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“Hollande vai ser o Lula da Europa. Vai ser muito social-democrata. Não vai mudar o sistema fundamental. Irá adaptá-lo”, declara o sociólogo belga.
Patricia Fachin E César Sanson
Patricia Fachin E César Sanson
A crise econômica e política europeia é a manifestação de “um conflito entre duas lógicas: a lógica dos interesses do capital e a lógica dos interessas do bem-estar social”, declara o sociólogo belga François Houtart à IHU On-Line. Segundo ele, “durante algum tempo houve a possibilidade, com o regime social-democrata, de combinar os dois interesses. Mas agora, com a crise, há uma eleição: ou um ou outro”.
Na entrevista a seguir, concedida pessoalmente à IHU On-Line, no Instituto Humanitas Unisinos - IHU, por conta de sua vinda ao Brasil, Houtart analisa os impactos da crise europeia nos países atingidos e menciona as implicações políticas decorrentes. “Os partidos políticos clássicos continuam no poder: a social-democracia ou os partidos liberais de direita. Mas vemos em alguns países duas novas forças políticas ainda marginais: a extrema direita e movimentos à esquerda da social-democracia na França, na Grécia, na Espanha”. Embora não vislumbre a ascensão da direita na Europa, ele menciona que os partidos estão se popularizando entre as classes trabalhadoras. “Uma parte da extrema direita na França, a Frente Nacional, tem 18% de aceitação, mais da metade desse percentual é oriundo da classe operária. Essas pessoas estão marginalizadas e o discurso da extrema direita é anticapitalista, anti-imigração e antirracista. Esta parte da classe trabalhadora vê a imigração como a causa fundamental do desemprego. A propaganda da extrema direita vai na direção de acusar os imigrantes. Os mais pobres, que não têm uma visão analítica, votam na direita”, relata.
Em relação ao futuro da esquerda na Europa, Houtart é enfático: “eles podem crescer ou decrescer, porque a maioria das pessoas tem medo de perder o que possuem e, por isso, continuam a votar nos gerentes do sistema, que são a extrema direita ou a social democracia, que já não têm tantas diferenças”. E dispara: “A queda do muro de Berlim, ainda na Europa, repercute no sentido de que o socialismo não é a solução. (...) Falta à classe política europeia audácia, pensamento novo, para justamente criar, pouco a pouco, outro projeto. A Europa está totalmente dominada pelas forças econômicas. Eu penso que têm 16 mil lobistas permanentes em Bruxelas, representantes das grandes empresas multinacionais, para influir no funcionamento da comunidade”.
Na avaliação de Houtart, o avanço da democracia participativa não é suficiente para mudar a conjuntura atual; é preciso mudanças econômicas e políticas. “Nada menos democrático do que a economia capitalista, a concentração do poder de decisão, a relação desigual entre homens e mulheres. O desafio das instituições sociais, culturais, religiosas é encontrar uma maneira de introduzir o princípio democrático para fazer com que os seres humanos sejam sujeitos de sua história, e não somente clientes de partidos políticos”, conclui.
François Houtart (foto abaixo) é graduado em Filosofia e Teologia pelo Seminário Mechelen, Bélgica, mestre em Ciências Sociais pela Universidade Católica de Louvain, e doutor em Sociologia pela mesma instituição. É professor emérito da Universidade Católica de Louvain. Lançourecentemente o livro A Agroenergia - Solução para o Clima ou Saída da Crise para o Capital? (Petrópolis: Editora Vozes, 2010).
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a natureza e a essência da crise econômica na Europa?
Em relação ao futuro da esquerda na Europa, Houtart
Na avaliação de Houtart, o avanço da democracia participativa não é suficiente para mudar a conjuntura atual; é preciso mudanças econômicas e políticas. “Nada menos democrático do que a economia capitalista
François Houtart
Confira a entrevista.
IHU On-Line – Qual é a natureza e a essência da crise econômica na Europa?
François Houtart – A crise europeia é parte da crise mundial que se iniciou nos EUA com a crise financeira do subprime [1], mas que afetou também a Europa e o sistema financeiro europeu. A causa fundamental desta crise é a diferença entre a economia real e a economia artificial, ou seja, a economia financeira. A economia real mundial, nos últimos 20 anos, tem decaído e, desde os anos 1990, o capital financeiro cresceu e passou a assumir um papel hegemônico dentro do sistema capitalista. Atualmente a importância relativa do capital financeiro é 11 vezes maior do que o PIB mundial. É uma diferença enorme e, em algum momento, essa “bola” financeira teria de estourar, pois era totalmente artificial. Como disse Susan George, uma norte-americana que vive Paris, essa é uma economia cassino, onde a especulação tem tido um papel enorme. Em grande parte isso acontece por causa da existência dos paraísos fiscais, para onde o dinheiro das multinacionais e dos fundos de pensão é enviado. Esses paraísos fiscais não contribuem para a riqueza mundial, pois simplesmente acumulam, acumulam e acumulam.
IHU On-Line – Essa crise pode se expandir para o Brasil?
François Houtart – Sim, a crise já começa a afetar os países emergentes: Brasil, China, Índia. Em particular, o Brasil por conta da desindustrialização e pelo fato de ter uma economia baseada na extração de minérios e commodities. Por isso seria necessário a integração dos países da América Latina.
O modelo político adotado no Brasil, em que todos podem crescer economicamente, é vulnerável a crises mundiais. Talvez os impactos não serão sentidos em curto prazo, mas em médio e longo prazo. A questão fundamental neste debate é a lógica do sistema capitalista, que é movido pelo lucro e, obviamente, pelo lucro financeiro. Aliás, o sistema financeiro tem sido o sistema orientador de toda a economia mundial.
