Criada para disciplinar o uso da língua, a grámatica normativa carece de flexibilidade e, em muitos casos, de bom-senso
Aldo Bizzocchi
Aldo Bizzocchi

Norma culta, norma padrão, ou ainda norma standard, é um conjunto de regras de utilização da língua que visa normatizar, isto é, padronizar, o modo de expressão em discursos, orais ou escritos, tidos como "cultos" (livros, jornais, revistas, textos técnicos ou científicos, etc.). Portanto, a língua padrão, resultante da aplicação dessa norma, é até certo ponto um idioma artificial, altamente monitorado, a ser usado sobretudo na escrita formal. Como resultado, a maioria das línguas (96% delas, para ser exato) não tem uma norma padrão pelo simples fato de não possuírem expressão escrita, além de serem utilizadas por pequenas comunidades (como tribos e aldeias) em que não existe formalidade, exceto em rituais religiosos.
PadronizaçãoEsse padrão, embora tivesse por base um dialeto, sofreu contribuições de outros dialetos do reino, bem como intervenções de gramáticos a fim de racionalizar seu uso. (Aliás, os gramáticos surgem a partir do momento em que se constitui essa norma.) Assim, desde o início a norma culta deveria ser racional, buscando o bom-senso e a regularidade. Além disso, deveria ser fator de intercomunicação e integração entre diversas províncias numa época em que não havia meios de comunicação de massa.
CiênciaFelizmente, nos últimos anos, esse espírito excessivamente conservador das gramáticas tradicionais, produzidas sem respaldo científico, vem sofrendo o contraponto de gramáticas mais modernas, elaboradas por linguistas, que retomam a diretriz original de construir a norma a partir do uso e não o contrário.
Mas o que é, exatamente, que a norma padrão padroniza? Parece que a ênfase está mesmo na morfologia e na sintaxe; a regulamentação fonética se restringe a questões de prosódia e ortoépia. Do léxico, as gramáticas nada falam. No entanto, quando se estuda uma língua estrangeira, como o inglês, o que se aprende é o padrão, que não se restringe à gramática (flexão, conjugação, posição dos termos na frase), mas inclui um vocabulário e uma pronúncia. Normalmente, ensina-se o léxico e a fonética de alguma das variedades de prestígio do idioma, como a dos grandes centros. Logo, o inglês modelo é geralmente o de Londres, Nova York ou Los Angeles, não o da Escócia ou do Kentucky.
No caso do português brasileiro, ao mesmo tempo em que os gramáticos tradicionalistas são intransigentes em relação à observância estrita a regras obsoletas, porque extraídas de autores do passado, não se exige uma padronização lexical ou fonética.
DisciplinaAfinal, que português se deve ensinar aos estrangeiros? E que vocabulário o autor de um texto formal, a ser divulgado nacionalmente, deve empregar? Num telejornal, que termo usar: tangerina, mexerica ou bergamota? Lanterneiro, funileiro ou tanoeiro? Aipim, mandioca ou macaxeira? Um manual de trânsito distribuído pelo governo federal poderia usar "farol" e "lombada" em vez de "sinal" e "quebra-molas"? Livros didáticos devem ser adaptados ao linguajar de cada região ou disseminar os termos correntes no Sudeste? E que termos são esses? Como decidir entre "fecho éclair" e "zíper", entre "bombeiro hidráulico" e "encanador", entre "trocador" e "cobrador"?
Sem consensoA ausência de consenso sobre o léxico e a pronúncia se deve provavelmente à crença de que, enquanto a gramática produz uma divisão social entre "cultos" e "ignorantes", as palavras e o modo de pronunciá-las operam um corte entre regiões geográficas. Isso não é totalmente verdade: há diferenças gramaticais entre regiões (como usar ou não artigo definido antes de nome de pessoa, ou empregar "tu" em lugar de "você"), assim como classes sociais distintas usam vocábulos distintos e pronúncias distintas. Na verdade, as dimensões léxica e fonética estão mais sujeitas a variações de sexo, faixa etária, grau de instrução, profissão, religião, do que a dimensão gramatical, cujas variações se dão basicamente por dois fatores: escolaridade e circunstâncias do ato de comunicação - que determinam os níveis de linguagem, ou registros.
Aldo Bizzocchi é doutor em linguística pela USP e autor de Léxico e Ideologia na Europa Ocidental (Annablume)
www.aldobizzocchi.com.br
Aldo Bizzocchi é doutor em linguística pela USP e autor de Léxico e Ideologia na Europa Ocidental (Annablume)
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