse período e posteriormente, ganhou inúmeros prêmios internacionais - dentre eles, destacam-se o Prêmio Lênin da Paz (Rússia, 1963); o Prêmio Lorenzo il Magnífico (Itália, 1980); o Prêmio Príncipe de Asturias de Las Artes (Espanha, 1989); o Prêmio Unesco (França, 2001) e a principal láurea da arquitetura, o Prêmio Pritzker (Estados Unidos, 1988). Além de Niemeyer, somente o brasileiro Paulo Mendes da Rocha, em 2006, recebeu o Pritzker(14).
Furtado igualmente aproveita do intenso debate internacional para aprimorar seu léxico filosófico-econômico sobre as economias latino-americanas. Apesar de residência fixa na França por longos 20 anos, ele também transita por Ásia, África e Américas. Foi na intensa interlocução e observação das diferentes realidades que ele pôde sofisticar e dar coerência à tese do subdesenvolvimento.
Obras Públicas e Privadas
Apesar de reconhecidamente comunista, Niemeyer volta ao Brasil pouco tempo depois do golpe militar e projeta diferentes obras públicas e privadas: Ponte Costa e Silva (Ponte do Lago Sul) em Brasília, em 1967; o Quartel General do Exército em Brasília e o Centro Musical no Rio de Janeiro, em 1968; e o Terminal Rodo-Ferroviário em Brasília, em 1973.
Assim como Niemeyer, Furtado também é convidado pelos parlamentares para que contribuísse na discussão da economia brasileira. Em 1968, no "curto veranico Costa e Silva", o economista vem ao Brasil, a convite da Câmara dos Deputados, e lança o livro Um projeto para o Brasil, semanas antes do AI-5. (OLIVEIRA, 1983)
Essa contradição na trajetória de ambos é notável no momento particular de escurecimento político da história brasileira que contrastava com a luminescência cultural no resto do mundo.
Poderíamos dizer que essa foi uma das poucas concessões que o regime militar dispôs para dar êxito a seus objetivos. Para os estrategistas militares (bem práticos por sinal), dois dos nossos melhores estrategistas espaciais pairavam acima das ideologias.
COMO SERIA O FRASEADO ENTRE UM GIRONDINO DIONISÍACO E UM JACOBINO APOLÍNEO?
Como seria o fraseado dos dois demiurgos, se eles tivessem se encontrado algum dia, seja na periferia do capitalismo quanto no centro da cultura mundial? Apesar desse encontro ter muitas chances de ter ocorrido em um dos dois pólos, vale a pena, pelo menos, o exercício imaginativo do diálogo entre um girondino dionisíaco e um jacobino apolíneo.
Niemeyer, ainda conserva um emblema do conversador macunaíma - meio tímido, meio apoteótico. Seu desenho é mais eloquente. A simpatia pelo personagem de Mário de Andrade é explícita nessa fala:"Um dia, eu estava com o Darcy conversando e ele me contou que fez uma reunião pra discutir o problema do índio e o índio ficou lá calado. Estava no fim da reunião, ele virou pro índio e disse: "Você não quer dizer alguma coisa?" O índio disse: "Não". "Por quê?" "Porque estou com preguiça". (NIEMEYER, 2007a) Quem sabe essa não seria a receita para sua longevidade?
Clareza do Raciocínio
Furtado, ao contrário, tinha a clareza do raciocínio e didatismo dos mestres-professores. Tinha um olhar horizontal, talvez pelo desprezo por qualquer forma de hierarquia, e passava a impressão que a interlocução poderia ter a generosidade da simetria. De forma que, qualquer fraseado que eventualmente possa ter acontecido, seria bastante despretensioso. As diferenças que existiram se diluiriam na camaradagem.
Se pudéssemos esquematizar uma oposição, poderíamos começar definindo Niemeyer como um jacobino. Seria impreciso, em contraponto, denominar Furtado como um girondino, principalmente conhecendo sua trajetória e convicções políticas. A única característica girondina que talvez ele poderia assumir era não só o fato de ser um moderado no sentido mais puro, mas porque ele não acreditava na utilidade do aprofundamento da revolução.