IHU On-Line – Como a crise tem se manifestado nos diferentes países da Europa? Pode nos dar um breve panorama de como ela atinge a França, Itália, Alemanha, Espanha e Grécia?
François Houtart – A crise é evidentemente mundial, mas suas as características são particulares em cada país. Os países do sul da Europa são mais afetados, como Grécia, Portugal, Espanha, e Itália. Em parte isso acontece porque são economias mais jovens, com menos peso industrial, e, no caso da Espanha, se trata de uma economia muito especulativa. Para se ter ideia, a cada semana na Espanha cerca de 50 mil pessoas são retiradas de suas casas porque não podem pagar o aluguel. Isso é a irracionalidade total do sistema capitalista.
Na Grécia há particularidades, porque o governo foi extremamente corrupto, divulgando dados estatísticos falsos durante anos. A Alemanha, que é a economia mais forte da Europa, é relativamente sólida, mas a qual custo? Quase a metade da classe operária da Alemanha não tem mais contratos de trabalho definidos em longo prazo; são contratos em curto prazo. Isso acontece porque é permitido diminuir o salário e, assim, o custo do milagre alemão é pago, em grande parte, pela classe operária. A economia alemã se fortalece por conta da exportação. E isso tem graves consequências na Europa, porque, para salvar o sistema financeiro e os bancos, os Estados europeus têm gastado bilhões de euros, e por isso se endividaram.
A ordem do Banco Central Europeu é de que nenhum Estado pode ter uma dívida maior do que 3% do PIB e, por isso, devem reduzir os gastos. A questão é que se trata de Estados que haviam conquistado o bem-estar social. Para reduzir a dívida, então, os Estados terão de reduzir os serviços públicos de saúde, educação, pensões, salário mínimo. O salário mínimo na Grécia é algo em torno de 400 euros. Assim, é o povo quem tem de pagar a dívida do Estado, que se deve, em grande parte, à salvação dos bancos e do sistema financeiro.
IHU On-Line – Quais são as reais ameaças que a conquista histórica do Welfare State já vem sofrendo na Europa?
François Houtart – Já se anuncia na imprensa o fim do estado de bem-estar social na Europa. Claro que a situação é diferente na Grécia. Na Bélgica, o estado de bem-estar social ainda é mais sólido, mas não se sabe por quanto tempo.
IHU On-Line – Como o senhor analisa a insistência de austeridade da Alemanha para com a Grécia?
François Houtart – Essa austeridade só fará aumentar a crise, porque as políticas de austeridade ditas para favorecer o crescimento diminuem o poder de compra das pessoas. Como é possível pensar em crescimento se o poder de compra diminui? É algo totalmente contraditório. Joseph Stiglitz tem dito que estas são políticas criminais, porque não são anticíclicas. A Alemanha tem um regime direitista e vive a serviço do capital. Evidentemente, os interesses do capital são de continuar a acumulação e mantê-la, sem se preocupar com o bem-estar da população.
Existe um conflito entre duas lógicas: a lógica dos interesses do capital e a lógica dos interessas do bem-estar social. Durante algum tempo houve a possibilidade, com o regime social-democrata, de combinar os dois interesses. Mas agora, com a crise, há uma eleição: ou um ou outro.
IHU On-Line – Foi positivo para a Europa ter criado uma moeda única?
François Houtart – Sim. O euro foi uma criação positiva, porque é interessante para uma região ter uma moeda própria para não depender do dólar. Mas as condições de criação do euro se deram na lógica do sistema capitalista, com um Banco Central que se diz autônomo da política, mas não é autônomo dos interesses capitalistas. Isso tem provocado, por exemplo, a impossibilidade para um país como a Grécia de ter uma política monetária adaptada à situação da crise. Por isso a Grécia tem de obedecer à Alemanha, e tinha de obedecer à França, durante o governo Sarkozy.
IHU On-Line – Em função da crise econômica e política, seria o caso de extinguir o Euro?
François Houtart – Não. Mas seria preciso mudar as regras de funcionamento. Porque se extinguirem o euro, a Europa irá depender ainda mais da economia norte-americana, porque o dólar é a única moeda internacional. E esse é o problema da China e da América Latina, porque são muito vulneráveis por conta do dólar. A China tem quase um terço da dívida norte-americana em dólares. E se o dólar continuar baixando, isso significará uma redução das reservas monetárias latino-americanas.
Da mesma forma que a Europa, hoje os asiáticos estão pensando na criação de uma moeda própria para escapar da hegemonia norte-americana. A reserva federal norte-americana está emitindo dólares e há quatro anos não divulga quantos dólares estão produzindo para pagar a dívida norte-americana, e as guerras de Iraque, Afeganistão etc. Trata-se de um segredo de Estado.
IHU On-Line – Como resolver esta instabilidade econômica gerada por conta do dólar?
François Houtart – Participo da comissão das Nações Unidas sobre a crise financeira e monetária com Stiglitz, e durante quase um ano discutimos essas questões. Eu era o único membro desta comissão que não era economista; os demais eram neokeynesianos. A comissão chegou à conclusão de que era necessário regular o sistema econômico de maneira radical no sentido de suprimir os paraísos fiscais, de criar um conselho econômico à parte do sistema de segurança da ONU, de reformar o Banco Mundial, o FMI, de mudar as Agências de Risco etc. Mas nenhuma dessas propostas foi aprovada.
