Sociedade argentina tem dificuldade de compreender práticas das religiões de matriz africana, e a umbanda passou a ser considerada “ameaçadora” em função dos sacrifícios de animais, que poderiam descambar para sacrifícios humanos, relata Alejandro Frigerio
Márcia Junges
Márcia Junges
Uma narrativa dominante na Argentina se encarrega de glorificar a “branquitude” de sua população, em detrimento da mestiçagem e da colaboração de outras culturas para sua formação nacional. “Essa narrativa dominante apresenta a sociedade argentina como ‘branca’, ‘europeia’, ‘moderna’, ‘racional’ e ‘católica’. Para isso, ela invisibiliza presenças e contribuições étnicas e raciais, e, quando elas aparecem, as situa no distanciamento temporal ou geográfico – no passado ou nas margens geográficas da nação. Ela se caracteriza por uma notável cegueira com relação aos processos de mestiçagem e hibridação culturais”, afirma Alejandro Frigerio na entrevista que concedeu por e-mail à IHU On-Line.
É dentro desse contexto que deve ser compreendida a recepção das práticas da umbanda e do batuque em solo argentino. Some-se a isso o fato do pânico moral difundido sobre aquilo que se passou a chamar de “seitas”, que deterioraram “gravemente a imagem das religiões não católicas e, especialmente, das de origem afro-brasileira”, pontua Frigerio. O pesquisador menciona, ainda, a influência da umbanda, da quimbanda e do batuque gaúchos na prática da religião nessa nação vizinha. E conclui: “Apesar da atração que essas religiões têm para os indivíduos que frequentam os seus templos em busca de solução para os problemas de sua vida pessoal, sentimental e de trabalho, a umbanda e o batuque são religiões socialmente estigmatizadas”.
Alejandro Frigerio é doutor em Antropologia pela Universidade da Califórnia, em Los Angeles, Estados Unidos, com a tese Con la Bandera de Oxalá: Construcción Social y Mantenimiento de la Realidad en las Religiones Afro-Brasileñas en Argentina. Cursou mestrado nessa mesma instituição com a dissertação La Búsqueda de África: Nostalgia Proustiana en los Estudios Afrobrasileños. De sua produção bibliográfica, citamos Ciencias Sociales y Religión en el Cono Sur. Introducción y compilación de textos (Buenos Aires: CEAL. 1993), Cultura negra en el Cono Sur: Representaciones en conflito (Buenos Aires: EDUCA, 2000) e Argentinos e Brasileiros: Encontros, imagens, estereótipos (con Gustavo Lins Ribeiro como segundo compilador) (Petrópolis: Vozes, 2002). Na coletânea The Diaspora of Brazilian Religions(Netherlands: Brill, 2013) colabora com o artigo Umbanda and Batuque in the Southern Cone: Transnationalization as cross-border religious flow and as social field.
Leciona na Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais Argentina – FLACSO e da Universidade Católica Argentina – UCA. É pesquisador do CONICET. Para maiores informações sobre sua trajetória acadêmica, consulte http://www.alejandrofrigerio.com.ar.
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é o contexto de inserção da umbanda e do batuque no Cone Sul?
Alejandro Frigerio – A narrativa dominante da nação argentina, ao contrário das vigentes em outros países latino-americanos, não glorifica a mestiçagem, mas sim a branquidade da sua população. Essa imagem ideal de como a Argentina é e de como teria se desenvolvido é transmitida por meio da educação formal, mas também de maneira informal através de uma multiplicidade de interações na vida cotidiana. Ela chega a fazer parte do senso comum dos argentinos (principalmente dos portenhos) e influencia na forma como eles se relacionam com – e classificam – os diversos indivíduos e grupos que encontram.