Revolução e Guerrilha
Para Furtado qualquer revolução significaria um retrocesso: "Os grupos de extrema esquerda, os movimentos de guerrilha podiam despertar simpatias enfrentando as ditaduras militares, mas não conduziriam a nada concreto, quando não ao endurecimento das forças de direita e ao florescimento da Internacional dedicada ao combate aos movimentos subversivos". A raiz da sua desconfiança residia na incompatibilidade do formato revolucionário nos países pobres sem um projeto de desenvolvimento.
"Niemeyer, em contraponto, é o jacobino por excelência, sobretudo porque ele acreditava que a revolução socialista é uma forma acabada de resolver e esgotar as contradições que a América Latina apresenta "
É bastante reveladora a leitura de Furtado sobre Che Guevara ao encontrá-lo durante o governo Jânio-Jango de 1961-1964: "Che Guevara polarizava as atenções, o que criava muita inveja em muita gente. Estive com ele em mais de uma conferência e via como levava vantagem. É verdade que tinha a bandeira sedutora do mito da revolução. Sempre houve esse apelo por gestos de desespero a que chamamos de revolução, Che Guevara era brilhante nesse passe de mágica". (FURTADO, 1997)
Jacobino
Niemeyer, em contraponto, é o jacobino por excelência, sobretudo porque ele acreditava que a revolução socialista é uma forma (funcional e esteticamente) acabada de resolver e esgotar as contradições que a América Latina apresenta. Sua última obra na cidade de Havana no começo de 2008 atesta sua concordância irrestrita com a revolução cubana.
A revolução como ferramenta emancipadora da América Latina fica patente durante um interrogatório, em um dos seus primeiros retornos pós-golpe. Ao ser interrogado sobre suas "intenções" políticas durante o regime militar, ele responde: "Mudar a sociedade. Aí o sujeito que fazia as perguntas vira para o criolinho que estava batendo a máquina e diz: Escreve aí: mudar a sociedade. O criolinho virou e disse: Vai ser difícil, hein!" (15).
Dionisíaco e Apolíneo
Outra oposição possível, também com o risco da imprecisão, é denominar o economista, dionisíaco; e o arquiteto, apolíneo. Por que Furtado um dionisíaco, poderiam desconfiar os diletantes? Para responder, basta observar como ele coloca a cultura no centro das transformações:"Ora, o utópico muitas vezes é fruto da percepção de dimensões secretas da realidade, um afloramento de energias contidas que antecipa a ampliação do horizonte de possibilidades aberto a uma sociedade". (FURTADO, 2000) Apesar da aparência um pouco casmurra, a escolha de Furtado como Ministro da Cultura no governo Sarney (1986-1988) foi coerente dentro da sua trajetória, porém, limitada no alcance político no período de conturbada transição para a democracia.
As críticas mais rasteiras à obra de Niemeyer estão relacionadas à aridez do terreno onde estão assentados os edifícios que ele projetou. Niemeyer "organiza" e "planeja" o espaço para que os edifícios formem uma unidade ou um conjunto coerente. O ato soberano de "enterrar" uma praça (Centro Cultural em Havre, França); ou torná-la absolutamente limpa de vegetação (Praça dos Três Poderes, Brasília) são recursos legítimos para raptar a perspectiva do observador para uma leitura limpa do ambiente construído e da paisagem no entorno.
Olhar em Perspectiva
O sempre onipresente "olho" desenhado nos seus croquis atesta a importância que Niemeyer imprimia ao olhar em perspectiva e à relação da altura do ser humano com a edificação. Essa relação de quase isolamento do ser humano com a obra de arte é eminentemente apolínea, se considerarmos que esta é elaborada na racionalidade, no equilíbrio e na harmonia.
As lâminas alvas refletoras dos edifícios do Niemeyer em Brasília, postas sobre um planalto redimensionado e replanificado da Esplanada dos Ministérios contrastam fortemente com a aglomeração caótica das cidades satélites, a poucos quilômetros distantes dali.
Novas Táticas
Quais seriam as novas táticas para as mesmas estratégias espaciais? Existiriam muitas, mas eu aqui me ateria a duas, que foram aquelas deixadas em suspenso por ambos: Em primeiro, se o subdesenvolvimento é um desvio e não uma etapa, quais são as geometrias para o avanço? Em segundo, quais são as táticas de inserção do Brasil na geopolítica atual?