A comissão também propôs a criação de moedas regionais e a criação de uma moeda que já existe no FMI, a qual lhe permite emitir moedas de intercâmbio e não moedas de circulação. Evidentemente os Estados Unidos reagiram contrariamente, porque uma base imperialista ainda existente no país quer manter o dólar como moeda internacional. Essa possibilidade, embora seja desenvolvida dentro do sistema capitalista, poderia romper com a hegemonia de um único centro frente a outros. Seria, então, possível criar um mundo com vários polos.
IHU On-Line – Que futuro vislumbra para o Euro?
François Houtart – Não penso que irá mudar muito. É possível que a Grécia saia do euro e que isso represente um golpe para a moeda europeia. Mas ainda é cedo para dizer se isso significa o fim do euro.
IHU On-Line – A crise econômica empurrou a Europa para uma crise política? Como ela se manifesta?
François Houtart – Evidentemente que sim. Os partidos políticos clássicos continuam no poder: a social-democracia ou os partidos liberais de direita. Mas vemos em alguns países duas novas forças políticas ainda marginais: a extrema direita e movimentos à esquerda da social-democracia na França, na Grécia, na Espanha. Uma parte da extrema direita na França, a Frente Nacional, tem 18% de aceitação, mais da metade desse percentual é oriundo da classe operária. Essas pessoas estão marginalizadas e o discurso da extrema direita é anticapitalista, anti-imigração e antirracista. Esta parte da classe trabalhadora vê a imigração como a causa fundamental do desemprego. A propaganda da extrema direita vai na direção de acusar os imigrantes. Os mais pobres, que não têm uma visão analítica, votam na direita.
A extrema esquerda tem apenas 1 ou 2% de aprovação. A esquerda que tem importância se parece com a social-democracia, mas é mais articulada com um projeto que não é social-democrata. Eles podem crescer ou decrescer, porque a maioria das pessoas tem medo de perder o que possuem e, por isso, continuam a votar nos gerentes do sistema, que são a extrema direita ou a social-democracia, que já não têm tantas diferenças.
IHU On-Line – O senhor compartilha a ideia de que a Europa pode cair nos braços da direita?
François Houtart – Não. Basta ver o que aconteceu com Sarkozy, com a direita na Grécia, na Itália. A Espanha é governada pela direita, mas devido à falta da social-democracia e do socialismo espanhol, que foi quase mais neoliberal do que a direita. Na Alemanha é provável que a social-democracia vença as próximas eleições. Não penso que direita possa chegar ao poder como o fascismo chegou depois da primeira Guerra Mundial, porque as circunstâncias são diferentes. Mas penso que ela pode exercer uma pressão forte sobre as políticas de outros países.
IHU On-Line – Qual o significado político da vitória da esquerda na França? A eleição de Hollande na França pode mudar o rumo das coisas?
François Houtart – Hollande vai ser o Lula da Europa. Vai ser muito social-democrata. Não vai mudar o sistema fundamental. Irá adaptá-lo. Haverá menos austeridade, mais preocupação com o sistema. Mas não mudará o sistema.
IHU On-Line – Por que é difícil mudar o sistema?
François Houtart – Porque a força do sistema econômico ainda é muito forte, e a concentração do capital e das multinacionais ainda desempenham um papel intenso na reprodução do sistema. Por outro lado, a queda do muro de Berlim, ainda na Europa, repercute no sentido de que o socialismo não é a solução. Há assim um vazio de pensamento progressista e um vazio de soluções que não podem mais ser sustentadas pelo capitalismo ou pelo socialismo. Somente as novas gerações poderão mudar. Falta à classe política europeia audácia, pensamento novo, para justamente criar, pouco a pouco, outro projeto.
A Europa está totalmente dominada pelas forças econômicas. Eu penso que têm 16 mil lobistas permanentes em Bruxelas, representantes das grandes empresas multinacionais, para influir no funcionamento da comunidade europeia. A comissão de conselho da comunidade europeia sobre os agrocombustíveis está composta, com uma exceção, por 16 representantes de empresas desse setor.
IHU On-Line – É a política subordinada à economia?
François Houtart – Exato. E o papel das organizações sociais como sindicatos, por exemplo, é um papel subordinado. Eles foram, dentro da história social da Europa, movimentos de transformação. Mas, com o estado de bem-estar social, seu papel tem sido defender os direitos conquistados. Todavia, eles perderam sua visão progressista e seu papel de propor outro sistema econômico e social. Por isso estamos frente a uma imobilização política.
IHU On-Line – Em que medida os indignados podem mudar as regras da política? É possível esperar algum resultado político e democrático dessas manifestações?
François Houtart – Sim e não. É extraordinário ver a reação das pessoas na Espanha, especialmente dos jovens. Na Espanha, quase 50% dos jovens estão sem emprego. Mas essa é uma geração que perdeu muito a capacidade de análise, especialmente na Europa, com o fim do socialismo real e do que significou essa experiência socialista. Há um regresso das análises marxistas. Perdemos muitos instrumentos de análise da sociedade, os quais estamos recuperando pouco a pouco. Por isso a reação de hoje é um pouco anarquista. As pessoas se encontram, estão indignadas com o sistema, mas têm pouca capacidade de propor algo que possa muda-lo. Esse é o problema. Esse movimento tem capacidade de evoluir e um dia ser uma força política, mas ainda não.
IHU On-Line – As relações internacionais entre França e Alemanha devem mudar por conta da eleição do presidente Hollande na França?