Essa narrativa dominante apresenta a sociedade argentina como “branca”, “europeia”, “moderna”, “racional” e “católica”. Para isso, ela invisibiliza presenças e contribuições étnicas e raciais, e, quando elas aparecem, as situa no distanciamento temporal ou geográfico – no passado ou nas margens geográficas da nação. Ela se caracteriza por uma notável cegueira com relação aos processos de mestiçagem e hibridação culturais. Tal narrativa supõe que o “caldeirão de raças” – através de uma espécie de alquimia social – teria fundido todas as contribuições étnicas originais dando origem a um novo tipo social, diferente de todos os seus elementos constitutivos. A partir da ação desse caldeirão, já não existiriam comunidades diferenciadas cultural ou racialmente como parte do corpo da nação – com exceção de remanescentes de populações indígenas em territórios afastados da capital “branca”.
No que diz respeito aos afro-argentinos especificamente, ela enfatiza o seu desaparecimento precoce (no fim do século XIX) e a irrelevância das suas contribuições para a cultura (e até para a genética) local. Embora eles já não constituam os 30% da população de Buenos Aires como em 1810, ainda existem muitos argentinos afrodescendentes. Alguns contam entre os seus ancestrais os escravizados e os libertos daquela época; outros são como fruto de movimentos migratórios em diversos momentos históricos. O número superaria muito os magros 149.493 que o último censo captou (2010), em que, pela primeira vez, fez-se uma pergunta sobre afrodescendência, embora depois de uma campanha de sensibilização muito defeituosa e limitada, que nunca chegou a explicar o que é ser “afrodescendente”.
Conjunção entre batuque e umbanda
As religiões trazidas pelos escravizados africanos sobreviveram na Argentina pelo menos até o fim do século XIX. Sabemos disso pelo testemunho de um conhecido psiquiatra e ensaísta, José Ingenieros , que, em um de seus livros, descreve um ritual do qual havia participado em 1893. A cerimônia, à qual ele assistiu quando criança levado por uma mulher negra, é denominada de “dançar o santo” e é bastante semelhante às que se observam hoje em todo o continente americano.
A presença atual no país de religiões derivadas das africanas é explicada pela sua reintrodução a partir do Sul do Brasil e do Uruguai, a partir da segunda metade da década de 1960. No começo da década de 1970, havia aproximadamente uma dezena de templos, a maior parte dos quais praticava principalmente a umbanda. Embora vários templos possuíssem permissão para funcionar legalmente, seus líderes tinham problemas frequentes com a polícia, que, sob a acusação de “exercício ilegal da medicina”, os prendia, chegando às vezes a interromper cerimônias e a destruir ou confiscar imagens e outros objetos de culto.
Durante a década de 1970, houve um crescimento lento e silencioso da religião, e até o fim desse período já havia vários templos em funcionamento. Muitos filhos de santo, que pertenciam aos primeiros templos, após discussões com seus líderes religiosos (pais e mães de santo), viajaram ao Brasil – especialmente para a cidade de Porto Alegre, no Sul – em busca de novos mentores sob os quais pudessem continuar sua aprendizagem religiosa. Ali eles foram iniciados no batuque, uma variante mais africana de religiosidade afro-brasileira originária do Rio Grande do Sul, considerada por eles mais poderosa do que a umbanda.
Aumentaram também as visitas à Argentina de pais brasileiros (gaúchos) que assistiam a festas ou a inaugurações de templos de seus filhos de santo e que, então, iniciavam novos filhos nessa variante.
Concomitantemente, chegaram pais de santo uruguaios para se radicarem na grande Buenos Aires e formaram uma tradição religiosa com algumas características distintas com relação à brasileira – embora dela derive, já que o batuque e a umbanda gaúchas chegaram a Montevidéu uma década antes que a Buenos Aires. A umbanda não foi deixada de lado pelo desenvolvimento do batuque – pelo contrário, as sessões de caridade semanais realizadas dentro dessa variante garantiam o ingresso de novos fiéis –, e até o fim da década de 1970, a religião na Argentina tornou-se a prática conjunta de ambas as variantes.