Em relação à primeira estratégia, Niemeyer talvez desse o exemplo do Juscelino: "Brasília poderia ser do futuro porque teve um verdadeiro empreendedor. A construção da nova capital foi uma aventura, mas ela possibilitou a expansão e integração de áreas importantes do interior do País". (NIEMEYER, 2007b). A interiorização do desenvolvimento era uma tática ofensiva.
Autonomia Habilitada
Furtado, por sua vez, responderia com duas táticas que enfrentassem sobretudo o passado: uma seria o que ele denominava "autonomia habilitada"(16), ou seja, execução das reformas básicas para habilitação à propriedade, ao trabalho é à participação política. (FURTADO, 1999) A outra tática seria a desarticulação das formas de dominação social apoiadas na apropriação autoritária do excedente. Para Furtado, as duas fases de maior crescimento econômico na história brasileira não enfrentaram a intensa concentração de renda. (FURTADO, 1997) Sobre a última estratégia, ambos teriam posicionamentos semelhantes.
Furtado não poderia se valer do instrumental cepalino porque a nova ordem mundial inviabilizaria o esquema dualestruturalista. A emergência de outras polaridades (China, Índia, Rússia) não configuram necessariamente como novas hegemonias e, dessa forma, poderiam desmontar os antigos esquemas de subordinação centro-periferia.
Desenvolvimento e Comércio
Nas últimas obras, contudo, Furtado revelava a importância do equilíbrio entre desenvolvimento interno e comércio exterior. Vale a pena recuperar sua idéia da necessidade de organização e regulamentação dos mercados produtivos internacionais, promovendo em paralelo a cooperação entre países produtores e consumidores, sobretudo, diante da especulação atual das commodities. (FURTADO, 1997)
Niemeyer, talvez, usasse seu próprio exemplo para expor sua tática, a partir da sua experiência do projeto para a sede da ONU em Nova Iorque, em 1947. Na ocasião, estavam lá os principais expoentes da arquitetura mundial, incluindo o mais famoso deles, Le Corbusier. O arquiteto francês, que já havia apresentado o seu projeto, pediu a colaboração de Niemeyer, que aceitou prontamente. Os organizadores do concurso pediram, no entanto, que Niemeyer elaborasse um projeto individual. Ele o fez, em apenas uma semana. O projeto de Niemeyer acabou sendo aceito pela comissão de julgamento, por unanimidade. Apesar da superioridade do projeto de Niemeyer, ele convida Corbusier a participar de um projeto conjunto: o 23-32; 23 era o número do projeto do arquiteto francês e 32, do brasileiro. Anos depois, Corbusier dissera a Niemeyer: "Você é generoso". (PETIT, 1995)
REFERÊNCIAS DO TEXTO
2 - Citação do livro "Vida que segue. João Saldanha e as copas de 1966 e 1970", de Raul Milliet, com prefácio de Oscar
Niemeyer, Sérgio Cabral e Tostão.
3 - Termo emprestado de Nelson Rodrigues, citado por Paulo Nogueira Batista Jr. (2008).
4 - Dois autores denominam Furtado como o demiurgo do Brasil: Francisco de Oliveira, In: FURTADO, C. (1983); e Antônio Candido, In: OLIVEIRA, F. (1997).
5 - Relato de Niemeyer, citado por Paulo Mendes da Rocha em entrevista à revista Caros Amigos. (ROCHA, 2007)
6 - Termo emprestado de Kazuo Nakano, que tem protagonizado este debate atualmente.
7 - Termo emprestado de Raquel Rolnik sobre a vulnerabilidade em relação aos riscos dos assentamentos urbanos
informais - favelas e loteamentos clandestinos.
8 - Convém relacionar as mazelas das doenças em geral e as tropicais de água parada com as ínfimas taxas de saneamento
básico no Brasil. Segundo a FGV-SP, em 2008 a taxa de saneamento é uma das menores em relação aos demais
indicadores de infraestrutura urbana, apenas 52,2% dos municípios brasileiros são atendidos pela rede pública.