François Houtart – Sim. Evidentemente a política de Ângela Merkel era muito similar à de Sarkozy, e ela apoiou a campanha dele oficialmente. A eleição de Hollande irá mudar as relações entre os dois países, porque o novo presidente da França quer diminuir as políticas de austeridade. Penso que Hollande terá de pensar em longo prazo, considerando as futuras eleições da Alemanha, porque, ao que tudo indica, a social-democracia irá vencer as urnas aí. A partir do resultado eleitoral, uma nova coalizão europeia poderia se organizar ao redor do projeto social-democrata, especialmente entre Alemanha e França. Mas eu não tenho muita esperança nesse projeto, porque ele não irá “tocar” nas questões essenciais.
IHU On-Line – Que potenciais o senhor vislumbra na agroenergia como alternativa para o capitalismo?
François Houtart – Atualmente existem três correntes de pensamento que propõe mudanças diferentes. A primeira corrente orienta no sentido de não fazer uma mudança radical. Essa é a visão atual da Comissão Europeia, ou seja, não mudar o sistema neoliberal, continuar com a privatização dos serviços públicos, com políticas de austeridade etc. A proposta dessa corrente é mudar as pessoas. Eles condenam os banqueiros, que não viram a crise, mas não sugerem mudar o sistema.
A segunda orientação é a da Comissão de Stiglitz, que propõe regular o capitalismo, porque o mercado não se autorregula. Portanto, é necessário que o Estado e organismos internacionais regulem o sistema.
A terceira orientação é de que a crise atual não é apenas uma crise conjuntural do sistema capitalista, como as que conhecemos nos últimos 200 anos. Trata-se de uma crise do sistema. A diferença desta crise com a que ocorreu em 1929 não é somente uma crise financeira com suas consequências sobre as economias reais; diferentemente, a atual situação trata-se de uma crise mais ampla, alimentar, energética, climática. Diante da de civilização há também uma crise de valores.
Alternativas
Necessitamos de alternativas, e não somente de regulação do mercado. Essa é a perspectiva que apresento juntamente com o economista egípcio Samir Amin, com o qual tenho trabalhado. Ele diz que acabou o papel histórico do capitalismo. O custo atual da manutenção do capitalismo é tão grande sobre o planeta, o clima e os recursos naturais que ele, o sistema, está vivendo um momento em que não é mais possível ser reproduzido no futuro. Esse é um problema que implica na sobrevivência do gênero humano.
Já sabemos, do ponto de vista ecológico, que estamos utilizando um planeta e meio e que a possibilidade de regeneração da terra não é mais possível. E se todo mundo destruir e consumir no mesmo nível dos EUA, necessitaremos de quatro planetas, mas só temos um.
Todas as crises têm a mesma origem: a lógica do capitalismo, que é, por um lado, a lógica do lucro, e não a do bem-estar das populações; e, por outro lado, ignorância das externalidades, de tudo o que é externo ao cálculo do mercado, que são os danos ecológicos e sociais.
Essas crises demonstram que temos de encontrar um novo paradigma da existência coletiva dos seres humanos no planeta. Como construir e pensar isso? Escrevi um livro sobre o novo paradigma pós-capitalista, tratado de ver que o bem-comum da humanidade é a vida, a capacidade de reproduzir a vida do planeta e dos seres humanos que, como dizem os indígenas de Chiapas, são a parte consciente da natureza. Podemos pensar isso a partir dos quatro fundamentos de toda a vida humana. O primeiro diz respeito à relação dos seres humanos com a natureza, quer dizer, é preciso mudar fundamentalmente esta relação. Para o capitalismo, a natureza é um recurso natural que se pode transformar em mercadoria. Devemos abandonar essa visão e respeitar a terra como fonte de toda a vida. Isso tem muitas consequências práticas. Se aceitarmos este princípio, não poderemos aceitar mais a propriedade privada dos recursos naturais, que são patrimônio da humanidade. Não se pode aceitar mais a mercantilização dos bens essenciais para a vida humana, como a água, ou as sementes.
A segunda questão é como a economia poderá construir as bases materiais da vida física, cultural, espiritual de todas as pessoas do planeta. Isso significa uma revolução na concepção de economia, que não significa simplesmente produzir bens com valor agregado. Como dizem alguns atores, o capitalismo foi um parêntese na história da humanidade e agora seu papel se esgotou.
Democracia
O terceiro aspecto é introduzir o conceito da democracia generalizada a todas as relações sociais, humanas e organizacionais. Fala-se que estamos dando um passo adiante com a democracia participativa. Mas isso não basta se não ocorrem mudanças políticas e econômicas. Nada menos democrático do que a economia capitalista, a concentração do poder de decisão, a relação desigual entre homens e mulheres. O desafio das instituições sociais, culturais, religiosas é encontrar uma maneira de introduzir o princípio democrático para fazer com que os seres humanos sejam sujeitos de sua história, e não somente clientes de partidos políticos.
Finalmente, é preciso interculturalidade, ou seja, permitir a todas as culturas os saberes, permitir que participem desta construção de um novo paradigma. Sobre esses quatro elementos, os quais são fundamentais na construção de cada sociedade, se pode construir o novo paradigma o qual devemos construir teoricamente, porque – como disseRosa Luxemburgo – “não há revolução sem teoria”. Assim, devemos continuar a elaboração teórica com a colaboração de movimentos sociais e de intelectuais para construir essa perspectiva que pode servir de base para as lutas sociais e para a convergência dos movimentos sociais. Até agora cada movimento social lutou por uma causa própria, individual, e isso é positivo, mas falta uma meta de conjunto. Por isso o conceito do bem-viver, de Sumak Kawsay, tem a sua importância, visto ser uma visão de conjunto. Claro que não devemos adotar a cosmovisão dos indígenas, mas sim a sua ideia fundamental.