Crescente número de templos
O retorno à democracia, em 1983, provocou um boom nas inscrições de templos de umbanda no Registro Nacional de Cultos, a partir de 1984. Muitos templos que funcionavam privadamente abriram suas portas ao público; outros, que não haviam se registrado, o fizeram; e novos templos foram abertos com maior assiduidade do que no período anterior. Atualmente, como à época, a maioria dos templos está localizada na grande Buenos Aires. O seu número exato é difícil de especificar, mas as estimativas de alguns praticantes de que seriam cerca de três mil casas de religião podem não ser exageradas. Também existe um número crescente de templos em diversos lugares do interior do país – geralmente nas capitais provinciais.
Além da umbanda e do batuque, todos os templos também praticam a quimbanda, a variante de religiosidade afro-brasileira que se caracteriza por render culto aos exús e a pomba-giras. Considerada no começo parte da umbanda, essa variante adquiriu cada vez mais protagonismo até se independizar dela e quase ofuscá-la na última década.
IHU On-Line – Que traços essas religiões mantêm de sua matriz brasileira e africana? Quais são as maiores diferenças da prática dessas religiões no Cone Sul em relação ao modelo brasileiro?
Alejandro Frigerio – O batuque gaúcho não é tão conhecido como deveria ser no próprio Brasil, mas tem uma importante presença na parte Sul do país e características próprias que o diferenciam do candomblé, a variante mais conhecida e difundida das religiões de matriz africana. A prática da religião na Argentina se ajusta principalmente ao modelo da umbanda, quimbanda e batuque gaúchos. É difícil avaliar as diferenças, já que no próprio Brasil não há um único “modelo”, mas sim vários, de acordo com a variante regional (candomblé, batuque, xangô, tambor das minas) e as nações dentro de cada variante. Até mesmo os templos que pertencem à mesma nação dentro da mesma variante têm diferenças – portanto, não devemos superdimensionar a “homogeneidade” da prática religiosa brasileira. A variedade de práticas e crenças entre templos se translada para qualquer lugar geográfico para onde essas religiões se expandem.
No novo contexto, as diferenças se desenvolvem principalmente em Montevidéu (provavelmente por parte de uma das pioneiras brasileiras da religião lá, a Mãe Teta, com casa em Livramento). A principal é a existência da chamada “umbanda cruzada”, que utiliza sangue em seus rituais. Também a popularidade de entidades espirituais chamadas “africanos”, que são espíritos dos escravizados jovens que fugiram da escravidão e formaram os quilombos (portanto, diferenciam-se dos pretos velhos em idade e em rebeldia). Embora essas entidades estivessem presentes no terreiro de Livramento da Mãe Teta, eles rapidamente ganharam popularidade no Uruguai e, na última década, na Argentina, enquanto são escassamente ou nada conhecidos na umbanda de Porto Alegre.
Variantes
Na Argentina, os pais e as mães que reivindicam uma linhagem exclusivamente brasileira praticam a umbanda seguindo os padrões de Porto Alegre. Aqueles que reivindicam uma linhagem mais “uruguaia” – ou seja, que aprenderam com líderes uruguaios que reconhecem sua descendência da Mãe Teta – são mais propensos a praticar a “umbanda cruzada”.