(PESQUISA mostra ..., 2008)
9 - É curioso que quase cinquenta anos mais tarde os três estados com os piores índices de desenvolvimento social (IDS)
são do Nordeste: Piauí, Maranhão e Alagoas, conforme o Instituto Nacional de Altos Estudos (INAE), divulgado no XX
Fórum Nacional em maio de 2008.
10 - Depoimento de Niemeyer no documentário "A Vida é um Sopro" do diretor Fabiano Maciel.
11 - Fernando Henrique Cardoso, Francisco Weffort eram nomes fixos do grupo de discussão liderado por Furtado no
Chile pós-golpe militar no Brasil. (FURTADO, 1997)
12 - Joaquim Cardozo, engenheiro que calculou as estruturas da Catedral e dos palácios de Brasília é julgado em 1971 por
incompetência. In: PETIT, J. ( 1995).
13 - Depoimento de Niemeyer no documentário "A Vida é um Sopro" do diretor Fabiano Maciel.
14 - Devo ainda uma homenagem ao meu mestre, com carinho. Quem sabe exista um próximo capítulo das ambivalências
econômico-culturais brasileiras com a análise da obra de Paulo Mendes da Rocha. Fernando Serapião no número 05 da
Revista Piauí (fevereiro de 2007), muito contribuiu com esta questão mostrando os empecilhos para o trabalho em
parceria Niemeyer-Mendes da Rocha.
15 - Depoimento de Niemeyer ao documentário "A Vida é um Sopro".
16 - Furtado aqui cita Amartya Sen, economista indiano: o "enfoque da habilitação". (FURTADO, 1999)
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BATISTA Jr., P.N. O Brasil vai bem, obrigado. Folha de São Paulo. 15 de Maio de 2008.
BELLUZZO, L.G. Furtado e a compreensão do subdesenvolvimento. Folha de São Paulo. São Paulo, 22 de nov. 2004.
FURTADO, C. A operação Nordeste. Rio de Janeiro: ISEB, 1959.
___________ . Celso Furtado: economia. OLIVEIRA, F. (org.). São Paulo: Ática, 1983.
___________ . A Fantasia Organizada. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1985.
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___________ . Obra autobiográfica. Volume 3. D'AGUIAR, R.F. (org.) Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1997.
___________ . O Longo Amanhecer. Reflexões sobre a formação do Brasil. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1999.
___________ . Reflexões sobre a Crise Brasileira. Palestra proferida no Seminário Internacional "Novos Paradigmas do Desenvolvimento" na USP, em junho de 2000. Revista de Economia Política. vol. 20., n0. 4(80), outubro-dezembro de 2000. Disponível em <http://www.centrocelsofurtado.org.br>. Acesso em maio de 2008.
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MILLIET F., R. (org.) Vida que segue: João Saldanha e as copas de 1966 e 1970. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 2006.
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OLIVEIRA, F. A navegação venturosa. In: FURTADO, C. Celso Furtado: Economia. São Paulo: Ática, 1983.
___________. Viagem ao olho do Furacão. Celso Furtado e o desafio do pensamento autoritário brasileiro. Revista
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ROCHA, P.M. Paulo Mendes da Rocha. A natureza é um trambolho: depoimento. (abril 2007). São Paulo, SP, 2007. Entrevista concedida ao número 61. Revista Caros Amigos. São Paulo, 2007.
TAVARES, M.C. Ciclo e Crise. O Movimento Recente da Industrialização Brasileira. Tese (Professor Titular). Instituto de Economia, UFRJ, Rio de Janeiro, 1978.
______________. Notas de aula sobre o desenvolvimento econômico brasileiro. Aula inaugural proferida no dia 28 de agosto de 2007, no curso "Desenvolvimento Brasileiro", organizado pelo Centro Internacional Celso Furtado de Políticas para o Desenvolvimento. Disponível em <http://www.centrocelsofurtado.org.br>. Acesso em maio de 2008.
Luciana Itikawa é arquiteta e urbanista; fez doutorado na FAU-USP, especialização em Economia do Trabalho no Instituto de Economia/Unicamp e coordenadora do projeto ‘Trabalho Informal e Direito à Cidade' no Centro Gaspar Garcia de Direitos

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