Utopia
Para terminar, isso pode parecer uma utopia, mas é uma utopia necessária no sentido de buscar algo que não existe hoje, mas que poderá existir amanhã. Essa tem que ser uma meta inspirada também na fé cristã. É uma meta que já existe na prática, porque milhares de inciativas já trabalham para que houvesse outra relação com a natureza, com a criação de uma economia solidária, para se defender os direitos das mulheres, para se ter uma nova identidade cultural, etc. Esses movimentos existem, porém ainda não representam uma força para transformar o sistema. Temos visto esta diversidade nos Fóruns Sociais Mundiais, e isso é importante para criar uma nova consciência mundial.
IHU On-Line – O senhor continua marxista? Em que medida Marx continua atual para pensar as crises de hoje?
François Houtart – Sim, continuo. O pensamento marxista continua muito válido, mas precisamos adotar o marxismo como método e não como dogma. Método no sentido de refletir sobre as situações atuais, e não somente do sistema capitalista do século XIX na Europa. É muito importante o que Marx disse sobre a natureza. Ele disse que o capitalismo está destruindo o metabolismo entre natureza e seres humanos, e com consequências que serão graves e que somente o socialismo pode e deve reconstruir o metabolismo entre seres humanos e natureza.
Entretanto, os sistemas socialistas reais não acompanharam a visão da modernidade, de que não é possível um progresso linear por conta dos problemas ambientais. Nesse sentido, penso que Marx continua fundamental para analisarmos a sociedade.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo?
François Houtart – Gostaria de acrescentar a importância da visão cristã nesse processo de mudança, e a necessidade de reiniciar uma teologia da libertação, esta corrente que foi muito destruída pela Igreja institucional. Seria necessário, frente à gravidade da crise, repensar uma teologia nesse sentido e dialogar com outras religiões, como o budismo, por exemplo. Fiz meu doutorado sobre o budismo, que é uma corrente de pensamento muito importante para encontrar o problema da crise dos valores.
Notas
[1] Subprime: é um crédito de risco concedido a um tomador que não oferece garantias suficientes para se beneficiar da taxa de juros mais vantajosa.
IHU On-Line – Essa crise pode se expandir para o Brasil?
François Houtart – Sim, a crise já começa a afetar os países emergentes: Brasil, China, Índia. Em particular, o Brasil por conta da desindustrialização e pelo fato de ter uma economia baseada na extração de minérios e commodities. Por isso seria necessário a integração dos países da América Latina.
O modelo político adotado no Brasil, em que todos podem crescer economicamente, é vulnerável a crises mundiais. Talvez os impactos não serão sentidos em curto prazo, mas em médio e longo prazo. A questão fundamental neste debate é a lógica do sistema capitalista, que é movido pelo lucro e, obviamente, pelo lucro financeiro. Aliás, o sistema financeiro tem sido o sistema orientador de toda a economia mundial.
IHU On-Line – Como a crise tem se manifestado nos diferentes países da Europa? Pode nos dar um breve panorama de como ela atinge a França, Itália, Alemanha, Espanha e Grécia?
François Houtart – A crise é evidentemente mundial, mas suas as características são particulares em cada país. Os países do sul da Europa são mais afetados, como Grécia, Portugal, Espanha, e Itália. Em parte isso acontece porque são economias mais jovens, com menos peso industrial, e, no caso da Espanha, se trata de uma economia muito especulativa. Para se ter ideia, a cada semana na Espanha cerca de 50 mil pessoas são retiradas de suas casas porque não podem pagar o aluguel. Isso é a irracionalidade total do sistema capitalista.
Na Grécia há particularidades, porque o governo foi extremamente corrupto, divulgando dados estatísticos falsos durante anos. A Alemanha, que é a economia mais forte da Europa, é relativamente sólida, mas a qual custo? Quase a metade da classe operária da Alemanha não tem mais contratos de trabalho definidos em longo prazo; são contratos em curto prazo. Isso acontece porque é permitido diminuir o salário e, assim, o custo do milagre alemão é pago, em grande parte, pela classe operária. A economia alemã se fortalece por conta da exportação. E isso tem graves consequências na Europa, porque, para salvar o sistema financeiro e os bancos, os Estados europeus têm gastado bilhões de euros, e por isso se endividaram.
A ordem do Banco Central Europeu é de que nenhum Estado pode ter uma dívida maior do que 3% do PIB e, por isso, devem reduzir os gastos. A questão é que se trata de Estados que haviam conquistado o bem-estar social. Para reduzir a dívida, então, os Estados terão de reduzir os serviços públicos de saúde, educação, pensões, salário mínimo. O salário mínimo na Grécia é algo em torno de 400 euros. Assim, é o povo quem tem de pagar a dívida do Estado, que se deve, em grande parte, à salvação dos bancos e do sistema financeiro.
IHU On-Line – Quais são as reais ameaças que a conquista histórica do Welfare State já vem sofrendo na Europa?
François Houtart – Já se anuncia na imprensa o fim do estado de bem-estar social na Europa. Claro que a situação é diferente na Grécia. Na Bélgica, o estado de bem-estar social ainda é mais sólido, mas não se sabe por quanto tempo.