Neste país, durante a última década, produziram-se outros desenvolvimentos inovadores. Principalmente a crescente expansão do que se conhece como Religião Africana Tradicional e de variantes afro-cubanas (como a Regla de Ocha e o Palo Mayombe). Em ambos os casos, como parte de um processo de reafricanização, de busca de conhecimentos considerados mais “puros”, mais próximos da raiz africana e com um melhor conhecimento da “tradição original” – e, portanto, também com mais axé ou força espiritual. Em geral, trata-se de praticantes de umbanda, de quimbanda, de batuque que, desconformes com o nível de conhecimento religioso dessas variantes, buscam aprofundá-lo iniciando-se em outras. Os praticantes da Religião Africana Tradicional buscam na tradição africana divinatória de Ifa e no seu vasto corpus mítico o equivalente a um “livro sagrado” ocidental. Para isso, conseguem mentores nigerianos, geralmente de Ilé Ifé, ou se tornam discípulos dos pioneiros locais que foram iniciados há (uruguaios, argentinos e, em um caso, um brasileiro que há muito tempo se radicou no país). Outros buscam a mesma coisa, mas nas tradições afro-cubanas. Em ambos os casos ainda são desenvolvimentos minoritários, mas com muita visibilidade dentro do mundo religioso e em franco crescimento.
Exu Caveira e Gauchito Gil
O abandono do batuque (no caso dos convertidos à santeria cubana) ou o seu complemento com práticas divinatórias e rituais africanos – em prol de uma prática “melhor”, mais “completa” e mais “eficaz” – causam fortes debates locais.
Outro desenvolvimento recente – e que não vai no sentido de uma maior “pureza”, mas sim de um sincretismo inovador – é a crescente presença de devoções populares argentinas dentro de alguns templos. Principalmente, de San La Muerte, identificado com Exú Caveira, ambos representados por uma figura com caveira e com o cemitério como lugar de morada. Esse processo parece ocorrer juntamente com a expansão da umbanda e da quimbanda (em menor medida, do batuque) entre setores populares argentinos nos últimos 15 anos – originalmente, seus praticantes pertenciam majoritariamente à classe média baixa. Timidamente (e criticamente), diz-se que, em alguns templos, também aparece o Gauchito Gil, o santo popular argentino de maior devoção atual.
IHU On-Line – De matriz africana e indígena, como a umbanda repercute entre essas etnias nos outros países do Cone Sul?
Alejandro Frigerio – Em geral, tanto na Argentina como no Uruguai, essas religiões são praticadas majoritariamente por indivíduos que poderíamos considerar como “brancos”. Em Montevidéu, ocorrem alguns cruzamentos de religião e “raça”, já que existem afro-uruguaios que as praticam e reivindicam a sua origem afro ou africana.
Um desenvolvimento interessante que ocorre na Argentina é que, para tentar melhorar a imagem negativa que a religião possui (que eu detalho mais abaixo), os umbandistas argentinos, limitados por uma narrativa dominante de nação que não dá lugar a expressões culturais negras na historia argentina, tentaram, através de congressos, publicações ou intervenções na mídia, apresentar uma contranarrativa dessa história, que enfatizasse as contribuições negras à cultura nacional – como uma forma de encontrar um lugar para suas práticas no presente. Os seus esforços, porém, ficaram limitados a espaços muito restritos e não massivos. As acusações vigentes desde a década de 1980 de que “os pais” praticariam, principalmente, magia também os excluem de uma nação que se considera não só homogênea e europeia, mas também moderna, e sobretudo racional, na qual não há espaço algum – e, portanto, nem direitos cidadãos – para quem pratica a magia.
IHU On-Line – Muitas vezes, no Brasil, essas religiões são alvo de preconceito. Nesse sentido, qual é a situação nos outros países do Cone Sul?
Alejandro Frigerio – Apesar da atração que essas religiões têm para os indivíduos que frequentam os seus templos em busca de solução para os problemas de sua vida pessoal, sentimental e de trabalho, a umbanda e o batuque são religiões socialmente estigmatizadas. Durante a segunda metade da década de 1980, a umbanda adquiriu certa visibilidade nos meios de comunicação, como um dos novos grupos religiosos presentes na Argentina. Naquela época, ela não era considerada pelos meios de comunicação como uma das “seitas” mais preocupantes, mas era questionada – principalmente por sociedades protetoras dos animais – pela prática do sacrifício ritual de animais. Se a manipulação da realidade cotidiana por meios sobrenaturais (sua ênfase na “magia”) despertava suspeitas, o fato de que fosse mediante sacrifícios de animais era mais irritante. Esse foi – e ainda é – o aspecto menos compreendido e mais controverso da religião, e que motivou as críticas mais fortes contra ela.
