A TV Globo lastimou até o último capítulo, na sexta feira 28/08, ter escolhido “Babilonia” para coroar suas bodas de ouro, 50 anos de emissão e várias décadas fazendo — na falta de outra — o papel de Hollywood nacional. Gastou 200 mil dólares por capítulo e não conseguiu mais do que 25 pontos de audiência, pelo menos 30 a menos se comparada com a conquistas de outras novelas. Até agora os bruxos do IBOPE estão remoendo os motivos quando o elenco tinha atores da estirpe de Fernanda Montenegro e Nathalia Thimberg, Marcos Palmeira e Cassio Gabus Mendes, Arlete Salles para citar alguns já que o elenco era quilométrico.
Depois daquele beijo entre Fernanda (a advogada Teresa) e Nathalia (Estela, dona de uma loja de antiguidades e jóias),o Ministério da Justiça se meteu exigindo por debaixo do pano restrições morais em função do horário das 21 horas, e a emissora obedeceu. O público telefonava para a CAT, Central de Atendimento ao Telespectador, seis mil chamadas por dia, e reclamava. A Globo cedeu. Fernanda Montenegro, no jantar da Academy of Television Arts & Science onde a Globo era anfitriã no Copacabana Palace, desabafou ao Estadão: “O que eu acho mais estranho é nossos colegas, libertários, dizerem que tinha de beijar no último capítulo. Eu acho isso uma resposta pior que a dos fundamentalistas religiosos. Quando um colega nosso fala isso, de um beijo de boca fechada, com uma iluminação totalmente sombreada, um pouco mais que um selinho, isso é abismante. Prepara o público para fazer isso no último capítulo? Nós estamos fazendo isso há 40 anos!”
Estranho. Depois do primeiro, o selinho só voltou a ser dado no último capítulo. Thiago (Marcelo Melo Jr) teve de ficar paraplégico depois de cantar e conseguir tirar Sergio do armário (Claudio Lins). Estranho. Os telespectadores das novelas da Globo estão cansados de acompanhar cenas de língua entrando até o esôfago do parceiro em beijos na cama com sexo que falta 0,01% para ser explícito. Resistência, sim, ou ninguém mais se lembra da passeata dos 100 mil, a Marcha pela Familia entre março e junho de 1964, data do golpe militar que jogou o país num abismo político — mas a passeata dos 100 mil só pensava na Tradição, na Familia e na Propriedade? Ou já esqueceram a ala feminina do júri popular que condenou “ a mulher perdida”, “sereia desvairada” Angela Diniz e inocentou Doca Street que encheu seu rosto de balas na Praia dos Ossos em Cabo Frio, 1976?
Este é o país conservador, e a plateia feminina compõe a maioria da audiência das novelas. Ela assiste sem respirar aos dois minutos em que Vanessa Giacomo (Tóia) e Cauã Reymond ( Juliano) rolam e se esfregam na cama na nova novela das 9, “A Regra do Jogo”, mas não suportam um selinho entre duas mulheres.
Excesso de realismo
“Babilonia” cometeu excesso de realidade. Ninguém aguenta mais ver nas manchetes dos jornais e no noticiário de TV corrupção, tráfico, mortes violentas até no “micro-ondas” ( aquela fogueira com pneus que transformou em cinzas o repórter da Globo Tim Lopes no morro do Alemão em 2002), bandidos de colarinho branco, políticos falcatruando com empreiteiras e se saindo limpos, o dinheiro comprando o silêncio, o assessor de imprensa do prefeito manipulando a imprensa e virando o jogo, presidiária saindo de fininho depois que o diretor da cadeia teve a mão “molhada”. A falta de caráter nacional, a guerra civil das ruas, a lavagem de dinheiro nas nossas barbas, o garoto do morro levando grana para incriminar rivais de bacanas, o morro querendo ir para o asfalto, o asfalto com medo de subir o morro, o racismo , o exibicionismo, o dinheiro sujo promovendo a ambição deslavada de ascenção social, o consumismo.
Tudo isto estava nas manchetes, no noticiário diário, no jornal das 8 que, mal acabava, quando o público ía relaxar, lá vinha outra vez o prefeito corrupto fazendo jogadas escusas com a empreiteira , dinheiro roubado aos milhões e o bacanas só pensando em fugir do país, o “micro-ondas”. Era a continuação do lava-jato na ficção, um jorro de realidade justo na hora em que as pessoas queriam ficção. E foi um beijinho homossexual que afastou as noveleiras? Com Glória Pires no elenco que é a rainha dos filmes levinhos de Ibope nas alturas – aliás, está mal começando outro? Camila Pitanga mostrando que favelado pode ser fino e bacana?
É que a arte de filmar a realidade é outra. Novela tem de elevar a platéia a outro patamar. Tudo bem a homenagem final ao filme “Thelma & Louise” com Glória Pires (Beatriz, fazendo Thelma como Geena Davis), e Adriana Esteves ( Inês) no papel de Louise (Susan Sarandon). E o final devedor a Chaplin e a Peter Bogdanovich, uma longa estrada a perseguir, com esperança. Mas tudo precisava correr tão rápido? Piscamos os olhos e descobrimos que o criminoso do cafajeste Murilo (Bruno Gagliasso) foi Otávio ( Herson Capri), que Beatriz afinal confessou o assassinato do pai do amante, e que Diogo (Thiago Martins) sem pestanejar esquece aquele amor que cultivou a novela toda pela empreiteira ricaça que o patrocinou. “Babilonia” embolou tudo no último capítulo.
Por 200 dólares o capítulo, este tinha de terminar logo para entrar “A Regra do Jogo” numa velocidade espantosa de cenas que abrem, imaginem com quem, Neymar!, com Giovana Antonelli (Atena) exageradamente socialite pervertida, Alexandre Nero (Romero Rômulo mostrando as duas faces, assalto, golpe de hospital, prisão, ameaças, uma hora e meia de cortes sucessivos na estréia porque, a 200 dólares o capítulo, a Globo precisa levantar a bola da audiência.
Ficção prá valer porque a Band já percebeu o deslize global e apostou em sonho de verdade trazendo da Turquia “As Mil e Uma Noites”, a Record reviveu com sucesso “Os Dez Mandamentos” apostando em Moisés, Arão e na religiosidade que a família brasileira gosta, e a SBT elevou até uma novela infantil , “Carrossel”, ao horário nobre, nostalgia sempre pega bem. E não venha a Globo enfiar mais realidade ou arte engajada para tornar a sociedade tolerante. Aceitou as demandas do Ministério da Justiça e das beatas?, jogou a arte no buraco. Para tirar a audiência do atoleiro até William Bonner, quem diria, recomendou durante o Jornal Nacional a nova novela de João Emmanuel Carneiro. E ainda vem mais, “A Regra do Jogo” está apenas começando.
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