IHU On-Line – Como o senhor analisa a insistência de austeridade da Alemanha para com a Grécia?
François Houtart – Essa austeridade só fará aumentar a crise, porque as políticas de austeridade ditas para favorecer o crescimento diminuem o poder de compra das pessoas. Como é possível pensar em crescimento se o poder de compra diminui? É algo totalmente contraditório. Joseph Stiglitz tem dito que estas são políticas criminais, porque não são anticíclicas. A Alemanha tem um regime direitista e vive a serviço do capital. Evidentemente, os interesses do capital são de continuar a acumulação e mantê-la, sem se preocupar com o bem-estar da população.
Existe um conflito entre duas lógicas: a lógica dos interesses do capital e a lógica dos interessas do bem-estar social. Durante algum tempo houve a possibilidade, com o regime social-democrata, de combinar os dois interesses. Mas agora, com a crise, há uma eleição: ou um ou outro.
IHU On-Line – Foi positivo para a Europa ter criado uma moeda única?
François Houtart – Sim. O euro foi uma criação positiva, porque é interessante para uma região ter uma moeda própria para não depender do dólar. Mas as condições de criação do euro se deram na lógica do sistema capitalista, com um Banco Central que se diz autônomo da política, mas não é autônomo dos interesses capitalistas. Isso tem provocado, por exemplo, a impossibilidade para um país como a Grécia de ter uma política monetária adaptada à situação da crise. Por isso a Grécia tem de obedecer à Alemanha, e tinha de obedecer à França, durante o governo Sarkozy.
IHU On-Line – Em função da crise econômica e política, seria o caso de extinguir o Euro?
François Houtart – Não. Mas seria preciso mudar as regras de funcionamento. Porque se extinguirem o euro, a Europa irá depender ainda mais da economia norte-americana, porque o dólar é a única moeda internacional. E esse é o problema da China e da América Latina, porque são muito vulneráveis por conta do dólar. A China tem quase um terço da dívida norte-americana em dólares. E se o dólar continuar baixando, isso significará uma redução das reservas monetárias latino-americanas.
Da mesma forma que a Europa, hoje os asiáticos estão pensando na criação de uma moeda própria para escapar da hegemonia norte-americana. A reserva federal norte-americana está emitindo dólares e há quatro anos não divulga quantos dólares estão produzindo para pagar a dívida norte-americana, e as guerras de Iraque, Afeganistão etc. Trata-se de um segredo de Estado.
IHU On-Line – Como resolver esta instabilidade econômica gerada por conta do dólar?
François Houtart – Participo da comissão das Nações Unidas sobre a crise financeira e monetária com Stiglitz, e durante quase um ano discutimos essas questões. Eu era o único membro desta comissão que não era economista; os demais eram neokeynesianos. A comissão chegou à conclusão de que era necessário regular o sistema econômico de maneira radical no sentido de suprimir os paraísos fiscais, de criar um conselho econômico à parte do sistema de segurança da ONU, de reformar o Banco Mundial, o FMI, de mudar as Agências de Risco etc. Mas nenhuma dessas propostas foi aprovada.
A comissão também propôs a criação de moedas regionais e a criação de uma moeda que já existe no FMI, a qual lhe permite emitir moedas de intercâmbio e não moedas de circulação. Evidentemente os Estados Unidos reagiram contrariamente, porque uma base imperialista ainda existente no país quer manter o dólar como moeda internacional. Essa possibilidade, embora seja desenvolvida dentro do sistema capitalista, poderia romper com a hegemonia de um único centro frente a outros. Seria, então, possível criar um mundo com vários polos.
IHU On-Line – Que futuro vislumbra para o Euro?
François Houtart – Não penso que irá mudar muito. É possível que a Grécia saia do euro e que isso represente um golpe para a moeda europeia. Mas ainda é cedo para dizer se isso significa o fim do euro.
IHU On-Line – A crise econômica empurrou a Europa para uma crise política? Como ela se manifesta?
François Houtart – Evidentemente que sim. Os partidos políticos clássicos continuam no poder: a social-democracia ou os partidos liberais de direita. Mas vemos em alguns países duas novas forças políticas ainda marginais: a extrema direita e movimentos à esquerda da social-democracia na França, na Grécia, na Espanha. Uma parte da extrema direita na França, a Frente Nacional, tem 18% de aceitação, mais da metade desse percentual é oriundo da classe operária. Essas pessoas estão marginalizadas e o discurso da extrema direita é anticapitalista, anti-imigração e antirracista. Esta parte da classe trabalhadora vê a imigração como a causa fundamental do desemprego. A propaganda da extrema direita vai na direção de acusar os imigrantes. Os mais pobres, que não têm uma visão analítica, votam na direita.
A extrema esquerda tem apenas 1 ou 2% de aprovação. A esquerda que tem importância se parece com a social-democracia, mas é mais articulada com um projeto que não é social-democrata. Eles podem crescer ou decrescer, porque a maioria das pessoas tem medo de perder o que possuem e, por isso, continuam a votar nos gerentes do sistema, que são a extrema direita ou a social-democracia, que já não têm tantas diferenças.
IHU On-Line – O senhor compartilha a ideia de que a Europa pode cair nos braços da direita?
François Houtart – Não. Basta ver o que aconteceu com Sarkozy, com a direita na Grécia, na Itália. A Espanha é governada pela direita, mas devido à falta da social-democracia e do socialismo espanhol, que foi quase mais neoliberal do que a direita. Na Alemanha é provável que a social-democracia vença as próximas eleições. Não penso que direita possa chegar ao poder como o fascismo chegou depois da primeira Guerra Mundial, porque as circunstâncias são diferentes. Mas penso que ela pode exercer uma pressão forte sobre as políticas de outros países.