Em meados de 1992, a umbanda se viu envolvida – injustificadamente – em um escândalo levantado com base no assassinato de uma criança no Brasil. A acusação (infundada) de um sacerdote católico de que um pai de santo teria sacrificado ritualmente uma menina em Buenos Aires ajudou a desencadear um pânico moral sobre “as seitas”, que deteriorou gravemente a imagem das religiões não católicas e, especialmente, das de origem afro-brasileira. Instalou-se a suspeita de que o sacrifício de animais podia levar ao assassinato de seres humanos, e a umbanda foi se transformado, cada vez mais, em uma religião considerada ameaçadora. Seus praticantes perderam totalmente a capacidade de gerenciar a imagem pública da sua religião e, até hoje, a maior parte das referências a essas religiões que aparecem nos meios de comunicação aludem a crimes realizados por supostos praticantes delas.
Contribuição negra
Desde meados da década de 1980, os afroumbandistas idealizaram diversas estratégias para divulgar a sua religião e melhorar a sua imagem, mas com pouco resultado. A mais utilizada foi enfatizar o que eles consideram como aspectos “culturais” da sua prática religiosa, principalmente a música e a dança, e ressaltar a sua origem negra e africana – em detrimento da brasileira. Isso lhes permitiu fazer uma conexão com a história e o patrimônio cultural afro do país e argumentar que suas práticas religiosas se correspondem com um legado pouco reconhecido, mas valioso, da cultura argentina. Reivindicando a presença negra no passado argentino e a sua contribuição para a cultura do país, eles podem justificar a sua presença atual. Com esse tipo de argumento e através da realização de vários congressos e eventos públicos, os praticantes de religiões “de origem africana” foram os primeiros a reivindicar, no início dos anos 1990, com alguma visibilidade social, o patrimônio histórico-cultural afro-argentino – antes que outros profissionais de cultura afro-americana – e antes da revisibilização dos próprios afro-argentinos.
“Religião de negros”
No entanto, pela falta de recursos, os seus esforços para apresentar uma contranarrativa da nação que enfatizasse as contribuições africanas à cultura nacional – como uma forma de encontrar um lugar para as suas práticas no presente – se mantiveram dentro de âmbitos restritos. Nos últimos anos, a crescente massividade das festas para Iemanjá no dia 2 de fevereiro (principalmente em Mar del Plata, mas também na costa de Quilmes, na Grande Buenos Aires) se tornaram uma interessante forma de ganhar visibilidade nos meios de comunicação fora das páginas policiais. Em Montevidéu, onde há mais de uma década essa festa representa uma das maiores celebrações religiosas no espaço público, ela já é a principal carta de apresentação perante a sociedade local.
IHU On-Line – Em que medida se pode falar da umbanda e do batuque como religiões de fronteira enquanto campo social?
Alejandro Frigerio – Na Argentina, elas não são religiões de fronteira. A esmagadora maioria dos templos se encontra na grande Buenos Aires, e de lá se expandiu a prática religiosa para outras cidades do país.
A prática religiosa constitui campos sociais transnacionais, na medida em que os pais e mães mantêm contato, mais ou menos fluido, com seus iniciadores em Porto Alegre ou em Montevidéu – e, ultimamente, Havana ou Ilé Ifé. Os membros dessas famílias e linhagens religiosas formam uma comunidade transnacional de fieis, na medida em que reconhecem que um aspecto muito importante de suas vidas, tanto ritual como diária, pode ser fortemente influenciado pelo que acontece na casa de seu pai ou avô de santo, em outro país, a centenas de quilômetros de distância.
