terça-feira, 8 de janeiro de 2013

Norma culta a marteladas


Criada para disciplinar o uso da língua, a grámatica normativa carece de flexibilidade e, em muitos casos, de bom-senso

Aldo Bizzocchi
Norma culta, norma padrão, ou ainda norma standard, é um conjunto de regras de utilização da língua que visa normatizar, isto é, padronizar, o modo de expressão em discursos, orais ou escritos, tidos como "cultos" (livros, jornais, revistas, textos técnicos ou científicos, etc.). Portanto, a língua padrão, resultante da aplicação dessa norma, é até certo ponto um idioma artificial, altamente monitorado, a ser usado sobretudo na escrita formal. Como resultado, a maioria das línguas (96% delas, para ser exato) não tem uma norma padrão pelo simples fato de não possuírem expressão escrita, além de serem utilizadas por pequenas comunidades (como tribos e aldeias) em que não existe formalidade, exceto em rituais religiosos.
É preciso lembrar que as línguas europeias, dentre as quais o português, só constituíram um padrão a partir de fins da Idade Média, quando o dialeto de maior prestígio foi elevado ao status de idioma oficial da corte e nele passaram a ser escritos documentos, obras literárias, tratados filosóficos, compêndios jurídicos, e assim por diante.
PadronizaçãoEsse padrão, embora tivesse por base um dialeto, sofreu contribuições de outros dialetos do reino, bem como intervenções de gramáticos a fim de racionalizar seu uso. (Aliás, os gramáticos surgem a partir do momento em que se constitui essa norma.) Assim, desde o início a norma culta deveria ser racional, buscando o bom-senso e a regularidade. Além disso, deveria ser fator de intercomunicação e integração entre diversas províncias numa época em que não havia meios de comunicação de massa.
Se a norma culta foi criada para servir à expressão dos falantes cultos em situações formais, é natural que ela tenha partido do próprio uso que esses falantes faziam em tais situações. Com o tempo, essa lógica se inverteu, e os falantes é que tiveram de se adaptar à norma, até o ponto em que as regras ditadas por ela se tornaram anacrônicas. Embutiu-se na normatização da língua a ideia de que o respeito ao padrão é a garantia de que o idioma não se corrompa com o tempo, bem como de que qualquer manifestação linguística fora desse modelo é indício de barbárie, ignorância, ou simplesmente é outra língua.
CiênciaFelizmente, nos últimos anos, esse espírito excessivamente conservador das gramáticas tradicionais, produzidas sem respaldo científico, vem sofrendo o contraponto de gramáticas mais modernas, elaboradas por linguistas, que retomam a diretriz original de construir a norma a partir do uso e não o contrário.
Mas o que é, exatamente, que a norma padrão padroniza? Parece que a ênfase está mesmo na morfologia e na sintaxe; a regulamentação fonética se restringe a questões de prosódia e ortoépia. Do léxico, as gramáticas nada falam. No entanto, quando se estuda uma língua estrangeira, como o inglês, o que se aprende é o padrão, que não se restringe à gramática (flexão, conjugação, posição dos termos na frase), mas inclui um vocabulário e uma pronúncia. Normalmente, ensina-se o léxico e a fonética de alguma das variedades de prestígio do idioma, como a dos grandes centros. Logo, o inglês modelo é geralmente o de Londres, Nova York ou Los Angeles, não o da Escócia ou do Kentucky.
No caso do português brasileiro, ao mesmo tempo em que os gramáticos tradicionalistas são intransigentes em relação à observância estrita a regras obsoletas, porque extraídas de autores do passado, não se exige uma padronização lexical ou fonética.
DisciplinaAfinal, que português se deve ensinar aos estrangeiros? E que vocabulário o autor de um texto formal, a ser divulgado nacionalmente, deve empregar? Num telejornal, que termo usar: tangerina, mexerica ou bergamota? Lanterneiro, funileiro ou tanoeiro? Aipim, mandioca ou macaxeira? Um manual de trânsito distribuído pelo governo federal poderia usar "farol" e "lombada" em vez de "sinal" e "quebra-molas"? Livros didáticos devem ser adaptados ao linguajar de cada região ou disseminar os termos correntes no Sudeste? E que termos são esses? Como decidir entre "fecho éclair" e "zíper", entre "bombeiro hidráulico" e "encanador", entre "trocador" e "cobrador"?
Se o propósito da existência da norma culta é disciplinar a expressão dos falantes em situações formais e equalizar o uso da língua entre as várias regiões do país, então é necessário estabelecer um padrão não apenas gramatical, mas também vocabular e fonético. De certo modo, o vácuo deixado pelo nosso ensino nesses dois últimos aspectos foi preenchido pelas mídias de massa, sobretudo a televisão. Talvez o grande mérito da Rede Globo tenha sido o de estabelecer uma koiné linguística, com base principalmente nos falares do Rio, São Paulo, Belo Horizonte e Brasília, mesclando o "erre" de um, o "esse" de outro, a palavra daqui com a sintaxe dali, e assim fazendo com que, na prática, as pessoas cultas de todas as regiões se entendam e não se estranhem tanto, mesmo guardando um leve acento regional.
Sem consensoA ausência de consenso sobre o léxico e a pronúncia se deve provavelmente à crença de que, enquanto a gramática produz uma divisão social entre "cultos" e "ignorantes", as palavras e o modo de pronunciá-las operam um corte entre regiões geográficas. Isso não é totalmente verdade: há diferenças gramaticais entre regiões (como usar ou não artigo definido antes de nome de pessoa, ou empregar "tu" em lugar de "você"), assim como classes sociais distintas usam vocábulos distintos e pronúncias distintas. Na verdade, as dimensões léxica e fonética estão mais sujeitas a variações de sexo, faixa etária, grau de instrução, profissão, religião, do que a dimensão gramatical, cujas variações se dão basicamente por dois fatores: escolaridade e circunstâncias do ato de comunicação - que determinam os níveis de linguagem, ou registros.

Aldo Bizzocchi é doutor em linguística pela USP e autor de Léxico e Ideologia na Europa Ocidental (Annablume)
www.aldobizzocchi.com.br

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