IHU On-Line – Qual o significado político da vitória da esquerda na França? A eleição de Hollande na França pode mudar o rumo das coisas?
François Houtart – Hollande vai ser o Lula da Europa. Vai ser muito social-democrata. Não vai mudar o sistema fundamental. Irá adaptá-lo. Haverá menos austeridade, mais preocupação com o sistema. Mas não mudará o sistema.
IHU On-Line – Por que é difícil mudar o sistema?
François Houtart – Porque a força do sistema econômico ainda é muito forte, e a concentração do capital e das multinacionais ainda desempenham um papel intenso na reprodução do sistema. Por outro lado, a queda do muro de Berlim, ainda na Europa, repercute no sentido de que o socialismo não é a solução. Há assim um vazio de pensamento progressista e um vazio de soluções que não podem mais ser sustentadas pelo capitalismo ou pelo socialismo. Somente as novas gerações poderão mudar. Falta à classe política europeia audácia, pensamento novo, para justamente criar, pouco a pouco, outro projeto.
A Europa está totalmente dominada pelas forças econômicas. Eu penso que têm 16 mil lobistas permanentes em Bruxelas, representantes das grandes empresas multinacionais, para influir no funcionamento da comunidade europeia. A comissão de conselho da comunidade europeia sobre os agrocombustíveis está composta, com uma exceção, por 16 representantes de empresas desse setor.
IHU On-Line – É a política subordinada à economia?
François Houtart – Exato. E o papel das organizações sociais como sindicatos, por exemplo, é um papel subordinado. Eles foram, dentro da história social da Europa, movimentos de transformação. Mas, com o estado de bem-estar social, seu papel tem sido defender os direitos conquistados. Todavia, eles perderam sua visão progressista e seu papel de propor outro sistema econômico e social. Por isso estamos frente a uma imobilização política.
IHU On-Line – Em que medida os indignados podem mudar as regras da política? É possível esperar algum resultado político e democrático dessas manifestações?
François Houtart – Sim e não. É extraordinário ver a reação das pessoas na Espanha, especialmente dos jovens. Na Espanha, quase 50% dos jovens estão sem emprego. Mas essa é uma geração que perdeu muito a capacidade de análise, especialmente na Europa, com o fim do socialismo real e do que significou essa experiência socialista. Há um regresso das análises marxistas. Perdemos muitos instrumentos de análise da sociedade, os quais estamos recuperando pouco a pouco. Por isso a reação de hoje é um pouco anarquista. As pessoas se encontram, estão indignadas com o sistema, mas têm pouca capacidade de propor algo que possa muda-lo. Esse é o problema. Esse movimento tem capacidade de evoluir e um dia ser uma força política, mas ainda não.
IHU On-Line – As relações internacionais entre França e Alemanha devem mudar por conta da eleição do presidente Hollande na França?
François Houtart – Sim. Evidentemente a política de Ângela Merkel era muito similar à de Sarkozy, e ela apoiou a campanha dele oficialmente. A eleição de Hollande irá mudar as relações entre os dois países, porque o novo presidente da França quer diminuir as políticas de austeridade. Penso que Hollande terá de pensar em longo prazo, considerando as futuras eleições da Alemanha, porque, ao que tudo indica, a social-democracia irá vencer as urnas aí. A partir do resultado eleitoral, uma nova coalizão europeia poderia se organizar ao redor do projeto social-democrata, especialmente entre Alemanha e França. Mas eu não tenho muita esperança nesse projeto, porque ele não irá “tocar” nas questões essenciais.
IHU On-Line – Que potenciais o senhor vislumbra na agroenergia como alternativa para o capitalismo?
François Houtart – Atualmente existem três correntes de pensamento que propõe mudanças diferentes. A primeira corrente orienta no sentido de não fazer uma mudança radical. Essa é a visão atual da Comissão Europeia, ou seja, não mudar o sistema neoliberal, continuar com a privatização dos serviços públicos, com políticas de austeridade etc. A proposta dessa corrente é mudar as pessoas. Eles condenam os banqueiros, que não viram a crise, mas não sugerem mudar o sistema.
A segunda orientação é a da Comissão de Stiglitz, que propõe regular o capitalismo, porque o mercado não se autorregula. Portanto, é necessário que o Estado e organismos internacionais regulem o sistema.
A terceira orientação é de que a crise atual não é apenas uma crise conjuntural do sistema capitalista, como as que conhecemos nos últimos 200 anos. Trata-se de uma crise do sistema. A diferença desta crise com a que ocorreu em 1929 não é somente uma crise financeira com suas consequências sobre as economias reais; diferentemente, a atual situação trata-se de uma crise mais ampla, alimentar, energética, climática. Diante da de civilização há também uma crise de valores.
Alternativas
Necessitamos de alternativas, e não somente de regulação do mercado. Essa é a perspectiva que apresento juntamente com o economista egípcio Samir Amin, com o qual tenho trabalhado. Ele diz que acabou o papel histórico do capitalismo. O custo atual da manutenção do capitalismo é tão grande sobre o planeta, o clima e os recursos naturais que ele, o sistema, está vivendo um momento em que não é mais possível ser reproduzido no futuro. Esse é um problema que implica na sobrevivência do gênero humano.