Os campos sociais transnacionais criados por linhagens religiosas na prática de religiões afro-brasileiras na Argentina podem ser imaginados como dois triângulos isósceles, planos e sobrepostos: um com seu vértice superior apontando para Porto Alegre; e um menor com seu vértice apontando para Montevidéu. Para algumas linhagens religiosas, Montevidéu é vista como a Meca e o ápice de suas práticas religiosas; para outras, é Porto Alegre. Com o tempo, o triângulo apontando para Montevidéu se tornou maior, igualando (ou talvez ultrapassando) aquele voltado para Porto Alegre. Triângulos menores, correspondendo a campos sociais criados por outras variantes de religiões afro-brasileiras presentes na Argentina, apontam para a Bahia (Candomblé), Cuba (Santeria) e agora também, depois do desenvolvimento do movimento de reafricanização, para a Nigéria. O número de indivíduos participando nesses campos sociais transnacionais é muito menor do que aquele correspondente ao batuque. Não há mais do que uma dúzia de templos de Candomblé em Buenos Aires, talvez 20 ou 30 templos de Santeria, e outros 20 que afirmam praticar, além da veneração do orixá, adivinhação de Ifá. Os dois últimos grupos, apesar de seu pequeno número, se tornaram importantes simbolicamente na última década.
Durante a última década, o uso difundido da internet na Argentina tornou possível a existência de novos espaços sociais transnacionais onde os praticantes podem se encontrar online, e discutir o propósito e as características de suas práticas religiosas. Através de internet, o conhecimento religioso circula de maneira nunca vista; novas identificações nacionais e transnacionais são formadas e exibidas; alianças são forjadas e rompidas; e novos entendimentos, alcançados sobre crenças, rituais e história.
IHU On-Line – Como podemos compreender a transnacionalização das religiões, como no caso destas que são foco de seu estudo?
Alejandro Frigerio – Para entender como essas religiões tão pouco enraizadas na cultura local podem ter êxito, é necessário compreender que elas possuem – ao contrário do que muitos pensam – uma grande afinidade com crenças do extenso e dinâmico catolicismo popular argentino. As semelhanças entre esse tipo de religiosidade popular e a umbanda incluem: a crença em uma multiplicidade de seres espirituais (santos/entidades) que podem ajudar as pessoas a resolver problemas específicos; a ideia de que o cotidiano é influenciado pelas relações que o indivíduo mantém com o mundo espiritual; e que estas relações e, consequentemente, a vida do indivíduo podem ser favorecidas mediante a entrega das oferendas adequadas; e o conceito de que os seres espirituais podem se comunicar diretamente com o homem comum.
Grande parte dessas crenças e práticas do catolicismo popular não são vistas com bons olhos pelos sacerdotes católicos, que tentam inculcar que os santos são principalmente modelos de vida e não dispensadores de graças, e que não aprovam a relação muito independente que os fiéis costumam estabelecer com eles. Nos templos de umbanda e batuque, ao contrário, essas ideias não só encontram acolhida, mas também existe, além disso, um formidável arsenal de práticas mágico-religiosas que detalha e codifica os rituais, as oferendas e os seres espirituais passíveis de serem mobilizados para benefício próprio. O sistema de crenças das religiões afro-brasileiras amplifica e reforça as ideias já presentes naqueles que se aproximam dos seus templos sobre a causalidade dos seus problemas.
Os pais e mães locais realizaram grandes esforços de tradução dos novos conceitos religiosos, levando em conta as suas afinidades com tais crenças preexistentes na sociedade argentina. A utilização da umbanda como uma ponte ou etapa intermediária entre o catolicismo popular e o batuque parece ser uma estratégia particularmente apropriada. A conversão à nova religião se dá, assim, de forma gradual e pautada, permitindo um deslocamento do indivíduo pelos diversos papéis religiosos na medida em que esteja preparado para compreendê-los e assumi-los.
Tradução de Moisés Sbardelotto
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