Já sabemos, do ponto de vista ecológico, que estamos utilizando um planeta e meio e que a possibilidade de regeneração da terra não é mais possível. E se todo mundo destruir e consumir no mesmo nível dos EUA, necessitaremos de quatro planetas, mas só temos um.
Todas as crises têm a mesma origem: a lógica do capitalismo, que é, por um lado, a lógica do lucro, e não a do bem-estar das populações; e, por outro lado, ignorância das externalidades, de tudo o que é externo ao cálculo do mercado, que são os danos ecológicos e sociais.
Essas crises demonstram que temos de encontrar um novo paradigma da existência coletiva dos seres humanos no planeta. Como construir e pensar isso? Escrevi um livro sobre o novo paradigma pós-capitalista, tratado de ver que o bem-comum da humanidade é a vida, a capacidade de reproduzir a vida do planeta e dos seres humanos que, como dizem os indígenas de Chiapas, são a parte consciente da natureza. Podemos pensar isso a partir dos quatro fundamentos de toda a vida humana. O primeiro diz respeito à relação dos seres humanos com a natureza, quer dizer, é preciso mudar fundamentalmente esta relação. Para o capitalismo, a natureza é um recurso natural que se pode transformar em mercadoria. Devemos abandonar essa visão e respeitar a terra como fonte de toda a vida. Isso tem muitas consequências práticas. Se aceitarmos este princípio, não poderemos aceitar mais a propriedade privada dos recursos naturais, que são patrimônio da humanidade. Não se pode aceitar mais a mercantilização dos bens essenciais para a vida humana, como a água, ou as sementes.
A segunda questão é como a economia poderá construir as bases materiais da vida física, cultural, espiritual de todas as pessoas do planeta. Isso significa uma revolução na concepção de economia, que não significa simplesmente produzir bens com valor agregado. Como dizem alguns atores, o capitalismo foi um parêntese na história da humanidade e agora seu papel se esgotou.
Democracia
O terceiro aspecto é introduzir o conceito da democracia generalizada a todas as relações sociais, humanas e organizacionais. Fala-se que estamos dando um passo adiante com a democracia participativa. Mas isso não basta se não ocorrem mudanças políticas e econômicas. Nada menos democrático do que a economia capitalista, a concentração do poder de decisão, a relação desigual entre homens e mulheres. O desafio das instituições sociais, culturais, religiosas é encontrar uma maneira de introduzir o princípio democrático para fazer com que os seres humanos sejam sujeitos de sua história, e não somente clientes de partidos políticos.
Finalmente, é preciso interculturalidade, ou seja, permitir a todas as culturas os saberes, permitir que participem desta construção de um novo paradigma. Sobre esses quatro elementos, os quais são fundamentais na construção de cada sociedade, se pode construir o novo paradigma o qual devemos construir teoricamente, porque – como disseRosa Luxemburgo – “não há revolução sem teoria”. Assim, devemos continuar a elaboração teórica com a colaboração de movimentos sociais e de intelectuais para construir essa perspectiva que pode servir de base para as lutas sociais e para a convergência dos movimentos sociais. Até agora cada movimento social lutou por uma causa própria, individual, e isso é positivo, mas falta uma meta de conjunto. Por isso o conceito do bem-viver, de Sumak Kawsay, tem a sua importância, visto ser uma visão de conjunto. Claro que não devemos adotar a cosmovisão dos indígenas, mas sim a sua ideia fundamental.
Utopia
Para terminar, isso pode parecer uma utopia, mas é uma utopia necessária no sentido de buscar algo que não existe hoje, mas que poderá existir amanhã. Essa tem que ser uma meta inspirada também na fé cristã. É uma meta que já existe na prática, porque milhares de inciativas já trabalham para que houvesse outra relação com a natureza, com a criação de uma economia solidária, para se defender os direitos das mulheres, para se ter uma nova identidade cultural, etc. Esses movimentos existem, porém ainda não representam uma força para transformar o sistema. Temos visto esta diversidade nos Fóruns Sociais Mundiais, e isso é importante para criar uma nova consciência mundial.
IHU On-Line – O senhor continua marxista? Em que medida Marx continua atual para pensar as crises de hoje?
François Houtart – Sim, continuo. O pensamento marxista continua muito válido, mas precisamos adotar o marxismo como método e não como dogma. Método no sentido de refletir sobre as situações atuais, e não somente do sistema capitalista do século XIX na Europa. É muito importante o que Marx disse sobre a natureza. Ele disse que o capitalismo está destruindo o metabolismo entre natureza e seres humanos, e com consequências que serão graves e que somente o socialismo pode e deve reconstruir o metabolismo entre seres humanos e natureza.
Entretanto, os sistemas socialistas reais não acompanharam a visão da modernidade, de que não é possível um progresso linear por conta dos problemas ambientais. Nesse sentido, penso que Marx continua fundamental para analisarmos a sociedade.
IHU On-Line – Gostaria de acrescentar algo?
François Houtart – Gostaria de acrescentar a importância da visão cristã nesse processo de mudança, e a necessidade de reiniciar uma teologia da libertação, esta corrente que foi muito destruída pela Igreja institucional. Seria necessário, frente à gravidade da crise, repensar uma teologia nesse sentido e dialogar com outras religiões, como o budismo, por exemplo. Fiz meu doutorado sobre o budismo, que é uma corrente de pensamento muito importante para encontrar o problema da crise dos valores.
Notas
[1] Subprime: é um crédito de risco concedido a um tomador que não oferece garantias suficientes para se beneficiar da taxa de juros mais vantajosa.
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